A ascensão da sociedade digital e a expansão exponencial do uso de tecnologias informacionais intensificaram a preocupação com a proteção da privacidade e a segurança dos dados pessoais. Diante da ubiquidade de processos automatizados de coleta, armazenamento e tratamento de informações sensíveis, emergiu, no Brasil, a necessidade de um marco legal que equilibrasse a fluidez tecnológica com a tutela dos direitos fundamentais. A promulgação da Lei nº 13.709/2018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), inscreve-se nesse cenário como resposta normativa ao imperativo de salvaguardar a dignidade informacional do indivíduo. O presente ensaio examina os desafios enfrentados em sua implementação, os efeitos concretos sobre a governança de dados e a conformação de um ambiente jurídico mais alinhado aos padrões internacionais de proteção da privacidade.
Inspirada no Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (General Data Protection Regulation – GDPR), a LGPD introduziu no ordenamento jurídico brasileiro um conjunto de princípios que disciplinam o tratamento de dados pessoais com base na finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade, segurança, prevenção, não discriminação e responsabilização. Sua entrada em vigor, em 2020, impôs a todas as entidades – públicas e privadas – profundas reformulações organizacionais, tecnológicas e jurídicas. A nomeação de encarregados pelo tratamento de dados (Data Protection Officers – DPOs), a elaboração de políticas internas de conformidade (compliance) e a adoção de medidas técnicas e administrativas destinadas à mitigação de riscos passaram a compor o novo léxico da gestão informacional.
A transposição dos comandos abstratos da lei para práticas institucionais tangíveis revelou, todavia, uma série de dificuldades. As pequenas e médias empresas, desprovidas de recursos financeiros e know-how jurídico-tecnológico, figuraram entre as mais afetadas, especialmente em setores com menor grau de digitalização. A assimetria regulatória também se manifestou na heterogeneidade das interpretações e na ausência, até então, de jurisprudência consolidada. A criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), como entidade autônoma com funções normativas, fiscalizatórias e sancionatórias, representou importante avanço institucional. Ainda assim, o pleno êxito da política de proteção de dados exige investimentos contínuos em capacitação, infraestrutura digital e difusão de uma cultura de responsabilidade informacional.
No plano dos direitos fundamentais, a LGPD representa um marco civilizatório. A consagração do consentimento como pilar para o tratamento legítimo de dados, associada ao reconhecimento do direito de acesso, retificação, portabilidade e eliminação de informações, fortalece a autonomia do titular e estabelece um novo paradigma de cidadania digital. A imposição de sanções relevantes, como multas pecuniárias que podem atingir até 2% do faturamento da pessoa jurídica – limitadas a R$ 50 milhões por infração –, reforça o caráter coercitivo da norma e induz à adoção de boas práticas.
Ao espelhar-se na experiência europeia, a LGPD não apenas propicia segurança jurídica interna, mas também favorece o posicionamento do Brasil como parceiro confiável no comércio internacional de dados. A convergência normativa com os padrões do GDPR facilita o reconhecimento de um nível adequado de proteção por parte da União Europeia, habilitando o país a participar de fluxos transnacionais de dados essenciais à competitividade econômica. Trata-se de um alinhamento estratégico que posiciona o Brasil em sintonia com os eixos regulatórios globais, favorecendo a atração de investimentos e a consolidação de uma economia digital robusta e sustentável.
Contudo, o desafio de adequar a legislação à velocidade das inovações permanece. Tecnologias emergentes como big data, inteligência artificial, aprendizado de máquina e a Internet das Coisas introduzem dinâmicas que tensionam os limites tradicionais da proteção de dados, exigindo do legislador e dos reguladores uma postura proativa, adaptável e dialogada. O princípio da autodeterminação informativa – núcleo axiológico da LGPD – deve ser reinterpretado à luz desses novos paradigmas, sob pena de se tornar ineficaz frente às assimetrias de poder entre os titulares de dados e os agentes de tratamento.
Em síntese, a LGPD simboliza um avanço institucional de proporções significativas, não apenas ao inaugurar uma era de maior responsabilidade no uso de dados pessoais, mas também ao inserir o Brasil em uma agenda regulatória transnacional. Sua efetividade, contudo, dependerá da atuação contínua da ANPD, da incorporação de práticas de governança de dados pelas organizações e do engajamento da sociedade civil na defesa dos direitos informacionais. A proteção de dados, mais do que um instrumento normativo, revela-se expressão concreta da dignidade humana na era digital, e sua salvaguarda exige vigilância permanente, inovação regulatória e compromisso coletivo.
Referências recomendadas
CASTRO, Renato Leite Monteiro de. A nova regulação de dados pessoais: fundamentos, princípios e limites da LGPD. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
CAVALCANTI, Bruno Bioni. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Ingo Wolfgang Sarlet; BRITO, Lenio Luiz Streck. Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
MONTEIRO, Gustavo Artese. LGPD: comentários à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.