16 maio 2025
Carlos Roberto Claro1
O livro “A sociedade do espetáculo” foi escrito por Guy Debord há mais de cinquenta e sete anos2 e a ele retorno neste pequeno ensaio, por entender conveniente. A obra de fôlego nunca se mostrou tão atual em tempos pós-modernos [ou na época denominada de “transpós-modernidade”, consoante Edmundo L. de Arruda Jr., e Marcus Fabiano Gonçalves3].
Aliás, o vocábulo ‘moderno’ é ambíguo, resultando inúmeras vezes pernicioso o seu manejo, sobretudo na medida em que dá lugar ao uso, pelos intelectuais, de expressão dele derivada – pós-moderno’- que, a um só tempo, tudo e nada pode significar de acordo com Eros Grau4.
Inicialmente, importante destacar que os tempos são outros e possível afirmar que a sociedade pós-moderna se vê diante de inegáveis reformas estruturais, observa uma nova revolução [transformação] industrial, com diárias inovações no modo de produção capitalista e o surgimento da Inteligência artificial [inclusive no âmbito industrial – robotização inteligente em vários setores produtivos da economia5], por exemplo; uma nova fase do sistema capitalista está sendo vivenciada. Não se olvide da inegável disrupção vivenciada, colocando-se em relevo a “hipercultura universal”, a “cultura hipertecnológica”, o “hipercapitalismo” e a “sociedade universal de consumidores”6.
O autor Guy Debord cunhou a expressão “sociedade do espetáculo” e sua dimensão história está na seguinte frase da obra referenciada:
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de ‘espetáculos’. Tudo o que era vivido diretamente tronou-se uma representação7
Na referida obra, Guy Debord questiona de forma contundente a unificação do espetáculo, e a proletarização do mundo [isso há quase seis décadas]. Para os que defendem a tese de que o mundo vive a chamada era pós-moderna - que teria surgido a partir da segunda metade do século passado -, houve profundas e significativas modificações globais, com acentuada implementação de técnicas de controle, de técnicas de manipulação das massas, sendo afastadas as idéias iluministas.
Para os que defendem a ideia de que o mundo apenas e tão somente vive nova fase da modernidade, o modelo global, sobretudo a contar da década de 1970, passou a viver acentuado e desenfreado processo tecnológico e de informação, a par da convivência com uma sociedade eminentemente de consumo exacerbado [hiperexposição, com extensivos sinais de riqueza e aparentar ter – conforme Schopenhauer].
Passadas quase seis décadas desde a primeira edição da obra em exame, nota-se que o sistema presente ainda mantém-se girando em torno do [mesmo] espetáculo tão bem descrito por Debord.
Em outras palavras, prepondera a ideia do aparentar ser e ter, deixando-se de lado o ser; tem prevalência o marketing pessoal nas redes sociais [sociedade midiática]; persiste a mercadoria [e o exacerbado consumo] como centro das atenções. O sistema capitalista globalizante, no qual o Brasil se insere, impõe à sociedade [pós-moderna] certos costumes, estilos de vida, modo de conduta em grupos, e principalmente estabelece quais padrões hão de ser seguidos. As redes sociais servem de exemplo. A massificação tecnológica, principalmente no campo da informação, e apenas para se não desviar do tema ora proposto, impõe ao cidadão certas formas de procedimento, de agir, sendo que o novo já é considerado obsoleto, porque há imediatamente um outro novo8.
Paralelamente a isso, o mundo atual, de economia globalizada, assiste ao espetáculo do controle sobre o homem, cujos efeitos imediatos saltam aos olhos, tal como bem esclareceu Foucault9. Escreveu Debord que toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de ‘espetáculos’. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação10.
Pinçando-se algumas das contundentes e profundas teses desenvolvidas no texto em foco, nota-se a sua atualidade no tempo pós-moderno. Muitos dos pensamentos de Guy Debord, como dito, são também deste tempo pós-moderno, pertencem ao século novo, até mesmo porque, como disse o próprio autor, uma teoria crítica como esta não se altera, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão11. Novas condições não surgiram no século 21, de modo que a teoria desenvolvida nos anos 60 mantém-se hígida.
Eis algumas teses importantes:
O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, medida por imagens12;
No mundo ‘realmente invertido’, a verdade é um momento do que é falso13;
Como indispensável adorno dos objetos produzidos agora, como demonstração geral da racionalidade do sistema, e como setor econômico avançado que molda diretamente uma multidão crescente de imagens-objeto, o espetáculo é a ‘principal produção’ da sociedade atual14;
A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ‘ser’ para o ‘ter’. A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ‘ter’ para o ‘parecer’, do qual o ‘ter’ efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. Ao mesmo tempo, toda realidade individual tornou-se social, diretamente dependente da força social, moldada por ela. Só lhe é permitido aparecer naquilo que ela ‘não é’15;
O mundo presente e ausente que o espetáculo ‘faz ver’ é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado ‘como ele é’, pois seu movimento é idêntico ao ‘afastamento’ dos homens entre si e em relação a tudo que produzem16
Por fim, e apenas para não se tornar enfadonho, e muito embora o tema seja deveras interessante, cabe ressaltar uma tese bastante profunda, e que merece maior reflexão:
O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. O dinheiro dominou a sociedade como representação da equivalência geral, isto é, do caráter intercambiável dos bens múltiplos, cujo uso permanecia incomparável. O espetáculo é seu complemento moderno desenvolvido, no qual a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco, como uma equivalência geral àquilo que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que ‘apenas se olha’, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é apenas o servidor do ‘pseudo-uso’, mas já é em si mesmo o pseudo-uso da vida17
A teoria de Debord, apresentada na obra em comento, é de ser ponderada, refletida na sua essência, especialmente em temos pós-modernos, de “hipercultura universal”, conforme Lipovetsky e Serroy.
