O ordenamento jurídico assegura como às pessoas com deficiência (PcD) o acesso diferenciado ao trabalho na administração e empresas públicas dos entes da Federação - União, Distrito Federal, Estados e Municípios (Constituição da República, artigos 1º, caput e II e III, 5º, 6º, 7º, caput e XXXI, e 37, caput e incisos II e VIII).
Por sua vez, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 27, g), que tem status de Emenda Constitucional, também preceitua a oportunidade de trabalho no setor público. Define pessoas com deficiência as que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
A deficiência física, conforme o Decreto 3.298/1999, artigo 4º, I ao IV, abrange alterações orgânicas que comprometem as funções do corpo humano; a deficiência auditiva (perda bilateral, parcial ou total, da audição); visual, que restringe de modo significativo ou impede a visão.
Descreve a deficiência mental como limitações em duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, como comunicação, cuidado pessoal, habilidades sociais, uso dos recursos da comunidade, saúde, segurança, habilidades acadêmicas, lazer e trabalho. Indica-se como deficiência múltipla quem tem mais de uma dessas deficiências associadas.
A Lei 7853/1989 preceitua o dever de apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, ressaltando:
“Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico. …
III - na área da formação profissional e do trabalho:
…
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência;
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado,...”
A Lei Federal nº 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), regulamentou a proteção ao mercado de trabalho das PcD. Preceitua o acesso ao trabalho das pessoas com deficiência que podem realizar de forma razoável suas funções. Por consequência, veda-se exigir a aptidão plena para ocupar um cargo ou emprego público, a fim de permitir a inclusão social e econômica. Vale destacar:
“Art. 34. A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
… § 3º É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.”
A Constituição Federal preconiza, artigo 37, VIII, uma reserva de vagas em concursos para cargos e empregos públicos para as PcD se incluírem na sociedade e economia visando a compensar, por meio de ações afirmativas, os desníveis e as dificuldades que afetam os indivíduos que compõem esse grupo vulnerável.
Trata-se de matéria de competência concorrente (CR, artigos 23, II, e 24, XIV). Cada ente da Federação deve regular o percentual de vagas, a fim de conferir efetividade à disposição constitucional. A título de exemplo, a União estabeleceu a reserva de vagas em certame entre 5% e 20% (Lei 8.112/90, artigo 5º, § 2º, e Decreto 9.508/18, artigo 1º, § 1º).
A Carta Magna (artigo 203, IV e V) ainda assegura, por outro lado, uma renda mínima às pessoas com deficiência que não possam prover o próprio sustento ou por sua família.
Ademais, mencionado Decreto 9.508/18 determina que
"a pessoa portadora de deficiência … participará de concurso em igualdade de condições com os demais candidatos no que concerne: I- ao conteúdo das provas; II - à avaliação e aos critérios de aprovação; III - ao horário e ao local de aplicação das provas; e IV - a nota mínima exigida para todos os demais candidatos".
Também previu a adequação de critérios para a realização e a avaliação das provas à deficiência do candidato, a ser efetivada por meio do acesso a tecnologias assistivas e a adaptações razoáveis. O candidato com deficiência pode solicitar tratamento diferenciado e tempo adicional para realizar as provas.
Os editais, portanto, não podem inovar em termos de exigências às PcD. Devem permitir a participação na disputa ao portador de deficiência que atenda aos critérios da ordem legal.
Além disso, deve-se avaliar, por critérios razoáveis no período de estágio probatório, se o candidato pode, com características individuais de cada pessoa com deficiência, desempenhar as atribuições. Caracteriza-se apto a prover o cargo ou emprego público se preservada a funcionalidade mesmo nos casos em que não consiga um desempenho pleno.
Não se pode, portanto, eliminar de modo precoce e discriminatório - antes de oportunizar o trabalho - o candidato com deficiência que pode desempenhar as funções justamente como forma de assegurar materialmente o direito ao trabalho e conferir efetividade às políticas inclusivas que a ordem legal preconiza.
Destaca-se o entendimento do Judiciário sobre esses aspectos:
“Concurso público. Pessoa portadora de deficiência. Reserva percentual de cargos e empregos públicos (CF, art. 37, VIII). Ocorrência, na espécie, dos requisitos necessários ao reconhecimento do direito vindicado pela recorrente. Atendimento, no caso, da exigência de compatibilidade entre o estado de deficiência e o conteúdo ocupacional ou funcional do cargo público disputado, independentemente de a deficiência produzir dificuldade para o exercício da atividade funcional. Inadmissibilidade da exigência adicional de a situação de deficiência também produzir "dificuldades para o desempenho das funções do cargo".
