Advocacia em crise: do desespero jurídico-político ao escárnio desesperado

29/05/2025 às 10:23
Leia nesta página:

A conivência do Judiciário brasileiro com a Ditadura Militar é bem conhecido e dispensa maiores elucubrações. Poucos foram os juízes que desafiaram o regime. Aqueles que fizeram isso de maneira mais peremptória foram silenciosamente afastados dos seus cargos.

O peso do combate ao regime recaiu nas costas dos advogados. Mas a tarefa deles era mais desesperadora do que se pode imaginar. Afinal, era inútil defender direitos outorgados aos cidadãos, aos réus e aos detentos consagrados na constituição e na legislação em face de um regime que negava aos dissidentes políticos e aos suspeitos de dissidência ideológica a própria condição de seres humanos.

É bem conhecido o caso “...de Harry Berger, comunista preso no Brasil durante a ditadura do Estado Novo e torturado até ficar louco. Para ele, Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção aos Animais: ‘Esta lei diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar, isto é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há na sua natureza e na sua psicologia’.”

A roda do mundo girou, e agora nós estamos diante de um novo paradoxo: o do escárnio. Digo isso pensando especificamente no caso escatológico do advogado que ajuizou a ação de uma cidadã que pediu na Justiça do Trabalho direitos decorrentes da maternidade porque cuida de um bebê reborn.

Não existe e não pode existir qualquer equivalência possível entre uma criança recém-nascida e uma mercadoria produzida pela indústria ou entre a mulher que pariu um filho e aquela que comprou um objeto. Não é preciso muita argumentação para dizer que o pedido deduzido no caso comentado é juridicamente impossível, um abuso evidente do exercício do direito de ação. O advogado da mamãe reborn deveria saber disso e se recusar a ajuizar o processo.

Em 34 anos de profissão fui obrigado a recusar alguns processos absurdos, mas vou citar aqui apenas um caso. Certa feita fui procurado por uma jovem mulher que queria ½ do apartamento em que estava morando e do qual teria que se mudar. Ela morava no referido apartamento há alguns anos porque era amante do proprietário. Findo o relacionamento, o ex-amante pediu para ela desocupar o apartamento.

O imóvel em questão havia sido comprado pelo amante dela vários anos antes de ambos começarem a namorar. E para piorar a situação da cliente em potencial, o convívio de ambos era intermitente porque o amande era casado e vivia com a esposa e filhos num outro imóvel. Sendo assim, o reconhecimento da sociedade de fato era discutível. E mesmo que isso fosse juridicamente possível não levaria à partilha do patrimônio para cuja constituição ela não havia colaborado. Foi exatamente isso que eu disse à jovem mulher.

Ao descobrir que não tinha o direito que pretendia exercer ela ficou irritada e disse que queria cobrar uma indenização, porque havia satisfeito sexualmente o amante durante anos. Educadamente disse à moça que ele também a havia satisfeito na cama e que, além disso, ela havia morado gratuitamente no imóvel (algo que poderia levar o ex-amante dela a pedir o arbitramento de aluguel caso ela ajuizasse uma ação juridicamente temerária). Furiosa a mulher disse que eu era um advogado imprestável. Eu concordei e disse à moça que não prestava para ajuizar uma ação como a dela porque não queria passar vergonha no Judiciário. Ela foi embora, caso encerrado.

O caso dos direitos da maternidade da mãe do bebê reborn está apenas começando. A solução dele me parece inevitável: extinção sem julgamento do mérito. Uma questão subjacente, entretanto, merece ser resolvida. Como passamos do desespero dos advogados durante a Ditadura Militar ao escárnio advocatícios da atualidade? Essa é uma pergunta realmente perturbadora.

Nas últimas duas décadas o neoliberalismo jurídico largamente empregado pelos juízes esvaziou completamente vários princípios civilizatórios constitucionais. O Código de Defesa do Consumidor não é mais interpretado em benefício dos cidadãos. Indenizações por dano moral são indeferidas ou fixadas em valores ofensivamente baixos. A responsabilidade por golpes que são dados online está sendo transferida exclusivamente para os clientes, como se os próprios Bancos não tivessem o dever de investir mais em medidas de segurança uma vez que eles mesmos se beneficiam da redução de custos oriunda da informatização bancária.

O STF está destruindo à marretadas os princípios constitucionais do direito do trabalho (e a competência da justiça do trabalho também) nos casos dos motoristas de UBER, entregadores do iFood e empresas correlatas. Isso para não mencionar a mais nova moda judiciária: a criminalização da advocacia e a proliferação de decisões baseadas no instituto da litigância predatória.

Em decorrência, se deixarmos de lado o escárnio o processo ajuizado pelo advogado em favor dos direitos da maternidade da mãe de um bebê reborn pode ser considerado um sintoma. A doença é o próprio neoliberalismo jurídico em voga no Judiciário que está deixando os advogados desesperados para ganhar dinheiro de uma maneira criativa já que isso não é mais possível de ser feito da maneira adequada. Tempos esquisitos esses, não?

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos