Pedidos judiciais e administrativos de disponibilização de dados: limites legais, desafios éticos e o equilíbrio entre interesses públicos e individuais

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Resumo: Os pedidos judiciais e administrativos de disponibilização de dados figuram como instrumentos essenciais na administração da justiça e na regulação estatal, viabilizando investigações e políticas públicas. Todavia, tais requisições suscitam relevantes questões jurídicas e éticas, especialmente no que se refere à proteção da privacidade e à segurança da informação. Este artigo analisa os fundamentos legais que sustentam tais pedidos, os riscos associados à sua amplitude, os dilemas éticos envolvidos na sua formulação e execução, bem como os impactos das novas tecnologias nesse cenário. Defende-se que a efetividade desses mecanismos depende da observância rigorosa de princípios como proporcionalidade, transparência e responsabilidade, de modo a assegurar a proteção dos direitos fundamentais diante da crescente complexidade da sociedade digital.

Palavras-chave: Proteção de dados; privacidade; pedidos judiciais; direito à informação; ética digital.


Introdução

Os pedidos judiciais e administrativos de disponibilização de dados tornaram-se instrumentos cruciais no contexto da governança digital. Ao mesmo tempo em que possibilitam a apuração de ilícitos, o controle regulatório e o aprimoramento das políticas públicas, tais medidas confrontam direitos fundamentais relacionados à privacidade, à proteção de dados pessoais e à liberdade individual. O presente artigo propõe uma análise crítica dos fundamentos normativos que autorizam tais pedidos, dos limites ético-jurídicos que os circunscrevem, bem como das tensões provocadas pelo uso intensivo de tecnologias de informação em procedimentos de coleta e compartilhamento de dados.


Fundamentos legais e alcance das requisições

A prerrogativa do Poder Público de requisitar informações encontra respaldo jurídico em diversos ordenamentos constitucionais e infraconstitucionais. No Brasil, a Constituição Federal assegura a inviolabilidade da intimidade e das comunicações, ressalvando hipóteses de quebra mediante ordem judicial motivada. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), por sua vez, prevê a possibilidade de tratamento de dados para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória, desde que observados os princípios da finalidade, necessidade e adequação. Instrumentos similares são observados no Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR), que estabelece condições específicas para a transferência de dados em contextos legais.

O principal dilema reside no alcance desses pedidos. A ausência de critérios bem definidos pode abrir margem para abusos, como a coleta indiscriminada ou a exigência de informações irrelevantes para a finalidade pretendida. A jurisprudência internacional, como demonstrado no caso “Carpenter v. United States”, da Suprema Corte norte-americana, tem se orientado pela necessidade de preservar o equilíbrio entre segurança pública e garantias individuais, exigindo fundamentos sólidos e justificativas proporcionais à gravidade da medida requerida.


Desafios éticos e responsabilidade institucional

A operacionalização desses pedidos envolve complexos dilemas éticos. Autoridades públicas devem justificar de forma clara e acessível a necessidade de acesso às informações, assegurando que a medida seja estritamente limitada ao necessário. Do outro lado, empresas e instituições detentoras dos dados enfrentam o desafio de colaborar com o poder público sem abdicar de sua responsabilidade com a proteção da privacidade dos titulares.

A transparência nesse processo, ainda que limitada por razões legítimas de sigilo investigativo, é essencial para a preservação da legitimidade institucional. O princípio da prestação de contas (accountability), consagrado tanto na LGPD quanto no GDPR, impõe o dever de documentar, auditar e justificar as decisões relacionadas à coleta, ao armazenamento e ao compartilhamento de dados, especialmente quando realizados sob demanda de autoridades estatais.


Inovações tecnológicas e riscos emergentes

A complexidade do cenário atual é ampliada pelo uso de tecnologias como big data, algoritmos preditivos e inteligência artificial. Ainda que ferramentas como a anonimização possam ser utilizadas como salvaguarda, estudos demonstram que, em muitos casos, a reidentificação de indivíduos permanece possível a partir da triangulação de dados aparentemente genéricos. Isso agrava o risco de violações à privacidade e impõe a necessidade de normas mais robustas, capazes de acompanhar a evolução técnica e garantir a efetividade dos princípios protetivos.


Caminhos para o equilíbrio entre interesses públicos e direitos individuais

A construção de um modelo normativo eficaz para os pedidos de disponibilização de dados exige a conjugação de critérios jurídicos claros, controles institucionais rigorosos e princípios éticos consolidados. A proporcionalidade, a limitação da finalidade e a proteção contra discriminações são elementos essenciais desse arcabouço. Além disso, é necessário fortalecer mecanismos de fiscalização, fomentar a educação digital da população e garantir o direito à informação sobre os próprios dados.

Em nível internacional, a harmonização normativa e a cooperação entre autoridades de proteção de dados são medidas urgentes para enfrentar os desafios de jurisdições com distintos graus de proteção. O respeito à soberania digital não pode se sobrepor aos direitos fundamentais dos cidadãos.


Conclusão

Os pedidos judiciais e administrativos de disponibilização de dados representam instrumentos indispensáveis para o funcionamento eficiente do Estado democrático de direito. No entanto, sua legitimidade e eficácia dependem da rigorosa observância dos limites legais e da sensibilidade ética frente à dignidade humana. Em um contexto de acelerada digitalização e aumento do poder informacional do Estado e das empresas, preservar o equilíbrio entre interesse público e liberdade individual é não apenas uma exigência normativa, mas um imperativo de justiça e de civilidade democrática.

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Referências

BARROS, Mariana Rielli de. Privacidade, dados pessoais e acesso à justiça no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

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MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

NISSENBAUM, Helen. Privacy in Context: Technology, Policy, and the Integrity of Social Life. Stanford: Stanford University Press, 2009.

OHM, Paul. Broken Promises of Privacy: Responding to the Surprising Failure of Anonymization. UCLA Law Review, v. 57, n. 6, p. 1701–1777, 2010.


Abstract: Judicial and administrative requests for data disclosure are essential instruments for modern justice administration and governmental oversight, enabling investigations and public policy implementation. However, these requests raise significant legal and ethical concerns, particularly regarding privacy protection and data security. This article examines the legal grounds supporting such demands, the risks associated with their scope, the ethical dilemmas faced by both public authorities and private entities, and the impact of emerging technologies on the handling of data requests. It argues that the effectiveness of such mechanisms requires strict adherence to principles such as proportionality, transparency, and accountability to safeguard fundamental rights in an increasingly complex digital society.

Keywords: Data protection; privacy; judicial requests; right to information; digital ethics.

Sobre o autor
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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