A criação de sistemas autônomos baseados em dados: Desafios éticos, jurídicos e socioeconômicos da inteligência artificial aplicada à robótica

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Resumo

A ascensão de robôs inteligentes treinados a partir de grandes volumes de dados representa um marco no avanço da inteligência artificial e redefine os contornos da atuação humana em múltiplas esferas sociais, econômicas e institucionais. Embora tais sistemas ofereçam oportunidades disruptivas em eficiência e inovação, sua estruturação algorítmica levanta questões cruciais sobre viés, responsabilidade, transparência, impactos laborais e desigualdades. Este artigo analisa os desafios jurídicos, éticos e sociais da criação e utilização de robôs baseados em dados, enfatizando a necessidade de regulação proativa e governança responsável, com vistas à proteção dos direitos fundamentais em um cenário de crescente automatização.

Palavras-chave

Inteligência artificial. Robótica. Aprendizado de máquina. Viés algorítmico. Ética digital. Responsabilidade civil. Trabalho e automação.


Introdução

A convergência entre inteligência artificial (IA), robótica avançada e big data inaugura uma nova era na interação entre homem e máquina. Robôs autônomos treinados por dados — isto é, por meio de algoritmos capazes de extrair padrões, aprender com a experiência e adaptar-se dinamicamente — estão sendo implantados em setores estratégicos da economia global, da medicina à indústria, do comércio ao poder público. No entanto, essa evolução técnica exige reflexão crítica sobre os limites éticos, os riscos jurídicos e os efeitos socioeconômicos dessa tecnologia. A presente análise busca identificar os principais desafios associados à criação de robôs inteligentes baseados em dados, propondo parâmetros regulatórios e normativos para sua utilização responsável.


A evolução do aprendizado de máquina e a estruturação de robôs autônomos

Os sistemas de IA contemporâneos operam com base em modelos estatísticos que, alimentados por vastos conjuntos de dados (datasets), produzem resultados por meio do aprendizado supervisionado, não supervisionado ou por reforço. Técnicas como redes neurais profundas (deep learning) e algoritmos evolutivos possibilitam que robôs adquiram autonomia decisional progressiva, superando limites previamente impostos por programações determinísticas. Diante disso, surgem novas modalidades de interação humano-máquina, como veículos autônomos, sistemas de diagnóstico médico, assistentes judiciais preditivos e robôs sociais capazes de resposta emocional simulada.

Contudo, quanto mais os sistemas se sofisticam, maior é sua opacidade estrutural. A chamada “caixa-preta algorítmica” desafia a inteligibilidade dos processos decisórios e compromete o direito à explicação — conceito consagrado no art. 22. do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR), e inspirador de dispositivos semelhantes na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil.


Viés algorítmico e discriminação automatizada

Um dos problemas centrais na construção de sistemas autônomos treinados por dados é o risco de perpetuação de desigualdades históricas presentes nos próprios dados que os alimentam. Quando o conjunto de treinamento reflete padrões discriminatórios — de raça, gênero, origem socioeconômica ou território — os algoritmos podem reproduzir ou até amplificar essas distorções. Tal fenômeno já foi documentado em sistemas de seleção de candidatos, concessão de crédito, vigilância policial e decisões judiciais assistidas por IA.

A doutrina contemporânea de ética algorítmica propõe como resposta a implementação de mecanismos de “justiça algorítmica”, que envolvem: i) curadoria rigorosa de dados; ii) testes de viés estatístico; iii) supervisão humana contínua; e iv) auditorias independentes. Tais exigências são fundamentais para assegurar a igualdade material no contexto das decisões automatizadas.


Responsabilidade e imputação de danos

A crescente autonomia dos robôs levanta a questão sobre quem deve responder por danos decorrentes de suas decisões. O desafio reside no fato de que os robôs não são sujeitos de direito, e os seus comportamentos muitas vezes decorrem de processos não totalmente previsíveis. Surge, então, o debate sobre a responsabilidade civil por atos de sistemas autônomos: deve ela ser atribuída ao desenvolvedor, ao operador, ao programador, ou ao titular do banco de dados?