As reflexões críticas do autor, muitas vezes cáusticas qual se percebe da simples leitura de alguns axiomas ora transcritos, talvez sejam necessárias, quer-se crer, a fim de perceber que a globalização econômica, a abertura de fronteiras de forma desorganizada, olvida de um elemento chave, indispensável: o ser humano.
Nessa esteira, a globalização econômica, cujos efeitos já são questionados até e principalmente por países desenvolvidos, também tem em seu contexto um paradoxo evidente e descritível a olho nu, apresentado pelo próprio Guy Debord: há o isolamento das ‘multidões solitárias’. Cabem reflexões, quer-se crer.
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Advogado em Direito Empresarial; Mestre em Direito; Especialista em Direito Empresarial; Parecerista e Pesquisador; Membro e Diretor Acadêmico da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-PR (gestão 2025-2027).
La Société du Spectacle, lançada em Paris pela primeira vez no mês de novembro de 1967 pela Éditions Buchet-Chastel. Escreve Ludwig Feuerbach: Et sans doute notre temps...préfère l’iagem à la chose, la copie à l’original, la rprésentation à la réalité, l’apparence à l’être...DEBORD, Guy, Op. cit., p. 13.︎
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ARRUDA JR. Edmundo L. de. GONÇALVES, Marcus F. Fundamentação ética e hermenêutica. Alternativas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002, p. 28. Com o surgimento da pós-modernidade, na década de 1950, também nasceu o cenário cibernético-informativo e informacional, de acordo com Wilmar do Valle Barbosa. In - LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 5ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1998, viii. Tradução: Ricardo Corrêa Barbosa. Posfácio: Silviano Santiago. De acordo com Jean-François Lyotard, o saber será o grande desafio da competição mundial pelo poder e haverá grande disputa pelo domínio de informações, de tecnologia e do mercado competitivo, com a ‘mercantilização do saber”. Op. cit., p. 05. A inteligência artificial – inclusive no âmbito do Direito - pode ser um bom exemplo dos novos tempos, conforme já exposto.︎
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O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 68. Destaques no original. Prossegue o autor: A certos intelectuais encanta o hermetismo, que lhes confere a ‘aparência’ de sábios. O emprego de vocábulos e expressões herméticas, cujo significado não é jamais comunicado explicitadamente aos destinatários dos discursos onde elas comparecem, confere enorme poder aos que as pronunciam. A generalidade das pessoas imediatamente passa a dedicar profunda deferência e respeito aos que pronunciam palavras e expressões incompreensíveis. E assim prosseguem seu desfile, garbosamente, os ‘intelectuais’...Evidentemente, não estou a desprezar o emprego do vocábulo ‘pós-moderno, in genere’; nem a prática de seu uso nos discursos dos intelectuais. Mas por cento prova irritação (ao menos em mim) aquele desfile de falsos profetas, urdidos em pura ‘aparência de saber’.
[...] Enquanto não convencionado o significado conceitual de ‘pós-moderno’, em ‘cada discurso’, todos os discursos serão vazios de significação. Não basta, ao ouvi-los, considerarmos esta ou aquela manifestação 9’concepção’) de ‘pós-moderno’. Necessitamos do ‘conceito’, não de uma ‘concepção’ de ‘pós-moderno’. Op. cit., pp. 68-69. Destaques na obra.︎
Interessante notar que grandes companhias, que dominavam determinados segmentos de mercado, simplesmente desapareceram, entraram em falência, diante da obsolescência e não utilização de muitos bens. Determinadas atividades profissionais talvez não mais existam no futuro, porquanto as máquinas fazem o trabalho; oportunidades de negócios certamente serão radicalmente alteradas; os computadores se estão tornando cada vez mais inteligentes; as mudanças na economia estão ocorrendo diariamente.︎
Conforme Gilles Lipovetsky e Jean Serroy. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Os autores escrevem que os trabalhadores são “descartáveis” (Op. cit., p. 37, fazendo lembrar do fenômeno da reificação, estudado com profundidade por Georg Lukács em sua obra História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.︎
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A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13. Destaques na obra. De acordo com Cláudio Novaes Pinto Coelho, o conceito de sociedade do espetáculo não é um substituto de sociedade capitalista, assim como não significa a existência de uma sociedade dominada pelos meios de comunicação, particularmente pelos mecanismos de produção de imagens [...] Conforme argumenta Debord, o espetáculo é um elemento articulador, ele estabelece mediações entre as várias dimensões da realidade social capitalista. Introdução: em torno do conceito de sociedade do espetáculo. In – Comunicação e sociedade. COELHO, Cláudio N. P., CASTRO, Valdir José de. (orgs.). São Paulo: Paulus, 2006, pp. 14-15.︎
Escreve Debord: La société mdernisée jusqu’au stade du spectaculaire intégré se carctérise par l’effet combine de cinq traits pricipaux, qui sont: le renouvellement technologique incessant; la fusion éconômico-étatique; le secret généralisé; le faux sans réplique; un présent perpétuel. Comentaires sur la société du spectacle. Paris: Éditions Gallimard, 1992, p. 25.︎
Segundo o filósofo, o homem é visto nada mais como objeto e sujeito da prática do poder.︎
La Société du Spectacle. Paris:Éditions Gallimard, 1992, p. 15. Grifo consta do original.︎
La société du spectacle. Op. cit., p. 7.︎
Op. cit., p. 16.︎
Idem, p. 19. Grifos constam do original.︎
Idem, pp.21-22. Grifos no original.︎
Tese 17, p. 22, cit., e grifos estão no texto.︎
Op. cit., p. 36. Grifos constam da obra.︎
Axioma 49, pp. 44-45.︎