O paradoxo do foro no Brasil pós-ação Penal 937: Legalidade estrita e a atuação política do STF

23/04/2025 às 15:41
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O presente artigo examina criticamente sob a ótica a manutenção da competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar indivíduos que não mais exercem função pública e, portanto, não possuem direito à prerrogativa de foro por função dos próprios ministros quais sejam as obras:

O Novo Papel do Supremo Tribunal Federal de autoria do Ministro Luís Roberto Barroso;

Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2019 do Ministro Gilmar Ferreira Mendes;

Direito Constitucional. 39. ed. São Paulo: Atlas, 2023 do Ministro Alexandre de Moraes;

E pela Ação Penal 937 do próprio Supremo Tribunal Federal.

Com base na análise do precedente vinculante estabelecido na Ação Penal 937, no qual o STF decidiu restringir o foro aos casos de crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele, argumenta-se que a Corte tem adotado posturas contraditórias ao manter sua competência em casos que deveriam tramitar em primeira instância. O foco da discussão recai sobre o julgamento de abril de 2025, que envolve ex-assessores do ex-presidente Jair Bolsonaro, todos afastados da administração pública e investigados por suposta atuação golpista, sem vínculo funcional direto com os atos apurados.

A análise parte da gênese constitucional e histórica do foro por prerrogativa de função, destacando que sua finalidade institucional tem sido desvirtuada por interpretações políticas. A AP 937 é tratada como um divisor de águas, por delimitar com precisão o escopo do foro e contribuir para a desconcentração do poder penal da cúpula do Judiciário. Contudo, a prática recente do STF parece ignorar esse marco, gerando insegurança jurídica e tensionando os princípios do juiz natural e do devido processo legal.

Ao aprofundar-se no caso concreto dos ex-assessores, o artigo aponta que a manutenção da competência do STF constitui uma ilegalidade manifesta, que compromete a imparcialidade judicial e alimenta suspeitas de instrumentalização política da justiça. A insistência da Corte em manter tais processos em sua alçada transforma o foro privilegiado em um mecanismo de controle político, minando a neutralidade institucional.

A discussão é ampliada para mostrar como essa postura gera impactos negativos na democracia e na legitimidade das instituições. O STF, ao agir em desconformidade com seus próprios precedentes e com a Constituição, deixa de ser um árbitro institucional e passa a atuar como protagonista do jogo político, provocando desequilíbrio entre os poderes e erosão da confiança popular no sistema de justiça.

Conclui-se que é urgente a reafirmação dos limites constitucionais da competência do STF. A proteção ao princípio do juiz natural e à legalidade estrita não pode ser relativizada por contextos políticos. O STF deve liderar pelo exemplo, respeitando o que ele mesmo estabeleceu em sua jurisprudência, sob pena de comprometer gravemente o Estado Democrático de Direito e abrir caminho para arbitrariedades travestidas de legalidade.

Palavras-chave

Foro por Prerrogativa de Função. Supremo Tribunal Federal. Princípio do Juiz Natural. Ativismo Judicial. Processo Penal. Competência Penal Originária. AP 937. Jair Bolsonaro. Democracia. Segurança Jurídica. Desvio de Competência. Direito Constitucional. Julgamento Político. Ilegalidade Processual. Instituições Democráticas.


I. Introdução

A prerrogativa de foro é um dos institutos mais debatidos no Direito Constitucional brasileiro contemporâneo, e sua utilização tem provocado controvérsias não apenas nos meios jurídicos, mas também na opinião pública. O presente artigo tem como foco central a análise jurídica e crítica da manutenção da competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar pessoas que, embora tenham exercido funções no governo federal, atualmente não possuem qualquer cargo que justifique a prerrogativa de foro. A questão se insere em um contexto político-institucional sensível, pois envolve personagens ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, investigados no chamado "núcleo 2" da suposta trama golpista.

Sob o prisma constitucional, é imperioso resgatar o entendimento do STF firmado em 2018, por ocasião da Ação Penal 937, no qual a Corte restringiu a prerrogativa de foro aos casos em que os crimes tenham sido praticados no exercício da função e em razão dela. Essa decisão é vinculante e deveria nortear as futuras deliberações judiciais. No entanto, observa-se que o STF tem mantido processos de investigados sem cargo atual em sua esfera de competência originária, criando um paradoxo jurídico e um ambiente de insegurança institucional.