A literatura internacional tem explorado modelos como a responsabilidade objetiva com mitigação de riscos, a criação de um regime sui generis de responsabilidade digital, ou até a introdução de formas de personalidade jurídica limitada para agentes autônomos, hipótese já aventada no Relatório do Parlamento Europeu sobre Robótica (2017/2103(INL)). O consenso, no entanto, converge no sentido de que o arcabouço atual do direito civil tradicional precisa ser complementado por normas específicas que respondam à complexidade das interações algorítmicas.


Impactos sobre o trabalho e novas desigualdades digitais

A automação de tarefas por robôs inteligentes tem efeitos ambíguos sobre o mercado de trabalho. Por um lado, aumenta a eficiência e elimina tarefas repetitivas, liberando trabalhadores para funções mais criativas. Por outro, acarreta a substituição em massa de empregos de baixa qualificação, ampliando a precarização e a desigualdade de renda. Relatórios do World Economic Forum (2023) alertam para o risco de um desemprego estrutural persistente nas próximas décadas, especialmente em economias em desenvolvimento que carecem de infraestrutura educacional adaptativa.

Programas públicos de recapacitação tecnológica (reskilling), políticas de renda mínima universal e a reconfiguração dos modelos de previdência social serão essenciais para enfrentar essa nova realidade. O Direito do Trabalho também deverá ser repensado para incluir a proteção de trabalhadores inseridos em ecossistemas digitais mediados por IA.

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Transparência, explicabilidade e governança da inteligência artificial

Para que a inteligência artificial treinada por dados seja integrada de forma responsável à sociedade, é indispensável o fortalecimento de princípios de explicabilidade (explainability), governança algorítmica e controle público sobre decisões automatizadas. A UNESCO (2021), em sua Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial, sublinhou a necessidade de que tais tecnologias sejam desenvolvidas de maneira centrada no ser humano, com respeito à dignidade, aos direitos humanos e à justiça social.

A criação de comitês de ética digital, a exigência de relatórios de impacto algorítmico e a participação cidadã na avaliação de riscos tecnológicos são estratégias indispensáveis para democratizar a IA e impedir sua captura por interesses privados ou autoritários.


Considerações finais

A criação de robôs treinados a partir do uso de dados representa um dos pontos culminantes do desenvolvimento da inteligência artificial. Suas aplicações prometem transformar profundamente a forma como produzimos, decidimos, vivemos e nos relacionamos. Contudo, diante do seu poder disruptivo, torna-se urgente a construção de uma infraestrutura normativa e ética à altura dos riscos que a automação inteligente acarreta.

A regulação da inteligência artificial não pode se limitar a reações casuísticas. Deve ser propositiva, baseada em princípios sólidos e voltada à proteção do ser humano em sua integralidade. O futuro da robótica não depende apenas do progresso técnico, mas da capacidade da sociedade em construir limites responsáveis e instituições vigilantes para que a tecnologia esteja sempre a serviço do bem comum.


Referências normativas e bibliográficas

BOSTROM, Nick. Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies. Oxford University Press, 2014.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD).

CRAWFORD, Kate. Atlas of AI: Power, Politics, and the Planetary Costs of Artificial Intelligence. Yale University Press, 2021.

PARLAMENTO EUROPEU. Relatório sobre Robótica e Inteligência Artificial (2017/2103(INL)).

PASQUALE, Frank. The Black Box Society: The Secret Algorithms That Control Money and Information. Harvard University Press, 2015.

RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

UNESCO. Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence, 2021.

UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 (General Data Protection Regulation – GDPR), especialmente art. 22.

WORLD ECONOMIC FORUM. The Future of Jobs Report 2023. Geneva: WEF, 2023.

Sobre o autor
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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