Carlos Roberto Claro1
24 junho 202
O presente ensaio tem como objetivo alinhar algumas considerações a respeito do importante princípio par conditio omnium creditorum [equal treatment of all creditors no direito norte-americano], que há de ser observado após a sentença judicial que decreta a abertura de falência do agente econômico em crise patrimonial irreversível.
A paridade de condições de todos os credores pertencentes a mesma classe (classificação dos créditos - ou ordem de créditos - prevista no art. 83 da Lei 11.101/05) tem grande relevância no âmbito falimentar.
O tratamento igualitário de credores que estão na mesma classe deve ser observado no processo de falência após a sentença que retira o agente econômico do mercado, sendo que a sentença judicial faz cessar imediatamente as atividades econômicas [liquidação definitiva da empresa, porquanto não existe a possibilidade de cumprir as obrigações livremente assumidas pelo devedor no vencimento].
Nessa esteira, a insolência do devedor é “uma doença orgânica do patrimônio”, nas palavras do jurista italiano Carlo D’Avack2. O pensador Gustavo Bonelli escreve a respeito:
‘L’insolvenza è quello stato del patrimonio d’uma persona, per cui questa si rivela impotente a far fronte ai debiti che lo gravano’ – Essa è anzitutto uno stato ‘di fatto’, perchè non è uma creazione dela legge, ma un fenomeno economico, um portato dele vicende dela vita3
Havendo recursos financeiros destinados aos credores - em decorrência da venda judicial de ativos -, o pagamento deve obedecer a uma ordem de preferencias legalmente estabelecida, com o intuito de privilegiar aqueles créditos que gozam da maior importância, conforme doutrina de Marlon Tomazette4.
Compete ao administrador judicial elaborar o quadro geral de credores5 e apresentar o plano de pagamento, observadas as disposições dos artigos 83 e 84 da lei de regência. Aliás, o administrador judicial é um órgão do processo falimentar6, atua sob a supervisão e direção do magistrado; além de cumprir todas as disposições legais a ele dirigidas, compete-lhe conservar e liquidar judicialmente todo patrimônio judicialmente arrecadado, bem como distribuir o produto ao universo de credores, guardados as categorias próprias (artigos 82 e 83 etc.).
Neste ensaio não há lugar para discorrer a respeito da distinção entre credores da massa falida (créditos constituídos pós-abertura da falência - art. 84) e os credores da entidade falida (dívidas contraídas antes da falência - art. 83).
Vários são os efeitos jurídico-econômicos e patrimoniais que decorrem da abertura judicial da falência da pessoa jurídica, efeitos esses que se espraiam ao agente econômico devedor falido, aos seus sócios/acionistas, aos colaboradores da empresa, aos credores e assim por diante.
Os efeitos são imediatos são: retirada do devedor do mercado, formação do juízo universal da falência, formação da massa falida [que decorre da lei7 ], suspensão da personalidade jurídica do ente falido, suspensão da prescrição, perda da disponibilidade de bens, vencimento antecipado das dívidas, afastamento os titulares da empresa, encerramento das contas bancárias; arrecadação de ativos, inclusive livres fiscais e contábeis.
Como efeito retroativo pode ser citado o termo legal da falência, imprescindível à verificação de eventual ineficácia de ato em período anterior à retirada do devedor do mercado competitivo (arts. 129 e 130 da Lei 11.101/05).
No que se refere aos efeitos futuros à sentença de abertura da falência, podem ser considerados: habilitação de crédito, pedidos de restituição, prosseguimento de determinadas ações judiciais, agora em face da massa falida, possiblidade de ajuizamento de pedido de restituição, arrecadação e alienação judicial de ativos.
Há efeitos significativos em relação aos contratos do falido, suas obrigações livremente contraídas, o patrimônio e sua própria pessoa (em se tratando devedor pessoa física empresário, que inclusive fica inabilitado para o exercício de atividade empresaria) assim como sócio de responsabilidade ilimitada (figura jurídica essa em desuso atualmente).
Com a sentença de falência – na qual se verifica o efetivo estado de insolvência do devedor - há o imediato e imprescindível afastamento dos gestores da falida, ocorrendo o “penhoramento abstrato” de todos os bens da entidade (conforme lição de Pontes de Miranda em sua clássica obra, bem como doutrina italiana), de modo que os ativos hão de ser imediatamente arrecadados pelo administrador judicial.
O escopo é a rápida alienação judicial [leilão ou outra modalidade de venda judicial] e posterior pagamento das dívidas, observada a ordem legal.
O devedor tem a posse indireta sobre os bens e a massa falida a posse direta até que ocorra a venda judicial, sendo certo que a própria lei confere ao falido o direito de fiscalizar e tomar as medidas a vem da conservação dos bens arrecadados (art. 103, p. único).
