Transição constitucional: análise da estrutura constitucional sob o paradigma boliviano

03/06/2025 às 20:54
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Resumo: A Bolívia, assim como o resto da América Latina, passou por processos ditatoriais que marcaram sua trajetória política. Nesse sentido, seus processos constitucionais também se alteraram e tiveram rupturas, levando em conta sua formação étnica, suas crises econômicas e democráticas. Dessa forma, a Bolívia se considera, atualmente, um Estado plurinacional, com uma Constituição aprovada por mais de 65% da população boliviana. Sendo assim, o Estado em questão teve uma transição constitucional complexa e não linear. Dessa forma, na presente discussão, busca-se entender a transição constitucional boliviana a partir de uma pesquisa ampla e difusa e assim demonstrar seus impactos no país.


1. INTRODUÇÃO

A Bolívia passou por grandes transformações em seu sistema político ao longo do tempo. Nesse sentido, seu processo histórico é complexo desde a formação do território até a ruptura constitucional, que iniciou uma série de transformações nos seus sistemas políticos e a transformou em Estado Plurinacional. Por isso, o país passou por diversas problemáticas até chegar na constituição atual, sendo assim, no presente texto será abordado o processo histórico e político da Bolívia, bem como a contribuição da população existente no país neste processo.


2. Metodologia

O presente texto utiliza uma pesquisa demonstrativa ampla e difusa para estabelecer o desenvolvimento de sua discussão. Portanto, utiliza fontes diversas para sua composição e, além disso, tem como objeto a constituição atual boliviana.


3. Contexto Histórico

Em primeiro lugar, para que seja possível compreender as transformações do cenário político e econômico que atravessaram a Bolívia, é preciso analisar seus antecedentes históricos. Por isso, a Revolução Boliviana de 1952 é um aspecto de destaque para traçar uma corrente lógica que explique o sistema militar instaurado de 1964 a 1982 no país.

Nesse sentido, essa Revolução foi marcada por uma instabilidade de governos e de níveis monetários, além de ter como fator contribuinte o apoio dos Estados Unidos às forças armadas bolivianas. Desse modo, o exército da Bolívia se fortaleceu durante esse período e deforma simultânea os postos representativos de poder se alternavam com frequência. Ademais, Victor Paz Estenssoro, eleito democraticamente durante a Revolução, teve seu governo derrubado pelo general René Barrientos (o primeiro ditador).

No entanto, durante a fase da revolução boliviana, o governo foi conduzido pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) que causou um processo de modernização e contribuição na transformação do status político, econômico e social do país. Diante disso, a estrutura social foi sendo transformada, por exemplo, com a distribuição de terras (no processo de reforma agrária) e na participação dos cidadãos na política, inclusive das mulheres a partir do sufrágio universal.

Porém, ao longo da década de 1960, o governo do MNR enfrentou instabilidade política, conflitos internos e descontentamento popular. Isso criou uma atmosfera propícia para o golpe militar de 1964. O golpe militar derrubou o governo do MNR, suspendeu a Constituição e instaurou um regime autoritário que perdurou por vários anos.

Os governos militares da Bolívia (1964-1982) se caracterizam de forma específica na condução de governos divergentes dentro de um campo político, isto é, eram compostos por alas com ausência de coesão ideológica. Dessa maneira, três ditaduras orientam-se aos moldes contrarrevolucionários:

  • René Barrientos (1964-1969);

  • Hugo Banzer (1971-1978);

  • Luís Garcia Meza (1980-1981).

Nesses três momentos de repressão política, nota-se a motivação dos generais em combater e sucatear as organizações de trabalhadores que faziam oposição aos governos. Por isso, uma das primeiras medidas adotadas por René foi suspendera

Constituição e restringir a liberdade dos civis. Para além dessas medidas, houve o controle das minas de estanho, o sufocamento de manifestações públicas e, em evidência, a aproximação das forças armadas bolivianas com a CIA (Agência Central de inteligência), dos Estados Unidos.

