Transferência internacional de dados: desafios regulatórios, implicações éticas e caminhos para uma governança global equilibrada

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Resumo: A transferência internacional de dados é um componente essencial da economia digital contemporânea, viabilizando atividades transnacionais em setores como comércio, pesquisa e serviços digitais. Entretanto, o fluxo de informações entre jurisdições com diferentes níveis de proteção de dados impõe desafios regulatórios, éticos e operacionais. Este artigo analisa os principais obstáculos relacionados à transferência internacional de dados pessoais, com destaque para a fragmentação normativa, a assimetria de proteção legal e os riscos associados ao uso indevido de informações sensíveis. Examina-se, ainda, a eficácia de instrumentos jurídicos como cláusulas contratuais-tipo e decisões de adequação, propondo uma abordagem colaborativa e ética para a construção de um ecossistema global mais justo e seguro.

Palavras-chave: transferência internacional de dados; proteção de dados pessoais; privacidade; governança digital; cláusulas contratuais-tipo.


A transferência internacional de dados tornou-se um pilar da infraestrutura informacional da economia global. Com a intensificação das interações comerciais, acadêmicas e tecnológicas entre países, o fluxo de informações pessoais entre fronteiras é indispensável para a operacionalização de modelos de negócios digitais, prestação de serviços em nuvem, pesquisas científicas colaborativas e inovação em larga escala. Contudo, a ausência de um regime jurídico global unificado para a proteção de dados cria tensões entre a necessidade de fluidez nos fluxos informacionais e a obrigação de resguardar os direitos fundamentais à privacidade.

O conceito de transferência internacional de dados refere-se ao movimento de informações pessoais de uma jurisdição para outra, sendo essas transferências muitas vezes intermediadas por empresas multinacionais ou plataformas tecnológicas com infraestrutura distribuída globalmente. Enquanto algumas regiões, como a União Europeia, operam com um padrão normativo elevado – consolidado no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) –, outras adotam modelos menos rigorosos ou fragmentários. Isso cria disparidades que não apenas afetam a segurança das informações, mas também geram insegurança jurídica e obstáculos comerciais.

A conformidade legal é um dos principais desafios enfrentados por organizações que operam internacionalmente. A necessidade de adaptar seus sistemas e práticas a diferentes marcos normativos resulta em custos regulatórios elevados, incertezas operacionais e riscos reputacionais. Um exemplo emblemático dessa complexidade foi a decisão da Corte de Justiça da União Europeia no caso Schrems II, que invalidou o acordo Privacy Shield entre Estados Unidos e União Europeia, alegando que o sistema estadunidense não oferecia garantias adequadas de proteção contra vigilância governamental desproporcional. Tal decisão ressaltou a fragilidade dos instrumentos de transferência existentes e a exigência de salvaguardas mais robustas.

As implicações éticas dessas transferências são igualmente relevantes. A assimetria de poder entre os titulares dos dados e as entidades que os processam em escala transnacional levanta preocupações sobre consentimento, transparência e controle. Em jurisdições com baixa proteção jurídica, cidadãos podem estar sujeitos a práticas discriminatórias, manipulação comercial ou vigilância indevida. Esse cenário demanda uma abordagem ética que priorize a dignidade, a autodeterminação informacional e a equidade no tratamento de dados pessoais.

Diversas ferramentas jurídicas têm sido adotadas para mitigar tais riscos. As Cláusulas Contratuais-Tipo (Standard Contractual Clauses – SCCs), elaboradas pela Comissão Europeia, funcionam como instrumentos contratuais que obrigam o importador de dados em outro país a respeitar padrões equivalentes aos da legislação europeia. Outro mecanismo relevante são as decisões de adequação, pelas quais a autoridade reguladora reconhece formalmente que determinado país oferece nível de proteção de dados compatível com os princípios do GDPR. Tais mecanismos, embora úteis, enfrentam limitações práticas quanto à fiscalização e à adaptação a novos contextos tecnológicos.

A evolução de tecnologias como inteligência artificial, computação em nuvem e Internet das Coisas (IoT) impõe desafios adicionais à governança transfronteiriça de dados. A coleta massiva e a interconectividade permanente dificultam o rastreamento dos fluxos de dados e a responsabilização por seu uso indevido. Além disso, a falta de interoperabilidade entre legislações nacionais e a fragmentação institucional entre autoridades de proteção de dados dificultam uma resposta coordenada e eficaz a esses riscos.

A construção de uma governança global para a transferência de dados exige o fortalecimento do diálogo multilateral e da cooperação técnica entre países, além da criação de estruturas jurídicas mais flexíveis e interoperáveis. Iniciativas internacionais, como as propostas da OCDE e os esforços do Fórum Econômico Mundial para desenvolver estruturas de governança digital, representam passos importantes nesse sentido. A harmonização de princípios, a promoção de boas práticas e a capacitação das autoridades nacionais são medidas fundamentais para garantir a proteção de direitos fundamentais sem comprometer o dinamismo econômico.

A transferência internacional de dados, portanto, não pode ser vista apenas sob o prisma da eficiência operacional ou da soberania jurídica, mas deve ser tratada como uma questão de direitos humanos, com implicações profundas para a autonomia individual, a democracia e a equidade global. A adoção de princípios universais, como o respeito à autodeterminação informacional, à proporcionalidade e à transparência, é essencial para mitigar abusos e garantir a confiança nas relações digitais transnacionais.

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Referências

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.

COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. Judgment of the Court (Grand Chamber), 16 July 2020, Data Protection Commissioner v Facebook Ireland Ltd and Maximillian Schrems (C-311/18).

DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

EUROPEAN UNION. General Data Protection Regulation (GDPR). Regulation (EU) 2016/679. Official Journal of the European Union, L119, 4 May 2016.

GREENLEAF, Graham. Global data privacy laws 2023: Despite new laws, fundamental problems remain. Privacy Laws & Business International Report, n. 183, 2023, p. 10–16.

TENE, Omer; POLONETSKY, Jules. Privacy and Big Data: Making Ends Meet. Stanford Law Review Online, v. 66, p. 25–34, 2013.

Sobre o autor
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

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