3. Intolerância Religiosa no Brasil: Realidade e Desafios Jurídicos
A intolerância religiosa é um fenômeno complexo e crescente no Brasil contemporâneo, manifestando-se por meio de discursos de ódio, discriminação, exclusão social, agressões físicas e simbólicas, ataques a templos e perseguições sistemáticas a indivíduos ou grupos por conta de sua fé. Tal realidade contrasta com o ideal constitucional da liberdade religiosa e do pluralismo, pilares essenciais de uma sociedade democrática e inclusiva.
Apesar da proteção normativa robusta conferida pela Constituição Federal de 1988, que assegura o livre exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI), além da inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, a prática cotidiana evidencia que essas garantias não têm sido plenamente respeitadas. Grupos religiosos minoritários, especialmente os praticantes de religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, estão entre os mais afetados pela intolerância.
Essa realidade é agravada por preconceitos históricos, racismo estrutural e pela ausência de políticas públicas eficazes que promovam a diversidade religiosa. A associação equivocada entre essas religiões e a criminalidade ou práticas "demoníacas" perpetua o estigma social, gerando exclusão e marginalização. Casos de depredação de terreiros, ameaças e agressões contra sacerdotes e fiéis são comuns e muitas vezes não recebem a devida atenção das autoridades.
De acordo com dados do Disque 100 (serviço nacional de denúncias de violações de direitos humanos), as denúncias de intolerância religiosa aumentaram significativamente nos últimos anos, refletindo tanto um crescimento das ocorrências quanto uma maior conscientização da população em denunciar tais práticas. Em 2023, o Rio de Janeiro e a Bahia figuraram entre os estados com maior número de registros.
O sistema jurídico brasileiro responde a essa problemática por meio de dispositivos como o artigo 208 do Código Penal, que criminaliza o vilipêndio público a ato ou objeto de culto religioso, além da Lei nº 7.716/1989, que trata dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e que, por interpretação extensiva e com base em julgados, tem sido aplicada também aos casos de intolerância religiosa.
Todavia, a aplicação dessas normas enfrenta obstáculos práticos e culturais. Muitas vítimas têm receio de denunciar por medo de represálias ou por desconfiança no sistema de justiça. Além disso, há uma tendência de parte das autoridades em relativizar ou minimizar a gravidade desses atos, tratando-os como meras "brincadeiras" ou "opiniões pessoais". Essa postura compromete a efetividade da proteção aos direitos fundamentais e contribui para a perpetuação do problema.
Do ponto de vista jurídico, é essencial a adoção de uma abordagem interseccional, que considere a articulação entre religião, raça, gênero e classe social. A intolerância religiosa raramente atua de forma isolada, estando muitas vezes entrelaçada com outras formas de opressão e discriminação. A população negra e periférica, por exemplo, é particularmente vulnerável às agressões por professar religiões afro-brasileiras.
Outro desafio relevante diz respeito ao papel da internet e das redes sociais como instrumentos de disseminação de discursos de ódio. Muitas manifestações de intolerância religiosa ocorrem no ambiente virtual, por meio de vídeos, postagens e comentários ofensivos que incitam à violência ou à ridicularização de práticas religiosas. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) oferecem fundamentos para responsabilização, mas ainda carecem de regulamentação específica e eficaz para lidar com esse tipo de crime.
Diante desse cenário, é urgente que o Poder Público, em todas as suas esferas, adote medidas concretas para a promoção da liberdade religiosa e o enfrentamento da intolerância. Isso inclui a criação de delegacias especializadas, campanhas educativas, capacitação de servidores públicos, políticas de reparação cultural e o fortalecimento da atuação dos órgãos de direitos humanos.
A atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública e das organizações da sociedade civil tem sido crucial nesse processo. Essas instituições têm promovido ações judiciais, audiências públicas, mediações e programas de inclusão que visam combater a intolerância religiosa de forma estruturada e eficaz. Além disso, o Poder Judiciário, ao julgar esses casos, tem papel central na construção de precedentes que afirmem o direito à diversidade e punam com rigor os atos de ódio religioso.
