Dispensa emergencial e antecipação de seus efeitos à luz da Lei nº  14.133/2021, da PNPDEC e da LINDB

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Resumo: Este artigo analisa a possibilidade jurídica de aquisições emergenciais de materiais e equipamentos com dispensa de licitação, ante o art. 75, VIII, da Lei nº 14.133/2021, complementado pela analogia com o art. 132 do mesmo diploma. Demonstra-se que, em cenário de urgência comprovada, o gestor pode antecipar os efeitos da contratação antes da formalização contratual, desde que: a) haja documentação robusta da urgência e compatibilidade com o valor de mercado; b) se regularize o instrumento no prazo máximo de 30 dias; e c) adote-se boa governança. Sustenta-se o argumento com jurisprudência do TCU, combinada com os deveres de prevenção e mitigação estabelecidos pela Lei Federal nº 12.608/2012 (PNPDEC) e pela interpretação pragmática da LINDB. Conclui-se que a dispensa emergencial, quando bem fundamentada, é compatível com os princípios da legalidade, eficiência e proteção dos interesses públicos.

Palavras-chave: Dispensa emergencial. Antecipação contratual. PNPDEC. LINDB. Jurisprudência TCU.


I – INTRODUÇÃO

A possibilidade de aquisição imediata de materiais e equipamentos em situações emergenciais, mesmo antes da formalização contratual, é juridicamente admissível quando devidamente justificada e limitada a contextos excepcionais. Tal entendimento decorre da interpretação sistemática do art. 75, inciso VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021, combinado com o art. 132 do mesmo diploma legal, nestes termos:

Art. 75. É dispensável a licitação:

(…)

VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso; 

Art. 132. A formalização do termo aditivo é condição para a execução, pelo contratado, das prestações determinadas pela Administração no curso da execução do contrato, salvo nos casos de justificada necessidade de antecipação de seus efeitos, hipótese em que a formalização deverá ocorrer no prazo máximo de 1 (um) mês. Grifamos


II – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

O art. 75, VIII, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos autoriza a dispensa de licitação “nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares”. Nessas hipóteses, a urgência da situação pode exigir a execução imediata da contratação, mesmo antes da conclusão dos trâmites formais, desde que haja posterior formalização no prazo razoável.

A analogia com o art. 132 da Lei Federal nº 14.133/2021, por sua vez, é técnica e razoável: o dispositivo permite a antecipação dos efeitos de aditivos contratuais em situações de justificada necessidade, com a formalização posterior no prazo de até 30 (trinta) dias.

Assim, a execução imediata em regime de dispensa emergencial, seguida da regularização contratual, é aceitável juridicamente, desde que bem instruída.

III – JURISPRUDÊNCIA DO TCU

O Tribunal de Contas da União (TCU) tem consolidado entendimentos favoráveis a adoção de medidas imediatas que não extrapolem a finalidade estrita de afastar os riscos urgentes, senão vejamos:

- Acórdão nº 1.130/2019 – Primeira Câmara, Relator Bruno Dantas: Nas contratações diretas fundadas em emergência [...], cabe ao gestor demonstrar a impossibilidade de esperar o tempo necessário à realização de procedimento licitatório, além de justificar a escolha do fornecedor e o preço pactuado.

- Acórdão nº 121/2021 – Plenário, Relator Bruno Dantas: Nas contratações diretas fundadas em emergência (art. 24, inciso IV, da Lei 8.666/1993), cabe ao gestor demonstrar a impossibilidade de esperar o tempo necessário à realização de procedimento licitatório, em face de risco de prejuízo ou comprometimento da segurança de pessoas e de bens públicos ou particulares, além de justificar a escolha do fornecedor e o preço pactuado.

- Acórdão nº 6.439/2015 – Primeira Câmara, Relator Augusto Sherman: A contratação direta emergencial [...] deve se restringir somente à parcela mínima necessária para afastar a concretização do dano.

- Acórdão 1.162/2014 – Plenário, Relator José Jorge: A caracterização de situação emergencial, que autoriza o procedimento de dispensa de licitação, deve estar demonstrada no respectivo processo administrativo, evidenciando que a contratação imediata é a via adequada e efetiva para eliminar iminente risco de dano ou de comprometimento da segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.

Recentemente, a Corte de Contas da União, através do, entendeu que os procedimentos legais que devem ser observados para a realização de contratação emergencial podem ser flexibilizados diante da realidade concreta, com posterior formalização da avença, nestes termos:


- Acórdão nº 6.162/24 – Segunda Câmara, Relator Vital do Rêgo: Em conclusão, não vejo razões para conversão dos autos em tomada de contas especial.

No tocante aos demais indícios relativos à ausência de estimativa de preços ou de justificativa para dispensá-la, aprovação do projeto com autorização de pagamento, ordem bancária e nota fiscal no mesmo dia, configurando pagamento antecipado, e consulta às certidões da empresa contratada e homologação da licitação somente após o pagamento e a emissão da nota fiscal, devemos considerar as circunstâncias da contratação - o auge da pandemia de covid-19.

