O Ovo da Serpente.
Em 2014, no Brasil, havia na população brasileira uma intensa polarização sobre os rumos do país. A vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais daquele ano encaminhava os governos petistas para um quarto mandato, confirmando o apoio popular aos projetos sociais inaugurados pelo ex-presidente Lula, reconhecido como uma das maiores lideranças políticas na esfera nacional e internacional em razão de seu protagonismo político desde as lutas sindicais na década de 1970 e, quando presidente, do seu enfrentamento da miséria e da sua luta pela erradicação da fome. Os efeitos das relações de forças políticas presentes no campo social despertaram fantasmas que assombram a travessia da democracia brasileira, forjada por paulatinos golpes de Estado. Vozes fascistas e racistas e em compasso com o projeto neoliberal que marcha(va) velozmente em várias regiões do planeta reuniram as condições de possibilidade para o funcionamento de uma nova prática de violência de Estado, Lawfare.
Em 2014, estava em curso, no sistema de justiça brasileiro e com o apoio da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), a chamada Operação Lava Jato, que visava, em tese, a combater crimes de corrupção entre empresas privadas e públicas que tivessem o envolvimento de autoridades brasileiras do primeiro escalão da república. As empresas concessionárias de serviço público de rádio e televisão, com os seus diários destaques midiáticos sobre os atos de persecução criminal da Operação Lava Jato, não chegaram a produzir a derrota, nas urnas, da candidata do Partido dos Trabalhadores (PT). Sem embargo, o uso da lei pelos aparelhos de Estado, abstendo-se de obedecer aos limites legais republicanos, deixou marcas indeléveis na recente história brasileira e vem acendendo múltiplos debates sobre os excessos dos aparelhos do Estado na sanha de eliminar e banir do jogo democrático certos adversários políticos, raciais, econômicos, comerciais, militares e ecológicos e, por que não dizer, seus inimigos da guerra judicial. As estratégias e as táticas do uso do direito para fins de deslegitimar, prejudicar e aniquilar um inimigo1 vem sendo operacionalizados por um novo mecanismo de poder (lawfare), provocando um diagnóstico sobre o surgimento de uma nova racionalidade político-jurídica operada pelos aparelhos estatais às expensas dos direitos e garantias previstas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Constituições dos Estados modernos. Lawfare, portanto, é um novo mecanismo de poder que se utiliza de táticas de guerra e do uso indevido do Direito2 no objetivo da morte política, a expulsão, o banimento,3 do alvo perseguido4, a vítima de Lawfare.
O Golpe.
Desde Gabriel Naudé (séc. XVII), o golpe de Estado é a suspensão da aplicação da Lei quando as conveniências e necessidades oriundas da razão de Estado assim impor, como diz Michel Foucault no célebre curso Segurança, território e população, de 1978, ministrado no Collège de France, quando há, portanto, uma necessidade do Estado que é superior à lei5. As necessidades, portanto, dessa racionalidade inoculada nas democracias constitucionais contemporâneas circulam no mundo da gestão das populações; logo, a efetividade dos direitos e garantias fundamentais cada vez mais se desmancham na areia movediça do nosso presente.
Não vivemos na era dos direitos: o império do Direito está enquadrado pelos interesses econômicos, pelos objetivos dos cálculos estatísticos, pela gestão racial e seletiva da razão de Estado, que, diante de suas eventuais necessidades aperta o gatilho do terrorismo de Estado, derrubando os edifícios jurídicos que deveriam abrigar as vítimas do lawfare. A prática de lawfare revela o paradoxo dessa nova forma de terrorismo que circula no interior dos aparelhos dos Estados contemporâneos que, em tese, deveriam servir à assegurar as regras do jogo democrático mas, paradoxalmente, provocam, por meras conveniências provisórias, o uso do Lawfare com o objetivo de exterminar e eliminar o inimigo tipificado pela razão de Estado, acionando e movendo o golpe de Estado na tinta das canetas do Executivo (com instrumentos como o estado de defesa e o estado de sítio), do Legislativo (impeachments, golpes parlamentares em desfavor dos direitos sociais, perseguição e cassação aos mandatos populares de parlamentares de esquerda) ou, pela espada do Poder Judiciário .
O Estado.
Os teóricos do Direito dos séculos XVI e XVII criaram um discurso jurídico com o escopo de fixar, no corpo social, os fundamentos e a legitimidade do exercício de uma nova forma de poder político que surge no mundo Ocidental, o Estado. Os direitos do poder soberano e o dever de obediência dos governados foi objeto de destaque no pensamento jurisfilosófico desde as monarquias absolutistas até o nascimento do Estado moderno; foi a pedido do poder régio, foi igualmente em seu proveito, foi para servir-lhe de instrumento ou de justificação que se elaborou o edifício jurídico de nossas sociedades. O Direito no Ocidente é um direito de encomenda régia (...) formação, pois, do edifício jurídico ao redor da personagem régia, a pedido mesmo e em proveito do poder régio6.