A massa falida é considerada patrimônio separado em relação à entidade jurídica, agora sob regime falimentar.
Após assinar o termo de compromisso, deve o administrador judicial imediatamente proceder a arrecadação do patrimônio do devedor, conforme art. 108.
Realizado o ativo, com a alienação judicial do patrimônio arrecadado, caberá ao administrador judicial, observados alguns ditames estabelecidos pela Lei 11.101/05, pagar os credores da massa falida e da falência, via rateio proporcional, caso inexistam recursos para liquidar todo o passivo da massa falida e da falida.
O jurista Carlo D’Avack alinha o seguinte pensamento:
Il principio fondamentale che si deve fissare nell’esame dell’istituto del falimento è quello che tutte le norme che lo regolano tendono ad ottenere la immediata liquidazione dell’azienda del commerciante fallito e che questa liquidazione avvenga, per quanto possibile, con il minimo sacrificio dei creditori; in altre parole, cioè, con il fallimento non si liquida il patrimonio del debitore per soddisfare le pretese dei suoi creditori, ma si opera invece la divisione fra i creditori delle attività del comune debitore allorchè ed in quanto, per il superiore interesse del credito e della economia generale, è necessário liquidare l’azienda del commerciante che cade in stato di cessazione8
É exatamente neste ponto - questão do rateio entre credores - que o princípio da paridade entre credores passar a ter uma maior relevância para fins de reflexão acadêmica.
Primeiramente, há de se consignar que o princípio da igualdade entre credores é originário do direito francês, e não do direito romano.
No direito romano, conforme melhor doutrina, tinha relevo o princípio da prior in tempore, potior in jure, basicamente significando que o credor que se antecipava em executar o devedor inadimplente recebia um tratamento por assim dizer diferenciado em relação aos demais credores.
Conforme bem esclarece Ecio Perin Junior,
a prioridade era, pois, título de privilégio. Entretanto, o direito costumeiro francês, anterior ao Código Napoleônico, elaborou outro princípio: o de que é igual o direito dos credores de serem satisfeitos pelo patrimônio do devedor, salvo especiais direitos de preleção. Essa igualdade, indiferente à prudência dos procedimentos individuais, exprime-se na fórmula ‘par conditio creditorum’ 9
Na execução concursal denominada de falência os credores hão de receber tratamento igualitário, sempre respeitada a classe [ou gradação legal] de credores à qual pertence.
Não menos certo que, salvo as preferências de ordem estritamente legal, - este tema será examinado em outro artigo - os credores terão igual direito sobre os bens [ou o produto dos bens] do devedor comum, tal como dispõe o artigo 957 do Código Civil.
Portanto, a paridade de credores se refere á ordem de classificação, de hierarquia dos credores da falência, que no caso da lei falimentar brasileira vem disposta no artigo 83, e que diz, como se vem insistindo, tão só com os credores do agente econômico falido.
Os credores receberão tratamento igualitário, contanto que seja respeitada a classificação estabelecida na lei de regência [aqui se não está a falar do Dec-Lei 7.661/45, ainda em vigor no sistema jurídico para as falências antigas]. Os credores da mesma classe são tratados de forma igual, em síntese.
Um parêntesis deve desde logo ser feito.
Aqui não é o lugar próprio, pois não há espaço suficiente, para escrever a respeito de quem, de fato, recebe seu crédito em primeiro lugar no processo de falência.
Existem os créditos extraconcursais [encargos e dívidas da massa falida, que agora o art. 84 separou por incisos, enquanto a lei ab-rogada dispôs a matéria em parágrafos], os pedidos de restituição, e assim por diante.
O tema é deveras palpitante [há, sem dúvida, significativo relevo no âmbito falimentar] na justa medida em que cabe ao hermeneuta ler atentamente o contido nos artigos 83, 84, 85, 150 e 150 do texto legal.
Assim, bem e perfeitamente compreenderá a questão que envolve o pagamento dos créditos da massa falida e aqueles devidos aos credores do falido.
Passando pelo método de interpretação gramatical e chegando inexoravelmente no sistemático e no teleológico, é certo que o hodierno exegeta perceberá quem tem, de fato, “preferência” no recebimento de seus haveres quando se coloca em mesa um processo de falência.
Nesse passo específico, cabe desmitificar o conteúdo da Lei 11.101/05 [de caráter eminentemente simbólico, como se vem repisando em outros artigos científicos]; cabe uma vez mais esclarecer que o credor trabalhista não é - e jamais foi - o primeiro credor a receber seus créditos em processo falimentar.