Outro instrumento importante é a educação para a diversidade. O ensino religioso nas escolas públicas, conforme decisão do STF na ADI 4.439, deve ser facultativo, sem caráter proselitista e com respeito à pluralidade de crenças. A inclusão de conteúdos sobre a história e os valores das religiões afro-brasileiras e indígenas pode contribuir para a desconstrução de estereótipos e o fortalecimento de uma cultura de respeito.
Internacionalmente, o Brasil é signatário de tratados que reforçam a liberdade religiosa como um direito humano universal, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Esses instrumentos reforçam a obrigação do Estado de garantir a liberdade de culto e de proteger seus cidadãos contra a intolerância.
Portanto, a intolerância religiosa representa um grave desafio à consolidação de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Combater essa realidade exige compromisso institucional, mobilização social e uma cultura jurídica voltada para a proteção dos direitos fundamentais. É preciso reafirmar que a liberdade religiosa não é um privilégio de maiorias, mas um direito de todos, e que o respeito à diversidade é condição essencial para a paz social e a dignidade da pessoa humana.
4. A Laicidade do Estado Brasileiro e Suas Implicações Jurídicas
A laicidade do Estado brasileiro constitui um dos fundamentos essenciais da República Federativa do Brasil, estabelecida na Constituição de 1988. Trata-se da separação formal entre o Estado e qualquer crença religiosa, garantindo neutralidade frente às diversas manifestações de fé e assegurando, ao mesmo tempo, o pleno exercício da liberdade religiosa por todos os cidadãos. Essa neutralidade é um pilar da democracia e da promoção da dignidade da pessoa humana, permitindo a convivência pacífica entre diferentes crenças e convicções.
O princípio da laicidade se materializa principalmente no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, que proíbe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança". Também veda a utilização de símbolos religiosos em repartições públicas, salvo se tiverem significado histórico-cultural, não propriamente devocional. Essa previsão constitucional garante que o Estado não favoreça nenhuma fé, assegurando isonomia entre crentes e não crentes.
A laicidade brasileira, contudo, não pode ser confundida com hostilidade à religião. Ao contrário, o Estado laico deve proteger o direito à liberdade religiosa de forma ativa e positiva, criando as condições necessárias para que os indivíduos possam exercer suas crenças sem medo de repressão, coerção ou discriminação. Em outras palavras, a laicidade implica tanto a neutralidade estatal quanto a promoção da diversidade religiosa.
Entretanto, a realidade prática demonstra que a laicidade no Brasil enfrenta desafios consideráveis. Um deles é a presença simbólica de elementos religiosos em ambientes públicos e instituições estatais, como crucifixos em tribunais ou escolas. Apesar de muitos desses elementos serem considerados como parte da cultura nacional, há discussões jurídicas sobre sua permanência, especialmente quando confrontados com o princípio da neutralidade religiosa. O STF ainda não firmou posição definitiva sobre a matéria, o que contribui para a insegurança jurídica.
Outro ponto de tensão refere-se à participação de líderes religiosos em cerimônias estatais e à influência de organizações religiosas em políticas públicas. Embora a presença de representantes religiosos em eventos oficiais possa ser vista como expressão cultural, sua atuação na formulação de políticas públicas pode ferir a neutralidade exigida pela laicidade. Um exemplo emblemático é o debate sobre ensino religioso nas escolas públicas.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.439, o STF decidiu, por maioria, que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter caráter confessional, desde que seja facultativo e respeite a liberdade de crença dos estudantes. Embora a decisão tenha buscado conciliar a laicidade com a liberdade religiosa, foi alvo de críticas por supostamente permitir a inserção de doutrinas específicas no ambiente escolar, o que pode gerar exclusão ou discriminação.
Ademais, a relação entre Estado e religião é frequentemente tensionada por pautas legislativas. Projetos de lei com forte influência de grupos religiosos, especialmente em temas como direitos reprodutivos, união homoafetiva, identidade de gênero e ensino de criacionismo nas escolas, suscitam debates intensos sobre os limites da laicidade. Nesses casos, o papel do Parlamento e dos Tribunais é crucial para evitar que interesses religiosos se sobreponham aos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente.
