UMA BREVE HISTÓRIA SOBRE O VOTO NO SISTEMA ELEITORAL BRASILEIRO
A democracia representativa depende de um frágil e quase exclusivo instrumento de participação popular: o voto. Um breve momento, cerca de três segundos, em que um eleitor, na crença ou descrença de que o nome depositado na urna representaria os seus intentos, manifesta, concomitantemente, o seu dever e o seu direito de participação no Estado.
Historicamente, o Brasil é marcado por, na maior parte do tempo, impossibilitar o direito ao voto. Embora a primeira eleição tenha sido realizada em 1532, para eleger o Conselho Municipal da Vila São Vicente em São Paulo, somente em 1821 instauraram-se as primeiras eleições gerais no Brasil. Houve, portanto, um hiato de 289 anos em que nem mesmo as elites locais manifestaram-se através do voto.
A chegada da Família Real Portuguesa e a crescente e inevitável integração das capitanias possibilitou a realização de eleições gerais para escolher deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa. Para tanto, a lei eleitoral adotada era a mesma instituída pela Constituição espanhola de 1812, que estabelecia que cada província elegeria um deputado para cada trinta mil habitantes, cabendo ao Brasil eleger 72 parlamentares1. As eleições foram realizadas em quatro etapas: o povo escolhia os compromissários, que elegiam os eleitores da paróquia, responsáveis pela escolha dos eleitores de comarca, e estes elegiam os deputados – Josés votavam em Raimundos que votavam em Joões que votavam em Fredericos que elegiam J. Pinto Fernandes, quem era realmente o dono da história.
No Período Imperial, por sua vez, a Constituição de 1824 instituiu eleições indiretas e em dois graus: na eleição de primeiro grau, os votantes escolhiam, em assembleias paroquiais, os eleitores de província; na eleição de segundo grau, os eleitores nomeavam os deputados e senadores para a Assembleia Geral e os membros dos conselhos gerais das províncias. Josés votavam em Raimundos que nomeavam J. Pinto Fernandes: a necessidade de Joões foi eliminada. Entretanto, restrições ao direito de voto foram mantidas e também foram estipuladas exigências como ter determinada renda para ser votante, eleitor e elegível – o chamado voto censitário2.
Ferreira comenta que:
“somente podiam ser eleitores os assalariados das mais altas categorias e os proprietários de terras ou de outros bens que lhes dessem renda (...) A restrição ao voto eram impostas à classes economicamente menos favorecidas, isto é, não proprietária, não obstante se estendesse o direito do voto às mais altas categorias dos empregados3”
Nesse período, outras leis foram prescritas estabelecendo, dentre outras coisas, a inscrição prévia dos eleitores, multa para o eleitor que deixasse de votar, o voto do analfabeto, o voto por procuração e a exigência de que o pleito fosse realizado no mesmo dia em todo o país. E, a partir de 1842, com uma nova lei eleitoral, o alistamento dos eleitores passou a ser feito por Juntas Eleitorais presididas por juiz de paz.
O voto indireto foi abolido apenas em 1881, através do Decreto nº 3.029, conhecido como “Lei Saraiva”, que substituiu todas as legislações eleitorais anteriores. De importância ímpar, a referida proposição teve a redação de Rui Barbosa, mas o projeto, que reformava profundamente a lei vigente, foi de iniciativa do Conselheiro Saraiva. Instituiu eleições diretas para todos os cargos eletivos do Império – senadores, deputados, membros das Assembleias Legislativas Provinciais, vereadores e juízes de paz –, adotou o voto do analfabeto, proibido, mais tarde, nas eleições federais e estaduais, pela Constituição de 1891. O papel da magistratura no processo eleitoral foi ampliado, na medida em que as incompatibilidades eleitorais e os títulos de eleitor passaram a ser assinados pelo juiz4. Imigrantes que não fossem católicos, desde que possuíssem renda superior a duzentos mil réis, poderiam se eleger.
Pouco depois da Lei Saraiva, o Império Brasileiro transformou-se em um dos mais “democráticos” do mundo, tendo cerca de 10% da população com direito a voto, superando, por exemplo, a participação no Reino Unido, que chegava apenas a 7%.