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Relembro que a edição da Lei 13.979/2020 flexibilizou, durante sua vigência, as regras para aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao tratamento da crise sanitária, com simplificação das fases de planejamento da contratação e de seleção do fornecedor, e mitigação dos diversos requisitos previstos na Lei 8.666/1993, com o objetivo de conferir agilidade aos procedimentos e de expandir o universo de possíveis fornecedores.


De certo, no âmbito desta Corte, foram verificados casos de inobservância dos requisitos básicos de zelo com o erário mesmo após larga flexibilização de regras. Ao contrário, no presente caso, o Secretário de Saúde logrou comprovar a aquisição e a entrega dos respiradores, demonstrando o emprego das verbas destinadas ao combate da emergência sanitária.

O TCU reconhece a possibilidade de aquisição emergencial antes da formalização contratual em situações excepcionais. Entretanto, entendemos que o Gestor Público deve: a) Comprovar a urgência; b) Demonstrar a compatibilidade dos preços com o mercado; c) Promover a regularização documental posterior dentro de prazo razoável.

IV – PNPDEC E DEVER MUNICIPAL

A Lei Federal nº 12.608/2012 instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), estabelecendo que:

Art. 2º É dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre.

§2º A incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco. (grifei)

Esse dispositivo respalda a contratação antecipada como forma de garantir a continuidade dos serviços essenciais, especialmente em contextos de iminência de colapso de políticas públicas sensíveis como saúde, saneamento e defesa civil.


V – DANO REVERSO E LINDB

O princípio do dano reverso reforça a legitimidade da contratação imediata em situações emergenciais. Conforme Acórdão nº 3.126/2013 do TCU, o prejuízo à saúde pública e à continuidade dos serviços pode superar, em gravidade, os riscos de dano ao erário decorrente da contratação direta. Vejamos:

- Acórdão nº 3.126/2013 – Segunda Câmara, Relatora Ana Arraes: “O dano reverso decorrente da falta de produto ou serviço que possa colocar em risco a saúde de pessoas se mostra muito mais gravoso do que o potencial dano ao erário decorrente da aquisição direta para remediar a situação.”

Além disso, o art. 22 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) determina que:

Art. 22 Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor [...].

§1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato [...], serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

Portanto, não é possível exigir do Administrador Público comportamento que, embora formalmente estrito à literalidade da lei, inviabilize ou comprometa a concretização das políticas públicas sob sua responsabilidade. Em cenários de emergência, a exigência inflexível de pesquisa formal de preços ou do contrato previamente assinado pode inviabilizar respostas rápidas e eficazes. Nestes casos, interpretações rígidas e abstratas devem ceder espaço a soluções jurídicas que garantam efetividade às políticas públicas em contextos críticos.

O Estado do Ceará, através do Guia de Compras e de Contratações Emergenciais - COVID 19, p. 13 e 21, orientou que:

Em caráter excepcional, a entrega dos bens e a prestação dos serviços poderão se dar por meio da ordem de compra ou de serviços, ficando o contrato para ser formalizado posteriormente.


Na pendência de publicação de ata de registro de preços referentes a bens e serviços da área de saúde, poderá ser emitida ordem imediata de compra ou serviço, no caso em que a entrega do bem ou prestação do respectivo serviço se fizer urgente.

Fornecimento mediante emissão de ordem de compra ou de serviço, antes da formalização do contrato ou da publicação da ata de registros de preços referentes a bens e serviços da área da saúde, com regularização posterior com vigência retroativa à expedição da respectiva ordem, nos casos excepcionais fundamentados em grave risco de não atendimento à demanda da rede pública de saúde.


VI – CONCLUSÃO

A contratação emergencial com antecipação de seus efeitos é juridicamente viável e encontra respaldo legal, jurisprudencial e doutrinário, desde que haja comprovação robusta da urgência. A formalização deve ocorrer no menor prazo possível, idealmente, dentro de 01 (um) mês, e a documentação deve conter nota de empenho, comprovantes de entrega, nota fiscal, justificativa da urgência, e pesquisa de preços para validação de mercado.

A interpretação conjunta da Lei Federal nº 14.133/2021, da PNPDEC e da LINDB demonstra que o interesse público deve prevalecer, assegurando respostas tempestivas e eficientes em situações de crise.

Sobre o autor
Guilherme Flaminio da Maia Targueta

Mestrando em Gestão Pública com Especialização em Direito da Administração Pública, Pós-graduado em Direito Público, Pós-graduado em Licitações e Contratos sob o Viés da Lei 14.133/2021, Pós-graduado MBA em Direito Licitatório com Ênfase na Lei 14.133/21, Pós-graduado MBA em Agente de Contratação e Pregoeiro Público à Luz da Lei 14.133/21, Pós-graduado MBA em Compras Públicas Municipais com Ênfase na Lei 14.133/21, Consultor Técnico e Jurídico na área de Licitações e Contratos tanto para órgãos públicos quanto para empresas privadas

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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