Do ponto de vista jurídico, a laicidade deve ser interpretada à luz do pluralismo e da dignidade da pessoa humana. O Estado não pode agir como promotor de uma fé específica, mas também não pode permitir que o exercício de uma religião sirva de justificativa para suprimir direitos de terceiros. O direito de acreditar – ou de não acreditar – é individual, e sua manifestação deve ocorrer em ambiente de respeito mútuo e igualdade.
É importante destacar que a laicidade brasileira tem caráter cooperativo, diferente da concepção francesa, que é mais rígida e excludente. No Brasil, há a possibilidade de colaboração entre Estado e instituições religiosas para fins de interesse público, como assistência social, saúde, educação e cultura. O Acordo Brasil-Santa Sé, celebrado em 2008 e aprovado pelo Decreto Legislativo nº 698/2009, exemplifica essa possibilidade. Tal acordo reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica e assegura sua atuação no país, sem que isso represente privilégio exclusivo, uma vez que outras instituições religiosas podem pleitear tratamento semelhante.
No campo das decisões judiciais, observa-se uma crescente afirmação da laicidade como garantia da liberdade religiosa. Tribunais têm reafirmado que a imposição de práticas religiosas em escolas públicas, como orações ou leitura de textos sagrados, viola o princípio da neutralidade estatal. Também têm reconhecido a legitimidade de fiéis e comunidades religiosas em buscar reparação por atos de intolerância, reforçando o papel do Estado como protetor da diversidade religiosa.
Para além da dimensão institucional, a promoção da laicidade depende também da educação e da cultura democrática. É preciso fomentar uma consciência coletiva que reconheça a importância da separação entre Estado e religião como forma de assegurar os direitos de todos. O desafio não está apenas nas normas jurídicas, mas na construção de uma sociedade que respeite a alteridade e valorize a convivência entre diferentes tradições religiosas e visões de mundo.
Portanto, a laicidade do Estado brasileiro representa um instrumento de proteção da liberdade religiosa e dos direitos fundamentais. Seu cumprimento exige vigilância constante das instituições democráticas e o fortalecimento de uma cultura de respeito à diversidade. Em tempos de polarização e avanço de discursos intolerantes, reafirmar o caráter laico do Estado é essencial para garantir a convivência harmoniosa em uma sociedade pluralista.
6. A Liberdade Religiosa em Conflito com Outros Direitos Fundamentais
A liberdade religiosa é um direito fundamental consagrado pela Constituição Federal de 1988, sendo reconhecida como um dos pilares do Estado democrático de direito. No entanto, como qualquer outro direito fundamental, ela não é absoluta. Sua aplicação pode, em determinados casos, entrar em conflito com outros direitos igualmente importantes, como o direito à saúde, à educação, à igualdade, à dignidade humana e à liberdade de expressão. O enfrentamento desses conflitos exige uma análise cuidadosa e equilibrada, pois é necessário ponderar os direitos em jogo e encontrar uma solução que respeite os princípios constitucionais.
6.1. Liberdade Religiosa e Direito à Saúde
Um dos mais frequentes campos de colisão entre a liberdade religiosa e outros direitos fundamentais diz respeito ao direito à saúde. Em muitos casos, a prática religiosa pode interferir em questões relacionadas ao cuidado médico, como quando certos tratamentos são recusados com base em crenças religiosas, como ocorre com grupos religiosos que rejeitam a transfusão de sangue ou outros procedimentos médicos.
Um exemplo clássico é o caso de testemunhas de Jeová, que, por motivos religiosos, se opõem à transfusão de sangue. Esse tipo de conflito tem sido frequentemente debatido nos tribunais, especialmente no que se refere à proteção dos direitos de crianças. O STF já se posicionou em diversos julgados que, em situações em que a recusa ao tratamento coloca em risco a vida do paciente, o direito à saúde e à vida devem prevalecer sobre a liberdade religiosa, especialmente quando se trata de menores de idade.
O STF, em sua jurisprudência, tem reconhecido que o direito à vida é um direito absoluto e deve ser protegido de forma prioritária. Entretanto, o Tribunal também tem ponderado a importância da liberdade religiosa, e em alguns casos, tem buscado soluções que conciliem ambos os direitos, como a busca por alternativas médicas compatíveis com a crença religiosa do paciente.