A vigente Constituição da República, ao proclamar e assegurar a reserva de vagas em concursos públicos para os portadores de deficiência, consagrou cláusula de proteção viabilizadora de ações afirmativas em favor de tais pessoas, o que veio a ser concretizado com a edição de atos legislativos, como as Leis 7.853/1989 e 8.112/1990 (art. 5º, § 2º), e com a celebração da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), já formalmente incorporada, com força, hierarquia e eficácia constitucionais (CF, art. 5º, § 3º), ao plano do ordenamento positivo interno do Estado brasileiro. Essa Convenção das Nações Unidas, que atribui maior densidade normativa à cláusula fundada no inciso VIII do art. 37. da Constituição da República, legitima a instituição e a implementação, pelo poder público, de mecanismos compensatórios destinados a corrigir as profundas desvantagens sociais que afetam as pessoas vulneráveis, em ordem a propiciar-lhes maior grau de inclusão e a viabilizar a sua efetiva participação, em condições equânimes e mais justas, na vida econômica, social e cultural do País.”
(STF. RMS 32.732 AgR. DJe 1.08.2014)
CONCURSO PÚBLICO. VISÃO MONOCULAR. DEFICIENTE VISUAL. EXCLUSÃO DO BENEFÍCIO DA RESERVA DE VAGA. ILEGALIDADE.
… Os benefícios inerentes à Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência devem ser estendidos ao portador de visão monocular, que possui direito de concorrer, em concurso público, à vaga reservada aos deficientes.
(STJ. AgRg no RMS 20190 DF, DJe 15.09.2008)
“... A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende que a aferição da compatibilidade entre a deficiência e as tarefas a serem desempenhadas pelo candidato deverá ser aferida apenas durante o estágio probatório
(RMS 1.880/SP, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 6/10/2020, DJe de 15/10/2020; REsp 1.777.802/PE, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 21/3/2019, DJe de 22/4/2019).
3. Entendimento que não se altera a despeito da revogação do art. 43, § 2º, do Decreto 3.298/99 pelo Decreto 9.508/2018, tendo em vista ser o Brasil signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), promulgada pelo Decreto 6.949/2009 e vigente com "status" de emenda constitucional (CF/88, art. 5º, § 3º), a qual prevê, dentre outros conceitos, o da adaptação razoável, que orienta para a inclusão de pessoas com deficiência em todo ambiente de trabalho mediante ajustes necessários que não impliquem ônus desproporcional ao empregador, o que deve ser aferido, concretamente, por meio do exercício da própria atividade laboral, durante o período de estágio probatório.
4. Constitui atuação discriminatória a eliminação precoce de candidato com deficiência aprovado em concurso, afirmada antes do início do exercício das funções inerentes ao cargo em estágio probatório e tendo por fundamento considerações abstratas acerca da preconcebida incompatibilidade entre as funções a exercer e a deficiência, sem que sejam ao menos tentadas modificações e ajustes no ambiente de trabalho que, porquanto razoáveis, permitam a efetiva inclusão da pessoa com eficiência.
(STJ. AgInt nos EDcl nos EDcl no RMS 55074 / MS. DJe 11/04/2024)
“IV - Na espécie, o laudo pericial demonstra, à saciedade, que a autora é portadora de deficiências neurológicas e psiquiátricas (Deficiência mental leve, Sindrome de Tourette, Transtorno Obsessivo-Compulsivo - TOC e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH e depressão moderada) altamente incapacitantes, que a impedem de desempenhar as atividades do dia a dia dentro do padrão considerado normal para o ser humano, impossibilitando-a de atuar na imensa maioria das ocupações, razão pela qual afigura-se ilegal o ato administrativo que não considerou comprovada sua condição de pessoa com deficiência, excluindo-a do concurso público para o cargo de Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT (Edital nº 01/2013).
(TRF1. 0065662-71.2013.4.01.3400, Relatora Des. Kátia Balbino)
“Transtorno do Espectro Autista (TEA) – irrelevância do grau - concorrência às vagas destinadas a pessoas com deficiência. 1. A Lei federal n° 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, destaca em seu art. 1°, §2°, que: "a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais". 2. Os elementos fáticos e probatórios contidos nos autos, notadamente os inúmeros relatórios médicos e o laudo de avaliação neuropsicológica elaborados por profissionais especializados, comprovam que a autora é portadora do Transtorno do Espectro Autista (TEA), que se trata de distúrbio abarcado entre aqueles especificados na legislação de regência e no edital do concurso como apto a comprovar a condição de pessoa com deficiência para fins de concorrência às vagas específicas. 3. A legislação não distingue as diferentes gradações ou formas de manifestação do Transtorno do Espectro Autista (TEA) para o enquadramento do indivíduo como pessoa com deficiência, não cabendo, portanto, à Administração Pública interpretar restritivamente os dispositivos legais e excluir do certame a candidata que preenche os requisitos para concorrer às vagas destinadas às pessoas com deficiência.”
(TJ/DF. 07050710720238070020. PJe: 23/5/2024).
Oportunizar às pessoas com deficiência o acesso ao trabalho no setor público, portanto, corresponde à medida que prioriza uma efetiva integração social e econômica de cidadãos que têm características únicas e também podem contribuir de modo significativo para uma melhor performance da administração e empresas públicas dos entes da Federação.