A conivência do Judiciário brasileiro com a Ditadura Militar é bem conhecido e dispensa maiores elucubrações. Poucos foram os juízes que desafiaram o regime. Aqueles que fizeram isso de maneira mais peremptória foram silenciosamente afastados dos seus cargos.
O peso do combate ao regime recaiu nas costas dos advogados. Mas a tarefa deles era mais desesperadora do que se pode imaginar. Afinal, era inútil defender direitos outorgados aos cidadãos, aos réus e aos detentos consagrados na constituição e na legislação em face de um regime que negava aos dissidentes políticos e aos suspeitos de dissidência ideológica a própria condição de seres humanos.
É bem conhecido o caso “...de Harry Berger, comunista preso no Brasil durante a ditadura do Estado Novo e torturado até ficar louco. Para ele, Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção aos Animais: ‘Esta lei diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar, isto é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há na sua natureza e na sua psicologia’.”
A roda do mundo girou, e agora nós estamos diante de um novo paradoxo: o do escárnio. Digo isso pensando especificamente no caso escatológico do advogado que ajuizou a ação de uma cidadã que pediu na Justiça do Trabalho direitos decorrentes da maternidade porque cuida de um bebê reborn.
Não existe e não pode existir qualquer equivalência possível entre uma criança recém-nascida e uma mercadoria produzida pela indústria ou entre a mulher que pariu um filho e aquela que comprou um objeto. Não é preciso muita argumentação para dizer que o pedido deduzido no caso comentado é juridicamente impossível, um abuso evidente do exercício do direito de ação. O advogado da mamãe reborn deveria saber disso e se recusar a ajuizar o processo.
Em 34 anos de profissão fui obrigado a recusar alguns processos absurdos, mas vou citar aqui apenas um caso. Certa feita fui procurado por uma jovem mulher que queria ½ do apartamento em que estava morando e do qual teria que se mudar. Ela morava no referido apartamento há alguns anos porque era amante do proprietário. Findo o relacionamento, o ex-amante pediu para ela desocupar o apartamento.
O imóvel em questão havia sido comprado pelo amante dela vários anos antes de ambos começarem a namorar. E para piorar a situação da cliente em potencial, o convívio de ambos era intermitente porque o amande era casado e vivia com a esposa e filhos num outro imóvel. Sendo assim, o reconhecimento da sociedade de fato era discutível. E mesmo que isso fosse juridicamente possível não levaria à partilha do patrimônio para cuja constituição ela não havia colaborado. Foi exatamente isso que eu disse à jovem mulher.
Ao descobrir que não tinha o direito que pretendia exercer ela ficou irritada e disse que queria cobrar uma indenização, porque havia satisfeito sexualmente o amante durante anos. Educadamente disse à moça que ele também a havia satisfeito na cama e que, além disso, ela havia morado gratuitamente no imóvel (algo que poderia levar o ex-amante dela a pedir o arbitramento de aluguel caso ela ajuizasse uma ação juridicamente temerária). Furiosa a mulher disse que eu era um advogado imprestável. Eu concordei e disse à moça que não prestava para ajuizar uma ação como a dela porque não queria passar vergonha no Judiciário. Ela foi embora, caso encerrado.
O caso dos direitos da maternidade da mãe do bebê reborn está apenas começando. A solução dele me parece inevitável: extinção sem julgamento do mérito. Uma questão subjacente, entretanto, merece ser resolvida. Como passamos do desespero dos advogados durante a Ditadura Militar ao escárnio advocatícios da atualidade? Essa é uma pergunta realmente perturbadora.
Nas últimas duas décadas o neoliberalismo jurídico largamente empregado pelos juízes esvaziou completamente vários princípios civilizatórios constitucionais. O Código de Defesa do Consumidor não é mais interpretado em benefício dos cidadãos. Indenizações por dano moral são indeferidas ou fixadas em valores ofensivamente baixos. A responsabilidade por golpes que são dados online está sendo transferida exclusivamente para os clientes, como se os próprios Bancos não tivessem o dever de investir mais em medidas de segurança uma vez que eles mesmos se beneficiam da redução de custos oriunda da informatização bancária.
O STF está destruindo à marretadas os princípios constitucionais do direito do trabalho (e a competência da justiça do trabalho também) nos casos dos motoristas de UBER, entregadores do iFood e empresas correlatas. Isso para não mencionar a mais nova moda judiciária: a criminalização da advocacia e a proliferação de decisões baseadas no instituto da litigância predatória.
Em decorrência, se deixarmos de lado o escárnio o processo ajuizado pelo advogado em favor dos direitos da maternidade da mãe de um bebê reborn pode ser considerado um sintoma. A doença é o próprio neoliberalismo jurídico em voga no Judiciário que está deixando os advogados desesperados para ganhar dinheiro de uma maneira criativa já que isso não é mais possível de ser feito da maneira adequada. Tempos esquisitos esses, não?