Sob um outro espectro, a principal ação econômica no governo de Barrientos caracterizada pela reabertura de minas para exploração estrangeira. Isso resultou em uma crescente desigualdade social, com o empobrecimento de grande parte da população e o aumento do descontentamento popular. Apesar do período de Barrientos ter sido marcado por muita repressão das liberdades individuais, foi durante o governo do General Hugo Banzer que a ditadura boliviana atingiu seu auge em termos de repressão e violações dos direitos humanos.

Banzer adotou uma política de terrorismo de Estado, com a criação de uma polícia secreta conhecida como "DIA"(Dirección de Inteligencia del Estado), responsável por perseguir, torturar e executar opositores do regime.

Entretanto, no final da década de 1970, a ditadura boliviana começou a enfrentar crescentes pressões internas e externas. A oposição política e os movimentos sociais se fortaleceram e a comunidade internacional passou a condenar as violações dos direitos humanos cometidas pelo regime. Essas pressões levaram à queda do General Banzer em 1978 e a transição para um governo civil.

Ademais, o cenário financeiro dessa fase da ditadura é explicitado pela manutenção da política de abertura dos meios de produção nacionais para empresas estrangeiras, com o auxílio de empréstimos do FMI (Fundo monetário Internacional) para a construção de viadutos e pontes por exemplo. No entanto, essas construções não impactaram significativamente na vida dos indivíduos, isto é, alguns esquemas de corrupção podem ser deduzidos a partir da análise do manejo monetário pelo governante da época.

Por fim, Luís Garcia Meza representa a fase final dos governos militares da Bolívia. Esse, por sua vez, aplica um golpe de Estado com o objetivo de reestabelecer a ordem no país, porém, seu governo é marcado pela ligação com os cartéis de cocaína. Por esse motivo, a ditadura de Meza é conhecida como narcoditadura.

Assim, no âmbito econômico, essa fase é dotada de um intenso caos e estagnação.

Diante disso, a ditadura na Bolívia foi um período sombrio e repressivo, caracterizado por violações dos direitos humanos, censura, repressão política e discriminação social. Embora o país tenha passado por um processo de democratização, é importante lembrar e aprender com os erros do passado, a fim de construir uma sociedade mais justa e inclusiva no presente.

3.1. Democracia Pactuada

Após o período ditatorial, a Bolívia passou pelo processo de redemocratização, processo que ficou conhecido como “democracia pactuada”. Nesse sentido, a ditadura havia deixado uma dívida que alcançava 94% do PIB (produto interno bruto) e, por isso, o processo de redemocratização passou por diversos ajustes econômicos para controle de dívida externa. Além disso, durante esse período (1982-2005) houve 8 presidentes, o que demonstra a instabilidade política que a ditadura trouxe de herança.

Dessa forma, para enfrentamento de crise, a Bolívia passou por uma política de redução das atuações do Estado e de privatizações. Assim, essas mudanças foram recomendadas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) para restauração da política econômica boliviana. Por consequência, em meio a instabilidade política, ocorreu um fortalecimento dos movimentos indígenas, sindicais e camponeses. Além disso, houve um aumento significativo do narcotráfico, aumentando a tensão política na Bolívia, uma vez que o país obtinha um grande cultivo da coca, matéria prima da cocaína.

Por conseguinte, em 2000 ocorreu a “Guerra da Água”, que se referia aos protestos referentes à privatização do sistema de água potável. Logo depois, a “Guerra do Gás”, onde havia protestos referentes à proposta de exportação do gás natural para os Estados

Unidos e relacionados ao aumento dos preços dos combustíveis. Por fim, em 2005, Evo Morales se tornou o primeiro presidente indígena da Bolívia e, em 2006, implementou a política de nacionalização dos hidrocarbonetos, algo que gerou grandes controvérsias políticas.

3.2. Aspectos Culturais

A Bolívia tem uma significativa diversidade étnica formada, principalmente, pela tradição indígena. Dessa maneira, é um país multicultural, com vastas matrizes religiosas. Sendo assim, o cultivo da coca no país, envolve questões históricas, econômicas e culturais, pois tem um valor muito importante para as comunidades locais, sendo um instrumento de subsistência para essas comunidades.

