A proposta legislativa que visa a extensão do Imposto Seletivo (IS), previsto na Reforma Tributária para alimentos e bebidas adoçadas tem gerado intenso debate entre juristas, economistas e profissionais da saúde pública. Apresentado como uma tentativa de desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde, o projeto acende um sinal de alerta quanto à finalidade do tributo, sua compatibilidade com a Constituição Federal, e a função extrafiscal do Direito Tributário.
Imposto Seletivo: natureza e finalidade constitucional
O Imposto Seletivo foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo artigo 153, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988, com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 132/2023. Sua previsão encontra-se também disciplinada na LC 214/2025, com a finalidade de:
“Desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.
Trata-se, portanto, de um tributo extrafiscal, com função regulatória, e não meramente arrecadatória. O aspecto seletivo justifica-se quando há um desestímulo ao consumo, desde que este desestímulo esteja vinculado a um bem jurídico constitucionalmente protegido.
Nesse ponto, é necessário refletir: a tributação sobre alimentos adoçados atende, de fato, aos critérios de seletividade e extrafiscalidade, ou inaugura uma perigosa ampliação do tributo, ferindo princípios constitucionais como a capacidade contributiva, a seletividade proporcional e a não cumulatividade?
Direitos fundamentais e alimentação adequada
A Constituição de 1988 estabelece, em seu art. 6º, que a alimentação é um direito social. Além disso, o art. 196. assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo políticas que visem à redução do risco de doenças.
Na seara internacional, documentos como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ratificado pelo Brasil, reconhecem o direito de toda pessoa a um padrão de vida adequado, incluindo alimentação nutritiva e suficiente (art. 11).
Sob esse prisma, tributar alimentos ainda que processados ou adoçados por meio de um imposto com função ostensivamente regulatória pode gerar efeitos regressivos, penalizando sobretudo os consumidores de baixa renda, que dependem de alimentos mais acessíveis economicamente. Trata-se de um paradoxo distributivo, em que o instrumento fiscal, ao invés de promover justiça social, amplifica desigualdades estruturais.
Segundo a doutrina de Luciano Amaro, a seletividade deve respeitar critérios técnicos e racionais de valoração social. Em tributos sobre o consumo, como o IS, a seletividade deve ser baseada na essencialidade do bem ou serviço. Como destaca o autor:
“A seletividade é técnica de justiça tributária quando utilizada para proteger o consumo de bens essenciais.” (AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 2021).
Nesse sentido, a aplicação do IS sobre alimentos adoçados sem uma clara definição do que são "produtos prejudiciais à saúde", e sem considerar o grau de processamento ou o contexto alimentar corre o risco de contrariar a lógica constitucional da seletividade e violar o princípio da legalidade estrita tributária.
O risco da expansão do conceito de “mal ao meio ambiente e à saúde”
A falta de objetividade na definição dos produtos sujeitos ao IS é preocupante. Se não houver um critério técnico e normativo claro, o tributo pode ser estendido arbitrariamente a outros itens alimentares, com base em fundamentos frágeis ou oportunistas. Isso compromete a segurança jurídica, valor fundamental no Estado de Direito.
É preciso considerar, ainda, que a adoção de tributos com apelo extrafiscal não pode substituir políticas públicas de educação alimentar, regulação de rótulos e incentivo à produção de alimentos saudáveis. A tributação, por si só, é instrumento insuficiente e possivelmente contraproducente, caso não seja acompanhada de medidas estruturais.
Conclusão
A proposta de aplicar o Imposto Seletivo a alimentos adoçados exige cautela e critério jurídico rigoroso. Embora a extrafiscalidade seja um instrumento legítimo do Estado para influenciar condutas, ela não pode violar direitos fundamentais, agravar desigualdades sociais ou desvirtuar a função seletiva do tributo.
Sob a ótica constitucional e da doutrina tributária, a extensão do IS a alimentos processados ou adoçados só se justifica quando baseada em critérios objetivos, técnicos, e acompanhada de políticas públicas robustas de saúde e educação alimentar.
Do contrário, corremos o risco de criar um “imposto do pecado” disfarçado de virtude fiscal sem enfrentar as reais causas da má alimentação no Brasil.