Mas o pequeno avanço conquistado no período imperial durou pouco. Para a República sobreviver nos seus primeiros anos, teve-se que desestruturar o que foi edificado pela Lei Saraiva. A primeira lei eleitoral na Velha República foi a de 8 de fevereiro de 1890, que tratava somente da qualificação dos eleitores, feita por comissões distritais compostas de três membros: o juiz de paz, o subdelegado da paróquia e um cidadão de notória sabedoria nomeado pelo presidente da Câmara. Ou seja, o alistamento eleitoral era feito de maneira descentralizada: cada região constituía suas comissões de maneira parcial e arbitrária, comissão que escolheria quem poderia se eleger e ser eleitor.
Nova regulamentação eleitoral viria em 1892, quando os estados e municípios adquiriram autonomia para realizar suas eleições. Localmente, poder-se-ia ter leis eleitorais, sendo aos municípios facultativo elaborar uma lei eleitoral, no entanto, caso tivesse, o eleitor precisaria de três títulos para votar: o federal, o estadual e o municipal. Mas, em novembro de 1904, a nova lei eleitoral sancionada, conhecida como Lei Rosa e Silva, unificou o alistamento, de modo que o eleitor podia utilizar um único título eleitoral, ao invés dos três necessários até então.
Fato é que, tanto no período imperial quanto na República Velha, não houve grandes inovações e a legislação sobre as regras eleitorais eram esparsas. A participação popular era extremamente limitada e condicionada ao poder econômico. Leis que se modificavam continuamente, sutilezas que, de uma hora para outra, tornavam-se condições formais para o exercício do direito, contexto de instabilidade e concomitantemente permanência dos mesmos atores de sempre. Mesmo com a Lei Saraiva, tentativa do último suspiro do período Imperial, o voto, durante o assinalado período, era um direito de poucos.
O grande avanço na legislação eleitoral foi o Código de 1932. Instaurou o sistema de representação proporcional e a universalidade do sufrágio, considerando o voto como um direito e um dever cívico, de forma que derrubou o voto censitário bem como estendeu o direito ao voto às mulheres5. A idade eleitoral mínima era de 21 anos e o modo de escolha instituído foi o voto secreto. Instituiu a Justiça Eleitoral que passou a ser tribuna de todas as questões eleitorais, desde o alistamento dos eleitores à proclamação dos eleitos e também no tocante à organização das mesas, nomeação dos mesários, apuração de votos, determinação dos locais das seções eleitorais e distribuição do material necessário à eleição.
A Constituição de 1934 reduziu a idade mínima para 18 anos, mantendo as ressalvas anteriores ao direito de voto: não poderiam votar os analfabetos e as praças de pret (oficiais militares de patentes inferiores).
No ano seguinte, em 1935, foi promulgado um novo código eleitoral, que recepcionou o código anterior com pequenas alterações. Os juízes adquiriram parcial competência para julgar crimes eleitorais; foram reduzidas as prescrições de crimes eleitorais para 5 (cinco) e 2 (dois) anos, conforme houvesse previsão de aplicação de pena privativa de liberdade; restringiu a regra do domicílio eleitoral, obrigando-o a coincidir com o domicílio civil, elencou as inelegibilidades, de forma exemplificativa e dedicou capítulo específico para tratar do MP, o que o código anterior não havia feito.
Em 1937, em decorrência do Estado Novo e da instituição da Constituição Polaca, foram tomadas várias medidas antidemocráticas: eliminou-se, por exemplo, os poderes da Justiça eleitoral e o Judiciário foi proibido de tratar questões exclusivamente políticas.
Apenas em 1946, a Justiça Eleitoral é novamente trazida ao patamar constitucional, com regras sobre organização, recursos, competência e várias outras regras de direito material, processual e de cunho administrativo eleitoral. Juntamente com a vigência da lei 1164/50, o também chamado Terceiro Código Eleitoral, consagrou-se o exercício das funções jurisdicionais por períodos de 2 (dois) anos, admitida uma recondução. O sufrágio tornou-se direto, o voto secreto, e assegurava-se a representação proporcional dos partidos, na forma da lei. O eleitor passou a ter o dever de requerer o alistamento, que não se processava mais de ofício. Fez, de forma definitiva, a regulação dos institutos da perda e suspensão dos direitos políticos, inelegibilidades, incompatibilidades e impedimentos, de forma que os juízes passaram a ter competência ampla em matéria criminal, ressalvando-se, apenas, a competência originária dos Tribunais.