Ademais, pela sua diversa formação, a Bolívia é um país rico em tradições locais, onde a população indígena e camponesa é fortalecida. Desta forma, por todos estes aspectos, a identidade cultural boliviana é rica e diversa.

3.3. Nova Constituição Política do Estado da Bolívia (2009)

A estrutura do novo texto constitucional da Bolívia é composta por cinco partes: caracterização do Estado, direitos, deveres e garantias; estrutura e organização funcional do Estado; estrutura e organização territorial do Estado; estrutura e organização econômica do Estado; e, hierarquia normativa e reforma da constituição, onde se encontram as disposições transitórias.

A primeira parte compõe o bloco dogmático da Constituição e as demais partes, com exceção da última, compõem o bloco orgânico da Constituição. A constituição estabelece que a Bolívia é um Estado unitário social de direito plurinacional comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias (CPE 2009, Art. 1º). Com isto, há mudança no modelo do Estado, suprimindo a palavra “República” presente nas constituições anteriores e substituindo-a por “Estado Plurinacional”. Questões que envolvem o gênero, o plurinacionalismo e o comunitarismo são eixos transversais do texto constitucional, o que revela novos sujeitos e subjetividades constitutivos do novo formato político. Os sujeitos de gênero, especialmente o feminino, os diversos sujeitos e subjetividades da pluralidade, os sujeitos coletivos emergem como novos atores no horizonte político.

A representação poderá ser exercida de diversas formas, seja direta e participativa, seja por voto universal e comunitário de acordo com regras e procedimentos próprios. A representação garantida pela nova constituição nos mais diversos aparatos estatais busca coerência com o pluralismo e a diversidade de sujeitos.

Os direitos dividem-se em essenciais (mais fundamentais), fundamentais e garantias constitucionais. Entre os direitos mais fundamentais estão o direito à vida, água e alimentação, educação, saúde, habitação, e o acesso a serviços básicos, tais como água potável, esgoto, eletricidade, gás doméstico, correspondências e telecomunicações. Esses direitos não podem ser suspensos por nenhum motivo, nem mesmo em estado de sítio. Os direitos fundamentais são civis, políticos, sociais e econômicos, assim como os direitos das nações e povos originários indígenas e camponeses. Para que tais direitos sejam cumpridos, são previstas as garantias constitucionais, tais como as jurisdicionais e as ações de defesa, proteção da privacidade, inconstitucionalidade, conformidade e ação popular.

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3.4. Estrutura Plurinacional e Organização Funcional do Estado

Ao tratar da estrutura e organização funcional do Estado, a nova Constituição Política do Estado da Bolívia estabelece que o poder estatal está distribuído em quatro órgãos: o legislativo, o executivo, o judiciário e o eleitoral. A diferença com o esquema estatal anterior, relacionado com a antiga.

Constituição Política do Estado, é que, além de aumentar o número de "poderes" do Estado em vez de três, agora são quatro, há uma composição atravessada pela condição plurinacional e comunitária. O poder legislativo é formado pela assembleia plurinacional, bicameral, com representação indígena por meio do voto universal. Este órgão ou “poder” elege representantes uninominais e plurinominais. A Câmara dos Deputados será composta por 121 membros eleitos, com base em critérios territoriais e populacionais, em círculos uninominais. Os assentos serão alocados por meio de um sistema de maioria relativa. Por outro lado, a Câmara dos Representantes Departamentais será composta por quatro representantes por departamento, eleitos por círculo multidepartamental, designados pelo sistema de representação proporcional. Estamos a falar de um órgão executivo, também plurinacional, sendo o dispositivo político que concentra a vontade e a ação política da condição plurinacional e comunitária do país.