Ainda no campo da saúde, é importante observar que a liberdade religiosa também pode se manifestar em situações relacionadas à assistência espiritual. A Constituição garante o direito de assistência religiosa, o que implica em reconhecer o direito do paciente, mesmo em hospitais públicos ou privados, de ter acesso ao serviço de um líder religioso de sua escolha. A jurisprudência tem se mostrado favorável ao reconhecimento desse direito, desde que ele não interfira nos tratamentos médicos ou cause prejuízos à saúde do paciente.
6.2. Liberdade Religiosa vs. Liberdade de Expressão
Outro ponto de conflito que se torna relevante na sociedade contemporânea é a colisão entre a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Embora ambas sejam liberdades fundamentais garantidas pela Constituição, elas podem entrar em choque quando a manifestação religiosa é usada como meio de discriminação, incitação ao ódio ou discurso de intolerância religiosa.
O direito à liberdade de expressão permite que indivíduos e grupos se manifestem publicamente, incluindo suas crenças religiosas. No entanto, o exercício desse direito não pode ser utilizado para disseminar discursos de ódio, incitação à violência ou discriminação contra outros grupos religiosos ou minorias. Casos de racismo, xenofobia e intolerância religiosa são exemplos de quando a liberdade de expressão se esbarra no respeito à dignidade humana e ao direito à igualdade.
A jurisprudência brasileira tem se posicionado no sentido de que a liberdade religiosa não pode ser utilizada como justificativa para promover discriminação. Em diversas decisões, o STF e outros tribunais têm afirmado que qualquer discurso religioso que incite violência ou discriminação contra indivíduos ou grupos específicos, como as minorias religiosas, não está protegido pela liberdade de expressão. Esse entendimento visa garantir que a convivência pacífica entre as diversas crenças e a sociedade pluralista seja preservada.
Em um julgamento recente, o STF tratou da questão da liberdade de expressão em relação aos limites para ofensas a símbolos religiosos. A Corte reafirmou a ideia de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, e que a proteção de outros direitos fundamentais, como a honra e a dignidade das pessoas e grupos religiosos, pode restringir essa liberdade. Isso demonstra a importância de uma interpretação equilibrada entre os direitos fundamentais, de modo a proteger a liberdade religiosa sem permitir que ela seja utilizada como pretexto para práticas discriminatórias ou violentas.
6.3. Liberdade Religiosa e Direitos das Mulheres
A liberdade religiosa, em determinadas situações, pode entrar em conflito com os direitos das mulheres, principalmente quando certas práticas religiosas ou doutrinas são aplicadas de forma a limitar a liberdade e a autonomia feminina. Em algumas religiões, práticas como o casamento infantil, a subordinação das mulheres à autoridade masculina ou a proibição de determinadas profissões ou direitos civis são justificadas com base em preceitos religiosos.
No Brasil, o Judiciário tem se debruçado sobre esses conflitos, buscando conciliar a liberdade religiosa com os direitos das mulheres. A Constituição de 1988, além de garantir a liberdade religiosa, também assegura a igualdade entre homens e mulheres e protege os direitos das mulheres contra qualquer forma de discriminação.
O STF já se manifestou em casos envolvendo questões de gênero e religião, considerando que práticas que violam os direitos das mulheres não podem ser justificadas com base na liberdade religiosa. Em um exemplo relevante, o STF garantiu o direito das mulheres ao aborto em casos de anencefalia, mesmo em face de convicções religiosas que se opõem ao procedimento, fundamentando a decisão na dignidade da pessoa humana e nos direitos das mulheres à autonomia e à saúde.
A proteção dos direitos das mulheres não deve ser comprometida por práticas religiosas que envolvam discriminação, violência ou cerceamento de sua liberdade. O Judiciário, nesse sentido, tem atuado para assegurar que as mulheres possam exercer seus direitos sem sofrerem restrições ou discriminação com base em crenças religiosas.
6.4. Liberdade Religiosa e Direito à Educação
Outro campo de tensionamento da liberdade religiosa ocorre no âmbito da educação. A Constituição brasileira assegura o direito à educação para todos os cidadãos e estabelece o ensino religioso como facultativo nas escolas públicas. No entanto, em alguns casos, a educação religiosa tem sido imposta ou privilegiada, gerando conflitos com a liberdade religiosa dos alunos.