A relevância do tema está em sua capacidade de evidenciar tensões entre o princípio do juiz natural, o devido processo legal e o ativismo judicial. Quando a Corte ignora sua própria jurisprudência, compromete não apenas sua coerência institucional, mas também a legitimidade das decisões proferidas. Assim, o presente trabalho busca refletir sobre os limites constitucionais da competência penal originária do STF e seus impactos na democracia brasileira.


II. O conceito e os limites do foro por prerrogativa de função

2.1 Fundamentação histórica e constitucional

O foro por prerrogativa de função remonta à tradição republicana de proteger determinadas autoridades contra perseguições políticas ou decisões judiciais de cunho local. Sua previsão constitucional visa garantir a isenção e imparcialidade nas decisões que envolvam agentes públicos de alta relevância. Contudo, sua expansão descontrolada ao longo dos anos gerou distorções significativas, culminando em um sistema de exceção que favorecia a impunidade.

A Constituição Federal de 1988 elenca as hipóteses de foro especial, mas é a jurisprudência que delimita os contornos do instituto. A doutrina clássica sustenta que a função do foro especial é institucional, não pessoal, e não pode ser utilizada como privilégio individual.

2.2 O precedente da AP 937: uma virada jurisprudencial

No julgamento da Ação Penal 937, o STF fixou que a prerrogativa de foro se aplica exclusivamente a delitos praticados no exercício da função pública e em razão dela. Isso exclui automaticamente a competência do STF para julgar ex-ocupantes de cargos que não estão mais em função e cujos atos investigados não guardam relação com as atribuições do cargo anteriormente ocupado. O entendimento passou a ser aplicado em diversos casos, descentralizando a competência da Corte e valorizando o primeiro grau de jurisdição.

Apesar disso, nos casos relacionados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o STF tem relativizado sua própria jurisprudência, decidindo manter investigações e processos de pessoas sem cargo ou conexão funcional no âmbito de sua competência penal originária. Essa postura tem sido alvo de duras críticas, tanto na doutrina quanto por parte de entidades jurídicas independentes.


III. O caso concreto: Ex-assessores sem cargo e sem foro

3.1 Perfil dos investigados

O julgamento de 22 de abril de 2025 pelo STF envolveu diversas figuras que atuaram em órgãos federais durante o governo Bolsonaro, mas que atualmente estão afastadas da administração pública. Dentre elas estão Filipe Martins, Marcelo Câmara, Silvinei Vasques, Mário Fernandes, Marília de Alencar e Fernando de Sousa Oliveira. Nenhum deles ocupa cargo atualmente, e as condutas apuradas não estão diretamente vinculadas ao exercício funcional, mas sim a uma suposta articulação política.

3.2 A ilegalidade da manutenção da competência do STF

A decisão do STF em manter a competência para julgar tais indivíduos é juridicamente insustentável diante do precedente da AP 937. Trata-se de manifesta violação ao princípio do juiz natural e ao devido processo legal. Além disso, a atuação da Corte levanta suspeitas de motivações políticas por trás das decisões, o que compromete gravemente a imparcialidade do sistema de justiça. Ao agir dessa forma, o STF acaba por deslegitimar a proteção institucional que deveria oferecer e cria um precedente perigoso de expansão arbitrária de sua competência.

A coerência institucional exige que a Corte respeite suas próprias decisões e atue dentro dos limites da legalidade estrita. O afastamento dessa premissa representa não apenas um erro jurídico, mas uma afronta à segurança jurídica e ao Estado Democrático de Direito.


IV. O princípio do juiz natural e o desvio de competência

4.1 O princípio do juiz natural como pilar do processo penal democrático

O princípio do juiz natural, consagrado no artigo 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, determina que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, previamente estabelecida por lei. Esse princípio é uma garantia essencial contra arbitrariedades, pois impede que o julgador seja escolhido ad hoc conforme conveniências políticas. Quando o STF mantém competência sobre processos que deveriam tramitar em primeira instância, ele colide frontalmente com esse mandamento constitucional.

