Resumo: O avanço das redes sociais e a crescente exposição de crianças e adolescentes em plataformas digitais vêm levantando preocupações sobre os limites entre diversão familiar, monetização de conteúdo e exploração infantil. A legislação brasileira, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), carece de atualizações que contemplem esse novo cenário. Este artigo propõe uma reflexão jurídica e psicológica sobre os riscos dessa exposição digital precoce, destacando a urgência de regulamentação específica, baseada na proteção integral dos direitos da criança e do adolescente, conforme previsto na Constituição Federal e no próprio ECA. São discutidas experiências internacionais, propostas legislativas e os impactos psicológicos dessa prática na infância.
1. Introdução
O fenômeno das "famílias influencers" tornou-se comum nas redes sociais, com crianças ganhando visibilidade, seguidores e, muitas vezes, sendo parte fundamental do modelo de negócio de seus responsáveis. Essa realidade levanta uma questão central: até que ponto o conteúdo criado em família permanece no campo do entretenimento, e quando passa a configurar uma forma de exploração da imagem e do trabalho infantil?
Embora o ECA (Lei 8.069/1990) ofereça uma base legal sólida, ele foi concebido em uma época anterior à ascensão da internet e, portanto, apresenta lacunas em relação ao uso da imagem, monetização e exposição de crianças em plataformas como YouTube, Instagram e TikTok.
2. Redes Sociais e a Exploração Infantil
Crianças vêm sendo utilizadas para gerar conteúdo lucrativo — muitas vezes de forma contínua, sem descanso ou consciência dos impactos a longo prazo. A linha entre brincadeira e trabalho é tênue e, com frequência, ultrapassada.
Casos como o da youtuber americana Piper Rockelle, cujos pais enfrentaram processos por abuso psicológico e exploração comercial, e a legislação francesa de 2020 que exige que os lucros gerados por crianças influencers sejam protegidos em conta bancária exclusiva, são exemplos do avanço do debate internacional.
No Brasil, ainda impera a informalidade. A ausência de regulamentação abre espaço para abusos, seja por ganância, seja por desconhecimento. Onde se encontra o limite entre diversão entre pais e filhos e monetização e/ou exploração? Qual o grau de manipulação envolvido para que a criança participe? São dúvidas legítimas.
Muitas vezes, os próprios responsáveis veem nas redes sociais uma oportunidade de aproximação com seus filhos ou mesmo uma atividade aparentemente inocente. No entanto, impor rotinas de gravações, esperar resultados e colocar pressão por engajamento são práticas prejudiciais à saúde mental da criança. Especialmente em fases críticas do desenvolvimento cognitivo e afetivo, essas práticas podem gerar traumas profundos, como defendido por Lev Vygotsky, que ressalta a importância da interação livre e espontânea para o desenvolvimento psíquico infantil (VYGOTSKY, 1991).
3. Limitações do Estatuto da Criança e do Adolescente
O ECA é um marco na proteção dos direitos das crianças e adolescentes. No entanto, ao tratar do trabalho infantil, da imagem e da publicidade, ele não prevê com clareza as novas formas de atuação digital.
Não há dispositivo específico sobre monetização em redes sociais, nem diretrizes sobre tempo de exposição, consentimento, direitos patrimoniais ou responsabilidade das plataformas. Essa lacuna expõe os menores a riscos jurídicos e psicológicos.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) trouxe avanços ao abordar o tratamento de dados de crianças, mas ainda é insuficiente diante da complexidade da exposição infantil em ambientes digitais.
4. Propostas de Regulamentação e Atualização
É essencial propor uma legislação específica que atue sobre três frentes:
Obrigatoriedade de ordem judicial para monetizar conteúdo infantil.
Reserva de parte dos lucros em nome da criança, em formato de fundo protegido (como já ocorre na França).
Exigência de acompanhamento psicológico e, se necessário, psiquiátrico, para crianças que atuem como influencers.
Multas severas e possibilidade de perda de guarda em casos de exposição abusiva.
Além disso, a atualização do ECA deve incluir um capítulo exclusivo sobre proteção digital, estabelecendo limites de tempo, regras de consentimento e fiscalização das plataformas.
5. Desafios e Caminhos Possíveis
A regulamentação enfrentará desafios jurídicos, culturais e políticos. Muitos veem as redes sociais como um ambiente de livre expressão, mas é dever do Estado garantir que essa liberdade não infrinja os direitos de crianças em desenvolvimento.
A aceitação social também depende de conscientização. Por isso, propõe-se a implementação de programas educativos nas escolas, voltados a pais e filhos, com base em fundamentos psicológicos, a fim de explicar os riscos da superexposição digital e as consequências para a saúde mental.
6. Considerações Finais
A presença cada vez mais intensa do ambiente digital na vida das crianças exige que o Direito acompanhe essa transformação. A falta de regulamentação e de fiscalização pode ter efeitos devastadores sobre uma geração inteira.
É urgente que a doutrina jurídica se atualize antes que os danos sejam irreversíveis. A criação de normas claras, protetivas e baseadas em evidências psicológicas é um passo essencial para a construção de um ambiente digital mais ético, seguro e saudável para nossas crianças.
Referências
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/1990.
BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – Lei 13.709/2018.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Art. 227.
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VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
UNICEF. Child online protection guidelines. Geneva: ITU, 2020.
THE GUARDIAN. YouTube star Piper Rockelle's parents accused of abuse, 2022.
ASSEMBLÉE NATIONALE. Loi nº 2020-1266 sur les enfants influenceurs, França.
FOLHA DE S.PAULO. Crianças influencers: até onde vai a diversão?, 2023.