O Supremo tem se pronunciado sobre a constitucionalidade do ensino religioso nas escolas públicas, reconhecendo a necessidade de que este seja oferecido de maneira laica, sem imposição de dogmas ou doutrinas de uma religião específica. Isso se alinha ao princípio da laicidade do Estado, que proíbe qualquer forma de estabelecimento de uma religião oficial ou a promoção de uma religião em detrimento de outras.
Entretanto, alguns grupos religiosos têm defendido o direito de ter suas crenças ensinadas nas escolas públicas, o que levanta questões sobre a forma como o ensino religioso deve ser estruturado para respeitar a diversidade religiosa e a liberdade de crença dos estudantes. A jurisprudência tem buscado equilibrar o direito à educação com o direito à liberdade religiosa, garantindo que as aulas de religião sejam ministradas de forma opcional e sem imposição.
Além disso, em alguns casos, surgem discussões sobre a participação de crianças e jovens em atividades religiosas fora da escola, como missas ou cultos, especialmente quando os pais se opõem a essa participação com base em suas crenças religiosas. Em situações como essas, o Judiciário tem considerado a autonomia da família, mas também o direito das crianças à educação, ao lazer e à liberdade de expressão religiosa.
6.5. Liberdade Religiosa e Direitos Fundamentais Coletivos
A liberdade religiosa também pode colidir com direitos fundamentais coletivos, como o direito ao meio ambiente, à segurança pública e à proteção de direitos animais. Um exemplo claro desse conflito ocorre quando práticas religiosas envolvem o uso de animais em rituais, como acontece em algumas religiões afro-brasileiras. Embora a liberdade religiosa garanta o direito de professar e manifestar a fé, o uso de animais em cultos religiosos pode entrar em conflito com normas de proteção ambiental e de bem-estar animal.
O Estado tem a responsabilidade de proteger os direitos dos animais e garantir que as práticas religiosas não resultem em crueldade ou em danos ao meio ambiente. Em casos como esses, a jurisprudência tem buscado equilibrar a proteção da liberdade religiosa com a necessidade de respeitar os direitos dos animais, muitas vezes por meio de restrições que busquem garantir o respeito aos direitos fundamentais dos animais, sem comprometer a liberdade religiosa.
Outro exemplo de colisão com direitos coletivos ocorre no contexto de manifestações religiosas públicas, como marchas e eventos religiosos, que podem afetar o direito à mobilidade urbana e ao direito à segurança pública. O Judiciário tem sido acionado para equilibrar esses direitos, garantindo que a liberdade religiosa não prejudique o exercício de outros direitos igualmente fundamentais.
6.6. A Jurisprudência Brasileira em Matéria de Liberdade Religiosa
A jurisprudência brasileira tem desempenhado um papel relevante na consolidação e na interpretação dos direitos relacionados à liberdade religiosa. O Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, tem sido instância fundamental para garantir que os princípios constitucionais que envolvem a liberdade de crença, a laicidade do Estado e a igualdade religiosa sejam respeitados diante de casos concretos, muitas vezes marcados por tensões sociais e políticas.
O STF tem reiteradamente afirmado que a liberdade religiosa é um direito fundamental de primeira geração, consagrado nos artigos 5º, inciso VI, e 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988. Esses dispositivos asseguram não apenas o direito de professar e manifestar livremente a fé religiosa, como também protegem os indivíduos contra qualquer tipo de coerção estatal ou discriminação decorrente de sua crença ou descrença.
Um dos julgados paradigmáticos sobre a matéria foi o julgamento do Recurso Extraordinário nº 459.510, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa, no qual se discutiu a obrigatoriedade da frequência às aulas de estudantes adventistas do sétimo dia, que alegavam incompatibilidade com a prática religiosa de guardar o sábado. O STF decidiu, à luz da liberdade de crença e da dignidade da pessoa humana, que a escola deveria oferecer meios alternativos de avaliação, garantindo ao aluno o exercício de sua fé sem prejuízo educacional. Este caso tornou-se símbolo da proteção jurisdicional ao direito de não ser penalizado por professar determinada crença.