Mas o avanço conquistado naquela época durou pouco. Mais uma vez a história se repetiu como farsa e a saraiva durou pouco na desértica história democrática. Com a instauração do regime militar, mais uma vez ficou provado que a história está cheia de retrocessos, que tolo é quem acredita que à medida que avança a civilização no tempo menor é a barbárie e maior espaço tem o homem para se realizar como indivíduo.
O regime militar de 1964 aboliu direitos: foi instituída eleição indireta para presidente e vice-presidente da República (extinguiu-se também o sigilo do voto na eleição presidencial) e para governadores e vice-governadores dos estados; os prefeitos das capitais dos estados, das estâncias hidrominerais e de áreas de segurança nacional passaram a ser nomeados; coligações partidárias foram proibidas, sendo mantidos os institutos do impedimento e da incompatibilidade. O clima de incerteza e de discricionariedade, em que o acesso à justiça percorre o consentimento dos militares e de sua burocracia, burocracia que alia amigos e destrói inimigos, que impede a liberdade em sua legalidade igualitária: como na “Revolução dos Bichos” de Orwell, em que todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.
Não é em vão que Hilda Braga Soares comenta que "foi no período do regime militar de 1964 que a engenharia eleitoral atingiu o máximo da sua imaginação criadora, os casuísmos eleitorais foram mais frequentes e em maior quantidade6”. Visando conservar o Colegiado Eleitoral, entre 1974 e 1982, o regime militar procurou criar barreiras para o avanço da oposição: o chamado Pacote de Abril de 1977, por exemplo, instaurou a figura do senador biônico, indiretamente nomeado pelo governo, garantindo o controle do Senado, embora não conseguisse refrear o crescimento da oposição na Câmara dos Deputados.
Mas não há farsa que se sustente por um largo período. A partir do movimento das Diretas Já e da progressiva abertura política culminada na saída do regime militar, a promulgação na nova carta magna de 1988 restabeleceu, pelo menos formalmente, a participação democrática no país, regulando os Direitos Políticos (arts. 14 a 16 da CF), os Partidos Políticos (art. 17 da CF) e assegurando a Justiça Eleitoral como órgão do Poder Judiciário (art. 92, V e arts. 118 a 121). Obrigatório aos nacionais e brasileiros naturalizados entre 18 e 70 anos, o voto é facultativo aos analfabetos, maiores de 16 anos e menores de 18 anos e os maiores de 70 anos.
Eis uma breve história sobre o voto no sistema eleitoral brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em 16 de junho de 2025.
CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. São Paulo: Edipro, 2006.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, conselho editorial, 2001.
SOARES, Hilda Braga. Sistemas eleitorais do Brasil (1821 - 1998) - Brasília. Subsecretaria de Edições Técnicas - Senado Federal, 1990.
Vale lembrar que, no mesmo ano de 1812, outra eleição foi realizada, a partir do Decreto de 1º de outubro, quando D. João VI determinou a forma provisória da administração política e militar das províncias do Reino do Brasil, que seriam governadas por Juntas Provisórias.︎
-
No Capítulo VI da Constituição de 1824, dispunha-se sobre as eleições. Os artigos seguintes testificam a implementação do voto censitário: “Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa Geral, e dos Membros dos Conselhos Geraes das Provincias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Provincia.
Art. 91. Têm voto nestas Eleições primarias: I. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos políticos; II. Os Estrangeiros naturalisados.
Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes.
Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiae Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.
Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios públicos
Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas.
Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral.
Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.
Art. 93. Os que não podem votar nas Assembléas Primarias de Parochia, não podem ser Membros, nem votar na nomeação de alguma Autoridade electiva Nacional, ou local.
Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se
Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.
Os Libertos.
Os criminosos pronunciados em queréla, ou devassa.
Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.
II. Os Estrangeiros naturalisados.
III. Os que não professarem a Religião do Estado.
Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis em cada Districto Eleitoral para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes ou domiciliados.
Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo pratico das Eleições, e o numero dos Deputados relativamente á população do Imperio.︎
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, conselho editorial, 2001 p. 122︎
CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. São Paulo: Edipro, 2006. p. 32︎
Apenas as mulheres solteiras, viúvas e separadas podiam votar. As casadas só obtinham o direito ao voto se tivessem recursos próprios.︎
SOARES, Hilda Braga. Sistemas eleitorais do Brasil (1821 - 1998) - Brasília. Subsecretaria de Edições Técnicas - Senado Federal, 1990, p. 133.︎