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A jurisprudência constitucional estabelece que a competência deve ser aferida de acordo com critérios objetivos, e não casuísticos. Portanto, qualquer ampliação de competência sem respaldo constitucional representa um desvio institucional grave. A prática atual da Corte, ao ignorar os parâmetros da AP 937, compromete a imparcialidade e a previsibilidade do sistema judicial.

4.2 A instrumentalização do foro como mecanismo de controle político

A persistência do STF em julgar ex-assessores e militares sem prerrogativa funcional revela um movimento de centralização do poder punitivo. A Corte, ao assumir a condução de processos que claramente não lhe competem, transmuta-se de guardiã da Constituição em protagonista político. Isso gera desequilíbrio entre os poderes e fragiliza a democracia, pois alimenta a percepção de seletividade judicial.

Tal comportamento não só ignora o princípio da legalidade estrita, mas também compromete a imagem da Corte perante a comunidade jurídica e a sociedade civil. Quando o STF age fora dos marcos constitucionais, seus julgamentos perdem legitimidade e alimentam discursos de ruptura institucional, colocando em risco o Estado Democrático de Direito.


V. O risco institucional e o enfraquecimento da democracia

5.1 A erosão da legitimidade judicial

A manutenção da competência do STF em casos que deveriam tramitar em outras instâncias afeta diretamente a confiança pública no Judiciário. A legitimidade de uma Corte Constitucional depende da coerência de suas decisões com o texto constitucional e com seus próprios precedentes. Quando essa coerência é rompida, o tribunal deixa de ser um órgão de estabilidade e passa a ser visto como um agente de instabilidade institucional.

O desrespeito ao precedente da AP 937 é especialmente grave, pois foi um marco civilizatório na contenção de abusos do foro privilegiado. A sua aplicação seletiva transforma um avanço em instrumento de exceção, corroendo a credibilidade das instituições democráticas.

5.2 O STF como fator de instabilidade política

Ao exercer competência indevida, o STF insere-se diretamente no campo político, criando um ambiente de tensão entre os poderes. Em vez de garantir o equilíbrio institucional, a Corte passa a ser um ator protagonista de disputas políticas, substituindo o debate parlamentar por decisões judiciais com forte carga ideológica.

Essa atuação gera desconfiança generalizada, incentiva a polarização social e mina os mecanismos de freios e contrapesos previstos na Constituição. O Judiciário, que deveria ser o árbitro da legalidade, transforma-se em parte interessada no jogo político, o que compromete sua função essencial na manutenção da ordem democrática.


VI. Conclusão

A análise realizada evidencia a necessidade de rigorosa observância ao princípio do juiz natural e ao precedente estabelecido na AP 937. A manutenção da competência penal originária do STF para julgar ex-assessores e militares que não detêm mais cargos públicos configura afronta ao devido processo legal e à segurança jurídica. Ao agir dessa forma, a Corte compromete sua própria legitimidade e contribui para o enfraquecimento das instituições democráticas.

É imprescindível que o STF se atenha aos limites constitucionais de sua atuação, evitando que decisões judiciais sejam motivadas por contextos políticos ou conveniências momentâneas. O foro por prerrogativa de função deve ser tratado como exceção, e não como regra, sendo aplicado estritamente nos moldes definidos pela Constituição e pela jurisprudência consolidada.

Caso contrário, o país corre o risco de viver sob um modelo de exceção jurídica disfarçada de constitucionalidade, em que o tribunal máximo da nação se transforma em um agente político com poderes ilimitados. A democracia brasileira não pode prosperar sob um ambiente de insegurança jurídica e arbitrariedade institucional. A restauração da legalidade e do respeito às garantias fundamentais exige, mais do que nunca, que o STF seja o primeiro a dar o exemplo de fidelidade à Constituição.


VII. Referências

BARROSO, Luís Roberto. "O Novo Papel do Supremo Tribunal Federal." Revista Jurídica, vol. 12, 2018.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 39. ed. São Paulo: Atlas, 2023.

STF - Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 937. Disponível em: www.stf.jus.br

Sobre o autor
Silvio Moreira Alves Júnior

Advogado; Especialista em Direito Digital pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal pela Faculminas; Especialista em Compliance pela Faculminas; Especialista em Direito Civil pela Faculminas; Especialista em Direito Público pela Faculminas. Doutorando em Direito pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales – UCES

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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