Cabe, por fim, e definitivamente, exorcizar, por assim dizer, qualquer tentativa de se afirmar que as instituições financeiras se não constituem em credores superprivilegiados do falido [considerando as benesses legais insculpidas na regra do art. 49, §3º da Lei 11.101/05].
Aqui também não há espaço para falar nas exceções à universalidade do juízo falimentar, quais as ações não são suspensas com a decretação da falência.
É de se ponderar que, em relação aos credores sujeitos aos efeitos da vis attractiva, após a liquidação dos ativos arrecadados, competirá ao administrador judicial, com base no quadro geral de credores previamente elaborado, homologado judicialmente e publicado, proceder ao rateio entre os credores, considerando o montante depositado.
Os credores, em todas as classes, receberão proporcionalmente, mediante rateio – após o pagamento dos créditos da massa falida, pedidos de restituição etc., sendo de se afirmar que a Lei 11.101/05 é bem mais simplista em relação aos termos do Decreto-Lei 7.661/45, no que diz com os critérios para a distribuição dos recursos.
É de se destacar, uma vez mais, que dificilmente um credor quirografário, por exemplo, recebe seu crédito em falência, caso os ativos arrecadados sejam de pouco valor financeiro ou mesmo insuficientes para pagar mais de uma classe.
Aliás, nem sempre há ativos [patrimônio] arrecadáveis, cabendo observar a regra do art. 114-A, da Lei 11.101/054.
É a assim denominada “falência frustrada”, aquela prevista no art. 75, do texto legal de 1945.
-
Advogado em Direito Empresarial; Mestre em Direito; Especialista em Direito Empresarial; Parecerista e Pesquisador; Membro e Diretor Acadêmico da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-PR (gestão 2025-2027).
La natura giuridica del falimento. Casa Editrice Dott. Antonio Milani. Padova, 1940.︎
Del fallimento (Commento al Codice di Commercio). Vol. I. Milano. Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1923, p. 3. Destaques na obra.︎
Curso de Direito Empresarial. Volume 3: falência e recuperação de empresas. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2016, p. 535.︎
Via verificação de créditos o administrador judicial procede o “acertamento do direito de crédito”, nas palavras de Umberto Azzolina. Il falimento e le altre procedure concorsali. II. Seconda edizione. Unione Tipografico Editrice Torinense. 1961, p. 734. Acentua o autor: In realtà ciò interessa ai fini del processo fallimentare non è tanto l‘accertamento dei crediti che devono essere soddisfatti in sede concorsuale mediante l’espropriazione. I due dati possono non coincidere, poichè non è detto che tutti i creditori del fallito facciano valere nel fallimento i rispettivi diritti; il secondo – e non il primo – è dunque l’elmento su cui deve portasi l’esame degli organi esecutivi. Op. cit., p. 735.︎
Acentua Gustavo Bonelli a respeito do tema: Organi d’una unitá patrimoniale sono gli elementi per mezzo dei quali essa’ vuole e agisce’, cioè si comporta come subbietto (termine di rapporti di diritto) nel mondo giuridico. Nelle funzioni loro rispettivamente assegnate, gli organi, in quanto agiscono o dichiarano con effetto legal la volontà del subbietto di fronte ad altri subbietti con cui lo pongono in rapporto giuridico, diconsi ‘rappresentati’ di quel subbietto. Del fallimento (Commento al Codice di Commercio). Vol. II. Milano. Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1923, p. 1-2. Destaques na obra.︎
-
Um dos principais efeitos jurídicos da sentença de falência, conforme dito, é justamente a imediata constituição da massa falida, pessoa formal que existe tão só enquanto perdurar o processo falimentar. Em pessoa jurídica não se pode falar, pois somente por disposição legal é que se pode criar uma personalidade jurídica, atributo esse inexistente em relação a massa falida. Tal como o condomínio ou a herança, a massa falida não tem patrimônio próprio [e como dito, há apenas a posse direta sobre os bens arrecadados do devedor, ficando com este, ainda, o inequívoco direito de propriedade e a posse indireta]; o patrimônio é ainda pertencente ao falido. Segundo Rubens Requião, a massa falida [objetiva] nada mais é do que o patrimônio afetado [separado] do devedor, destinado a um determinado fim [a liquidação, e cujo produto será destinado ao pagamento das dívidas], ficando os credores reunidos na massa falida subjetiva. CLARO, Carlos R. A propriedade e a administração dos bens na falência. In – Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 66, maio/2010 – ago/2010. Porto Alegre: AMP/RS, p. 125.︎
Op. cit., p. 23.︎
Curso de Direito Falimentar e Recuperação de Empresas. 3a edição. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 112.︎