Crível que as baixas origens do pensamento jurídico sobre o poder soberano, reside na necessidade de cimentar os alicerces desta nova forma de modelo político, o Estado, que aparece na alvorada da modernidade produzindo intervenções no campo social, não apenas totalizante no sentido de sua centralidade e unidade, mas também, uma forma de poder individualizante que governa e dirige as condutas dos homens por meio de uma estrutura muito sofisticada, na qual os indivíduos podem ser integrados sob uma condição: que essa individualidade fosse moldada em uma nova forma e submetida a um conjunto de modelos muito específicos7. A recepção operada pelo Estado moderno daquele velho poder pastoral de governar os homens, este fenômeno decisivo na história das sociedades é, segundo Foucault, o ponto embrionário dessa governamentalidade cuja entrada na política assinala em fins do séc. XVI, séculos XVII e XVIII, o limiar do Estado moderno, de modo que o entrecruzamento do poder pastoral e do poder político será efetivamente uma realidade histórica no Ocidente8. A análise genealógica, portanto, da razão de Estado está relacionada com a história de sua governamentalidade; O Estado moderno nasce, a meu ver, quando a governamentalidade se torna efetivamente uma prática política calculada e refletida9. A passagem do poder disciplinar dos corpos para uma biopolítica da vida operou um deslocamento das técnicas de poder exercidas no mundo contemporâneo, afinal de contas, tal como foi pensado e definido, a partir das ciências ditas humanas do séc. XIX e tal como foi refletido no humanismo do séc. XIX, esse homem nada mais é finalmente uma figura da população10. A população, este novo personagem que surge no horizonte da modernidade, reuniu as condições de possibilidade para o aparecimento de novas técnicas à manutenção da razão de Estado, onde o homem deixa de ser tematizado como sujeito de direitos perante o poder soberano e, surge como alvo de uma biopolítica da vida humana, entrelaçada numa gigantesca teia burocrática de governamento, creio que podemos dizer que o homem foi para a população o que o sujeito de direito havia sido para o soberano11. Logo, a governamentalidade funciona a partir de uma racionalidade política que tem como base a gestão calculada da vida e dos modos de viver, suas intervenções políticas circulam no corpo social e incitam a produção de um poder normalizador de sujeição dos corpos e de controle das populações.
Vivemos na era da normalização e dos mecanismos biopolíticos que incitam e fazem viver, que gerem e investem na vida e na sobrevivência dos corpos, paradoxalmente, a experiência social demonstra que jamais os direitos foram tão sonegados e vilipendiados, os massacres se tornaram vitais,12 pela ação do poder estatal. Os direitos e garantias sociais previstos nas Constituições contemporâneas são relativizados em nome da governamentalização da razão de Estado onde a lei funciona cada vez mais como norma e função reguladora das populações, impondo uma partilha racista, no ambiente republicano, do que deve viver e o que deve morrer13, ou, quem deve ter seus direitos assegurados e aqueles que não terão seus direitos respeitados.
A governamentalidade inserta na razão de Estado das democracias contemporâneas se opera nos três níveis da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) por meio de suas redes de poder que produzem a naturalização, no corpo social, que o direito não pode ser protegido pelo direito14e, mediante as suas necessidades econômicas, comerciais, militares, ambientais e dos dados obtidos das estatísticas que regulam e controlam as populações, os poderes normalizadores entram em cena para naturalizar a ação assassina dos aparelhos do Estado, é claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor a morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, o banimento, etc.15
A Arma é a Lei – Lawfare.
Este poder que deixa morrer e circula às expensas da lei, normalizando, nas democracia modernas, uma beligerância judicial em favor do desabrigo dos direitos e garantias fundamentais de determinadas pessoas, grupos sociais e populacionais considerados nocivos à razão de Estado, faz emergir no mundo contemporâneo o aparecimento de uma tecnologia jurídica armada contra as redes de proteção de direitos no objetivo de eliminação e extermínio aos alvos perseguidos e, destarte, impõe-se a necessidade do golpe em defesa da pureza do Estado e de suas racionalidades provisórias, o Estado pune porque pode, porque é mais forte, não porque tenha direito de punir16, ou como diz o filósofo italiano Giorgio Agamben; o totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de em estado de emergência permanente tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.17
Nesse sentido, a deflagração da prática de Lawfare se articula pelo uso estratégico de determinadas normas jurídicas com o objetivo de eliminar e perseguir os alvos indesejáveis à governamentalização da razão de Estado, eclodindo o golpe de Estado com a suspensão da vigência dos direitos e garantias fundamentais dos seus alvos-inimigos e com seus fuzis sempre apontados; à política distributiva, o mal cósmico se concretiza em toda pretensão de intervenção estatal em benefício dos menos favorecidos e o bem cósmico é a soberania do mercado18. E, nesse sentido, seguindo o fio do pensamento de Michel Foucault sobre o aparecimento de técnicas normalizadoras ao arrepio dos direitos vigentes, crível diagnosticar na prática do lawfare uma recente técnica de guerra judicial a serviço da governamentalidade da razão de Estado contemporânea, diz o filósofo; nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador.19
Lawfare, é uma nova forma de mecanismo de poder e de exercício de terrorismo de Estado nas democracias constitucionais contemporâneas, servindo-se como meio para deflagração de Golpes de Estado em sua dimensão de ruptura com o poder constituído, ou, na dimensão de microgolpes20 habituais que atravessam os aparelhos do Estado e que objetivam a eliminação e banimento dos inimigos tipificados pela governamentalidade da Razão de Estado, a arma é a Lei (Lawfare) do fascismo, o ovo da serpente!
Bibliografia
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ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael. Lawfare: Uma Introdução. São Paulo: Editora Contracorrente,2020.︎
Todas as normas jurídicas, sem distinção, são fontes para deflagração do Lawfare e podem ser exercidos por todos os aparelhos do Estado que agem no interior dos três poderes republicanos (Executivo, Legislativo e Judiciário).︎
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(Orgs) Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1995, p.281.︎FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. São Paulo: Ed. Martins Fontes,2008, p.204.︎
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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. A Vontade de Saber. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2014, p.156.︎
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Abertura de processos éticos e disciplinares mirando a cassação de mandatos populares de parlamentares de esquerda.︎