O credenciamento na administração pública: Natureza jurídica e distinção da inexigibilidade

15/04/2025 às 16:17
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Resumo

O presente artigo analisa o instituto do credenciamento na Administração Pública sob a égide da Lei nº 14.133/2021, destacando sua natureza jurídica, fundamentos normativos e distinção em relação à inexigibilidade de licitação. Busca-se apresentar as características essenciais do procedimento, sua previsão legal como procedimento auxiliar, além dos riscos decorrentes da indevida aplicação. São analisadas decisões do Tribunal de Contas da União e contribuições doutrinárias, para consolidação do entendimento sobre o tema.

Palavras-chave

Credenciamento. Contratações Públicas. Inexigibilidade. Lei nº 14.133/2021. Direito Administrativo.


1. Introdução

A evolução normativa das contratações públicas no Brasil tem exigido maior precisão conceitual e procedimental dos gestores públicos. Nesse contexto, o credenciamento surge como instrumento relevante para a Administração contratar com múltiplos interessados sem o viés competitivo da licitação.

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) trata expressamente do credenciamento como procedimento auxiliar, conferindo-lhe status e disciplina próprios. Este artigo visa aprofundar a compreensão sobre sua natureza jurídica e diferenciar claramente esse procedimento da inexigibilidade de licitação.


2. Regime Jurídico e Natureza Jurídica do Credenciamento

O credenciamento está disciplinado no art. 78. da Lei nº 14.133/2021 como procedimento auxiliar, rompendo com a anterior interpretação que o vinculava exclusivamente à inexigibilidade de licitação.

Vejamos o que diz o art. 78. da NLCC:

“Art. 78. São procedimentos auxiliares das licitações e das contratações regidas por esta Lei:

I - credenciamento;”

A propria nova lei de licitações, em seu art. 6º, conceitua credenciamento, vejamos:

“Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:

(…)

XLIII - credenciamento: processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados;;”

Pode-se definir credenciamento, como um processo que visa a habilitação de fornecedores para a realização de serviços ou fornecimento de bens à Administração Pública.

Antes da promulgação da Lei 14.133 de 2021, o credenciamento era uma prática já observada em alguns segmentos, mas sempre cercada por incertezas e lacunas legais. Pois, tal instrumento jurídico era utilizado por uma construção jurisprudencial e doutrinária e não estava positivada na lei nº 8.666/1993.

De acordo com Ronny Charles Lopes de Torres (2021), o credenciamento não representa uma contratação direta nos moldes do art. 74, mas sim um instrumento prévio de habilitação ampla, no qual a Administração convida todos os interessados a se habilitarem conforme critérios previamente definidos.

“Importante destacar que o credenciamento não se confunde com a hipótese de inexigibilidade. Ele é um instrumento (procedimento auxiliar), apto para essas hipóteses de contratação direta, em que a administração quer todos os fornecedores aptos disponíveis.” (Leis de Licitações Públicas Comentadas. Ed. JusPodivm, 2021)

A natureza jurídica do credenciamento é marcada por sua impessoalidade, universalidade e publicidade. Assim, ressaltamos que o procedimento é especialmente adequado quando o interesse público exige flexibilidade, previsibilidade de custos e continuidade dos serviços prestados, sem comprometer os princípios da legalidade e da eficiência.

Esse procedimento auxiliar é adotado quando se constata, na fase de planejamento da contratação, que a abordagem mais vantajosa para a administração consiste em permitir que uma gama de fornecedores se qualifique para fornecer os bens ou serviços desejados, em virtude da inviabilidade ou ineficácia de selecionar um único fornecedor por meio de disputa, de modo a atender adequadamente ao interesse público.


3. Comparação com a Inexigibilidade de Licitação

A diferença maior está na propria lei que positivou que o credenciamento era um procedimento auxiliar e não uma hipótese de inexigibilidade de licitação.

O art. 74. da NLCC diz que:

“Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:

(…)

IV - objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento”

Como vemos acima, a hipótese de inexigibilidade é a contratação de objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento e não o credenciamento em si.

Ademais, a própria NLLC no seu art. 78, regulamenta que são procedimentos auxiliares das licitações e das contratações, e não hipótese de inegibilidade.

Nessa linha, Ronny Charles também lecionou na sua obra já mencionada acima: “Importante destacar que o credenciamento não se confunde com a hipótese de inexigibilidade .” (Ed. JusPodivm, 2021)

Dessa forma, fica claro a diferença entre os institutos jurídicos do credenciamento e da inexigibilidade de licitação.

Entendemos que a confusão entre os institutos pode acarretar nulidade do contrato e responsabilização do gestor, recomendando-se o uso do credenciamento sempre que houver interesse em contratar múltiplos prestadores com critérios técnicos objetivos e remuneração pré-fixada.

Nesse diapasão, o credenciamento pode ser realizado de forma prévia, com lançamento de chamamento público, onde, o referido edital fica aberto para todo e quaisquer interessado participar, sem prazo fatal seu términoo, e, ao tempo que forem surgindo interessados, ao cumprirem os ditames do edital de chamamento, são credenciados pelo gestor. Assim, após o credenciamento, seria aberto um processo de inegixibilidade de licitação com cada um dos credenciados, ou seja, etapas distintas, institutos distintos.


4. Jurisprudência dos Tribunais de Contas

A jurisprudência dos Tribunais de Contas tem papel relevante na consolidação do entendimento sobre o uso adequado do credenciamento.