Outro julgamento relevante foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.439, mencionada anteriormente, que tratou do ensino religioso nas escolas públicas. O STF entendeu ser constitucional o ensino confessional facultativo, desde que oferecido de forma não coercitiva e respeitando a diversidade religiosa do país. Embora tenha sido uma decisão polêmica, ela reforçou o compromisso da Corte com o pluralismo e com a liberdade de escolha dos alunos e de seus responsáveis.
Ainda na seara da jurisprudência constitucional, o STF também já enfrentou o debate sobre símbolos religiosos em repartições públicas. Embora não haja decisão vinculante, ministros já se manifestaram sobre a necessidade de o Estado manter neutralidade simbólica, evitando a ostentação de símbolos religiosos em ambientes que representam todos os cidadãos, como fóruns e tribunais. O debate gira em torno da tensão entre tradição cultural e laicidade institucional.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também tem contribuído para a consolidação da jurisprudência protetiva da liberdade religiosa. Em diversas decisões, o tribunal reafirmou o dever do Estado de garantir o exercício das práticas religiosas, especialmente em ambientes prisionais, escolares e hospitais. Em um caso específico, a Corte determinou que um hospital público deveria permitir a entrada de um representante religioso para prestar assistência espiritual a um paciente terminal, reconhecendo que tal direito está previsto na Lei nº 9.982/2000 e integra o conceito de dignidade da pessoa humana.
O Judiciário também tem se debruçado sobre casos de intolerância religiosa. Em situações envolvendo discriminação, ofensas ou ataques a templos e comunidades religiosas, a jurisprudência tem caminhado para reconhecer a gravidade desses atos, muitas vezes equiparando-os a crimes de ódio. A Lei nº 9.459/1997, que trata dos crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, foi interpretada de forma extensiva por alguns tribunais para abranger atos motivados por intolerância religiosa, especialmente contra religiões de matriz africana.
Em 2020, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proferiu uma importante decisão condenando indivíduos por incitação ao ódio religioso em redes sociais. No caso, os réus publicaram vídeos com mensagens discriminatórias contra praticantes do candomblé e da umbanda, o que foi reconhecido como violação do direito à liberdade religiosa e à dignidade da pessoa humana. Essa decisão evidencia o entendimento de que a liberdade de expressão não pode ser usada como escudo para a propagação do preconceito.
Ademais, as cortes brasileiras têm sido provocadas a decidir sobre a possibilidade de objeção de consciência em casos de imposição legal. Um exemplo recorrente refere-se à recusa de testemunhas de determinadas religiões em jurar sobre a Bíblia ou participar de cerimônias cívicas que envolvem símbolos religiosos. O Judiciário tem reconhecido, nesses casos, que a liberdade de consciência deve ser respeitada, desde que não haja afronta ao interesse público ou à ordem jurídica.
Importante destacar também o papel dos tribunais trabalhistas na proteção da liberdade religiosa. Há jurisprudência reconhecendo o direito de empregados a ajustes em sua jornada de trabalho para compatibilizá-la com práticas religiosas, desde que não haja prejuízo à atividade econômica ou desproporcionalidade no pedido. Esse entendimento busca equilibrar o direito individual à fé com a viabilidade prática da atividade contratual.
No plano internacional, o Brasil também é signatário de tratados que protegem a liberdade religiosa, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Tais tratados, quando ratificados pelo Brasil, integram o ordenamento jurídico interno e reforçam a obrigação do Judiciário em garantir e interpretar os direitos fundamentais à luz dos compromissos internacionais.
Por fim, a análise da jurisprudência revela que, embora haja avanços significativos, ainda existem desafios. A aplicação do princípio da laicidade e da liberdade religiosa exige sensibilidade por parte dos magistrados e uma interpretação constitucional voltada à promoção do pluralismo, da dignidade e da paz social. O Judiciário, enquanto guardião dos direitos fundamentais, tem o papel de evitar que a religião se transforme em instrumento de opressão ou exclusão.
Assim, a jurisprudência brasileira, embora em constante construção, revela um esforço contínuo das instituições judiciais para assegurar que a liberdade religiosa seja protegida de forma ampla, garantindo que o Estado permaneça neutro diante das crenças, ao mesmo tempo em que atua para proteger os cidadãos contra intolerância, discriminação e violação de direitos.