Introdução
A presente pesquisa debruça-se sobre a problemática da falácia do consentimento na era digital, analisando criticamente o modelo previsto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e propondo alternativas para uma proteção de dados mais efetiva.
1. Fundamentos Constitucionais da Proteção de Dados Pessoais
A Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à privacidade como direito fundamental (art. 5º, X). Com a Emenda Constitucional nº 115/2022, a proteção de dados pessoais foi expressamente elevada à mesma categoria (art. 5º, LXXIX). Esse avanço normativo reconhece que o controle sobre os próprios dados é essencial à dignidade da pessoa humana e à liberdade individual.
Nesse contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018 – LGPD) surge como instrumento de concretização desses direitos, estabelecendo princípios, regras e garantias que visam assegurar ao titular a autodeterminação informativa. O consentimento livre, informado e inequívoco é uma das bases legais centrais previstas na LGPD, sendo condição de validade para o tratamento de dados pessoais em diversas situações.
2. A Falácia do Consentimento Livre no Ambiente Digital
Embora a legislação exija consentimento livre, o ambiente digital impõe uma realidade na qual essa liberdade é severamente comprometida. Interfaces coercitivas, como cookie walls, opt-ins obrigatórios e políticas de privacidade extensas e confusas, impõem uma aceitação mecânica e desinformada por parte dos usuários.
A relação entre controladores e titulares é marcada por uma profunda assimetria de poder e informação, inviabilizando escolhas verdadeiramente conscientes. Questiona-se, assim, a legitimidade do consentimento quando o acesso a um serviço digital depende da aceitação incondicional de suas políticas.
É comum, por exemplo, que testes gratuitos exijam a inserção de dados sensíveis, como o número do cartão de crédito, mesmo sem previsão de cobrança imediata. Por que o titular deve se expor para usufruir de algo anunciado como gratuito? Que garantias existem de que tais dados não serão compartilhados, vendidos ou utilizados de forma escusa?
A realidade revela que o consentimento, muitas vezes, é um formalismo jurídico que legitima práticas predatórias de coleta e monetização massiva de dados. Tal manipulação é facilitada pelo uso de dark patterns — elementos de interface projetados para induzir escolhas favoráveis aos interesses econômicos do controlador, em detrimento da vontade do titular.
3. Direito, Tecnologia e o Dilema Ético: É Possível Escolher Sob Pressão?
Na sociedade digitalizada, o acesso a plataformas, aplicativos e serviços tornou-se essencial para o desempenho no trabalho, nos estudos e na vida cotidiana. Nesse contexto, o consentimento perde seu caráter voluntário e torna-se exigência para a inclusão social. A recusa pode significar exclusão digital.
A LGPD, portanto, deve ser reinterpretada como um instrumento de proteção contra consentimentos forçados, assegurando que o titular disponha de alternativas reais de escolha. Se uma pessoa depende de determinado aplicativo para estudar ou trabalhar, ela é compelida a aceitar termos que não compreende ou com os quais não concorda.
Esse dilema é ainda mais crítico quando se trata de grupos vulneráveis, como idosos ou pessoas com baixa alfabetização digital. Para esses públicos, devem ser estabelecidas normas específicas que promovam acessibilidade, simplifiquem as políticas de dados e imponham deveres reforçados aos controladores, com base em marcos como o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do Consumidor.
4. Caminhos para a Efetivação da Autonomia Informacional
Para que a LGPD alcance sua eficácia protetiva, é necessário avançar em três eixos fundamentais: regulação, fiscalização e educação.
Regulação: normas mais rígidas devem ser adotadas quanto ao design de sites e aplicativos, proibindo práticas enganosas como dark patterns, exigindo maior transparência e vedando a exigência de dados desnecessários como condição para o uso de serviços básicos. A imposição de cookies sem opção real de recusa deve ser passível de sanção.
Fiscalização: é imprescindível o fortalecimento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), com recursos humanos e técnicos que lhe permitam monitorar, fiscalizar e aplicar sanções eficazes e dissuasórias.
Educação: a educação digital deve ser tratada como política pública prioritária, sobretudo para idosos e indivíduos tecnicamente inaptos. O Estado deve promover cursos acessíveis e gratuitos, capacitando os cidadãos para o uso crítico da internet e para a autoproteção contra golpes e exposições indevidas de dados pessoais.
Conclusão
O consentimento, como idealizado pela LGPD, encontra-se hoje fragilizado pela arquitetura coercitiva e opaca do ambiente digital. Reduzido a um clique obrigatório, perde seu valor jurídico, ético e protetivo. O discurso da liberdade de escolha transforma-se em retórica legitimadora da vigilância algorítmica e da exploração econômica da intimidade.
É necessário, portanto, repensar o modelo de consentimento como fundamento do tratamento de dados pessoais, reconhecendo as limitações impostas pela realidade digital. O futuro da privacidade exige uma abordagem mais crítica, interventiva e solidária — que considere as vulnerabilidades informacionais e promova, efetivamente, a dignidade do cidadão.