O Acórdão nº 2977/2021-TCU-Plenário demonstrou que:

“O credenciamento é legítimo quando a administração planeja a realização de múltiplas contratações de um mesmo tipo de objeto, em determinado período, e demonstra que a opção por dispor da maior rede possível de fornecedores para contratação direta, sob condições uniformes e predefinidas, é a única viável ou é mais vantajosa do que outras alternativas para atendimento das finalidades almejadas, tais como licitação única ou múltiplas licitações, obrigando-se a contratar todos os interessados que satisfaçam os requisitos de habilitação e que venham a ser selecionados segundo procedimento objetivo e impessoal, a serem remunerados na forma estipulada no edital.”

Também, o Acórdão 1094/2021-TCU-Plenário, disse que:

“É regular a aquisição, mediante credenciamento, de passagens aéreas em linhas regulares domésticas, sem a intermediação de agência de viagem, por ser inviável a competição entre as companhias aéreas e entre estas e as agências de viagem.”

Também, trazemos à baila a posição de doutrinadores renomados sobre o tema. Nessa linha, conforme destaca Ronny Charles Lopes de Torres (2021), “o credenciamento é uma forma de contratação que não pressupõe competição, mas sim a habilitação de todos os que se enquadrarem nos requisitos previamente definidos, atendendo ao princípio da impessoalidade e garantindo pluralidade de prestadores aptos à contratação.”

De acordo com Marçal Justen Filho (2021),

“o credenciamento não deve ser confundido com a inexigibilidade. Enquanto esta pressupõe exclusividade ou notória especialização, o credenciamento se funda em critérios objetivos e transparência, permitindo múltiplas contratações sem disputa de preços entre os habilitados.” (Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas, Ed. Revista dos Tribunais)

Jacoby Fernandes (2020) reforça que:

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“a ausência de competição no credenciamento não representa violação à legalidade, desde que observados os princípios da publicidade, da isonomia e da vinculação ao instrumento convocatório. Para ele, o procedimento garante segurança jurídica ao gestor e previsibilidade na execução contratual.” (Contratação Direta Sem Licitação, Ed. Fórum)

O credenciamento, quando bem aplicado, contribui para maior racionalidade nas contratações públicas, evitando disputas desnecessárias e garantindo a presença de diversos prestadores qualificados, o que é especialmente relevante em setores que exigem capilaridade, como o atendimento à saúde e transporte escolar.

Joel Niebuhr (2022) entende que:

“o credenciamento é especialmente útil em situações que demandam prestação contínua e descentralizada de serviços, como saúde pública e assistência técnica. Para o autor, 'o credenciamento busca permitir o atendimento público sem as amarras competitivas de um processo licitatório tradicional, mas com o mesmo nível de controle e publicidade'.” (Licitação Pública e Contrato Administrativo, Ed. Fórum)

Ao considerar os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema, nota-se que o credenciamento representa uma evolução nas práticas de contratação pública, incorporando aspectos de modernização administrativa. É consenso entre autores como Ronny Charles, Marçal Justen Filho, Joel Niebuhr e Jacoby Fernandes que o credenciamento, se corretamente utilizado, pode unir eficiência operacional com respeito aos princípios constitucionais da Administração.


5. Conclusão

O credenciamento, como procedimento auxiliar reconhecido pela Lei nº 14.133/2021, e não uma hipótese de inexigilidade de licitação, representa avanço na sistematização das contratações públicas. Ao distingui-lo da inexigibilidade, conferem-se maior segurança jurídica, eficiência e controle externo.

Cabe aos gestores públicos compreender a natureza jurídica de cada instituto e aplicar corretamente os instrumentos disponíveis, conforme orientações doutrinárias e jurisprudência consolidada.

O credenciamento representa, portanto, uma resposta administrativa a contextos em que o interesse público demanda não apenas legalidade estrita, mas também eficiência, economicidade e maior abrangência.

O artigo 78 da Lei nº 14.133/2021 posiciona o credenciamento como um dos procedimentos auxiliares, ao lado do registro de preços, pré-qualificação e outros. Tal reconhecimento positivo retira dúvidas quanto à sua legalidade e reafirma sua distinção como procedimento prévio à contratação.

A Administração deve tomar cautela para não mascarar contratações exclusivas sob o rótulo de credenciamento. A adoção inadequada pode resultar em direcionamento indevido, configurando burla ao processo licitatório.

O uso criterioso do credenciamento, aliado à observância das recomendações dos Tribunais de Contas, pode reduzir litígios e promover maior previsibilidade nas contratações públicas. O instrumento deve ser compreendido como meio de ampliação da eficiência e da pluralidade de prestadores no setor público.


Referências

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, 2021.

F ERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Licitações e Contratos Administrativos: doutrina, jurisprudência e prática. 10. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitações e contratos administrativos. 12. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

SERPA, Júlio. O instituto jurídico do credenciamento e nova lei de licitações, 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91841/o-instituto-juridico-do-credenciamento-e-nova-lei-de-licitacoes

T ORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. Salvador: Juspodivm, 2021.

Sobre o autor:

J úlio Serpa é Doutor em Direito. Advogado e parecerista especializado em contratações públicas, com atuação na assessoria jurídica de órgãos de controle e na advocacia pública.

Sobre o autor
Júlio Cesar Lopes Serpa

Advogado e Perito Contador; Doutor em Ciências Jurídicas; Especialista em Direito Tributário, Auditoria e Perícia Contábil; Sócio do Di Lorenzo Serpa Advogados Associados; Coordenador Jurídico da Controladoria Geral do Estado da Paraíba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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