O órgão judiciário é constituído a partir da complementaridade de duas formas de justiça, a justiça formal e ordinária, e a justiça comunitária que, apesar de manifestar uma natureza prática, possui outras formalidades e valores. A complementaridade de ambos os sistemas propõe uma dupla articulação, enriquecendo as formas de administração da justiça, estabelecendo um recanto na articulação entre ambos em termos de tribunais que partilham uma conformação plurinacional e intercultural. O tribunal constitucional é plurinacional e intercultural, garantindo-se desta forma a interpretação de ambos os sistemas, a conjugação e a conjunção dos mesmos. O corpo eleitoral tem também uma composição multinacional, sendo responsável pela organização, gestão e execução dos processos eleitorais.

3.5. Estrutura e organização territorial do Estado

A estrutura e organização territorial do Estado compreende o sistema de autonomias, onde se concretiza o processo de descentralização administrativa e política. Ocorrendo, deste modo, alterações na geografia política existente.

A partir da nova constituição passou-se a existir quatro formas de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena. Nesta forma de descentralização administrativa e política, as entidades territoriais autônomas não estão subordinadas entre elas e terão status constitucional igual. O governo de cada região é constituído por uma Assembleia Regional com poder deliberativo, normativo-administrativo e fiscalizador, no âmbito das suas competências, e um órgão executivo; enquanto o governo de cada departamento autônomo é constituído por um Conselho Departamental, com poderes deliberativos, fiscalizadores e legislativo-regulamentares departamentais no âmbito das suas competências exclusivas atribuídas pela Constituição e por um órgão executivo. O governo municipal será constituído por um conselho municipal com poderes deliberativos, fiscalizadores e legislativo-regulamentares municipais, no âmbito das suas atribuições exclusivas, e por um órgão executivo. Por fim, a autonomia indígena camponesa originária, a expressão do direito à governo como exercício de autodeterminação de nações e povos indígenas nativos e comunidades camponesas, cuja população compartilha território, cultura, história, línguas e sua própria organização ou instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas.

3.6. Estrutura e organização econômica do Estado

A nova Constituição Política da Bolívia estabelece uma economia plural com estratégias econômicas, comunitárias, estatais, privadas e cooperativas acompanhadas pelo Estado que intervirá em toda a cadeia econômica,fortalecendo a economia comunitária, auxiliando na economia cooperativa, fomentando a economia estatal e garantindo a economia privada. O fortalecimento do Estado é buscado em todos os níveis da cadeia econômica, sendo o Estado mero administrador das propriedades de todos os bolivianos (CPE 2009, Art. 310)

3.7. Dos povos indígenas originários

Na nova Constituição Política do Estado são incluídas as nações e povos indígenas originários não apenas como populações, culturas, saberes plenamente reconhecidos, mas também como detentores de direitos. Não apenas se limitou à declaração de direitos coletivos, mas dedicou um capítulo específico aos direitos das nações indígenas e dos povos originários camponeses, incorporando-os como parte estrutural do texto constitucional.


4. CONCLUSÃO

Desse modo, é importante entender que o processo constitucional boliviano se deu em meio a diversas crises governamentais. Entretanto, existem questões a serem refletidas, por exemplo, a formação e a nomeação plurinacional da nação.

Portanto, a constituição reflete a origem diversificada do país e os processos históricos que o cercam. Nesse sentido, a Bolívia passou por esses marcos importantes assim como o resto da América Latina, por isso, é necessário pensar os atores que deram legitimidade à nova constituinte e como o judiciário se colocou como um instrumento de manejo para tal acontecimento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2002-07-06/bolivia-confirma-vitoria-de-sanchez-de-lozada-nas-eleicoes-presidenciais

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ALARCÓN GAMBARTE, María Micaela, Doctora en Derecho por la Universidad de Jaén, España. El Estado Plurinacional en Bolivia. Revista Estudios Jurídicos. Segunda Época Núm. 20, 2020.

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Pannain, Rafaela N A. RECONFIGURAÇÃO DA POLÍTICA BOLIVIANA: RECONSTITUIÇÃO DE UM CICLO DE CRISES, Lua Nova: Revista de Cultura e Política, núm. 105, pp. 287-313, 2018

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