Princípio da Inocência como Garantia Constitucional

06/07/2025 às 22:01
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Após a pro­mul­ga­ção da Constituição de 1988, o Direi­to Admi­nis­tra­ti­vo Mili­tar, que trata das questões de natureza dis­ci­pli­na­r rela­cio­na­das com os inte­gran­tes das Forças Armadas e Forças Auxiliares, vem pas­san­do por trans­for­ma­ções em decor­rên­cia do dis­pos­to no art. 5o, da CF, direi­tos e garan­tias fun­da­men­tais do cida­dão.

O mili­tar, fede­ral ou esta­dual, pos­sui os mes­mos direi­tos que são asse­gu­ra­dos ao civil, quan­do é leva­do a jul­ga­men­to peran­te os seus pares, em decor­rên­cia da prá­ti­ca de um ato ilí­ci­to (admi­nis­tra­ti­vo, penal ou civil). Existem cer­tos pos­tu­la­dos pre­vis­tos na Constituição Federal que não são obser­va­dos pelas auto­ri­da­des admi­nis­tra­ti­vas quan­do da rea­li­za­ção dos jul­ga­men­tos no âmbito de suas Corporações.

O art. 5o, inci­so LV, da CF, asse­gu­rou aos acu­sa­dos em pro­ces­so judi­cial, ou admi­nis­tra­ti­vo, a ampla defe­sa e o con­tra­di­tó­rio, o que sig­ni­fi­ca que o mili­tar não pode­rá ser puni­do, ou per­der seus bens, sem que lhe seja asse­gu­ra­da à obser­vân­cia dos prin­cí­pios cons­ti­tu­cio­nais. A defe­sa pre­vis­ta na CF impe­de a exis­tên­cia de um pro­ces­so mera­men­te for­mal, que tenha por obje­ti­vo ape­nas dar uma apa­rên­cia de lega­li­da­de. O pro­ces­so admi­nis­tra­ti­vo deve ser efe­ti­vo com a participação efetiva do defen­sor e do acu­sa­do em todos os atos, sendo que a pre­sen­ça do mili­tar não é facul­ta­ti­va, mas obri­ga­tó­ria, sob pena de nuli­da­de do ato.

A lega­li­da­de é um prin­cí­pio que deve ser segui­do pela admi­nis­tra­ção públi­ca, art. 37, caput, da CF, sendo que este dis­po­si­ti­vo em ­nenhum momen­to ­excluiu a admi­nis­tra­ção públi­ca mili­tar. As nor­mas admi­nis­tra­ti­vas mili­ta­res (decre­tos, por­ta­rias, reso­lu­ções e ­outras) foram recep­cio­na­das pela CF de 1988, mas exis­tem dis­po­si­ti­vos (arti­gos, inci­sos, alí­neas) que não foram recep­cio­na­dos, por con­tra­ria­rem as garan­tias pre­vis­tas no art. 5o, da CF.

A defe­sa da apli­ca­ção dos prin­cí­pios do devi­do pro­ces­so legal e da ino­cên­cia no Direi­to Admi­nis­tra­ti­vo Mili­tar ainda é uma novi­da­de e continua sendo uma novidade, apesar do período de mais de 20 anos de vigência do atual texto constitucional. Nesta área, ainda exis­te o enten­di­men­to segun­do o qual a auto­ri­da­de admi­nis­tra­ti­va mili­tar pos­sui dis­cri­cio­na­rie­da­de no jul­ga­men­to dos seus subor­di­na­dos. Na dúvi­da, quan­do da rea­li­za­ção de um jul­ga­men­to admi­nis­tra­ti­vo de natureza disciplinar onde o con­jun­to pro­ba­tó­rio é defi­cien­te, precário, não mais deve ser apli­cado o prin­cí­pio in dubio pro admi­nis­tra­ção, mas o prin­cí­pio in dubio pro reo, pre­vis­to na Constituição Federal de 1988, e na Convenção Americana de Direitos Humanos, que foi subs­cri­ta pelo Brasil.

No Direi­to Penal, Comum ou Militar, nin­guém pode ser con­de­na­do sem a exis­tên­cia de pro­vas con­cre­tas que demons­trem a auto­ria e a cul­pa­bi­li­da­de. O jus liber­ta­tis é um direi­to fun­da­men­tal do cida­dão, não admi­tin­do meras fic­ções para ser cer­cea­do. A prova é feita de forma dia­lé­ti­ca, deven­do exis­tir igual­da­de entre a defe­sa e a acu­sa­ção na busca da ver­da­de dos fatos. No campo dis­ci­pli­nar, assim como ocor­re no Direi­to Penal, vige o prin­cí­pio da ver­da­de real, e não for­mal, como ocor­re, por exemplo, no âmbito do pro­ces­so civil.

O Direi­to Admi­nis­tra­ti­vo Mili­tar é um ramo autô­no­mo do Direi­to, e pos­sui seus pró­prios fun­da­men­tos e prin­cí­pios, mas estes guar­dam estrei­tas rela­ções com o Direi­to Pe­nal, sendo que mui­tas fal­tas admi­nis­tra­ti­vas podem le­var inclusive a um pro­ces­so crime peran­te as Audi­to­rias Mili­ta­res. O mili­tar que come­ter uma trans­gres­são dis­ci­pli­nar pode­rá ter o seu jus liber­ta­tis cer­cea­do por até 30 dias em regi­me fecha­do, deven­do per­ma­ne­cer no quar­tel até o cum­pri­men­to da puni­ção.

No pro­ces­so admi­nis­tra­ti­vo disciplinar, a prova da acu­sa­ção é feita pelo pró­prio órgão jul­ga­dor, o que lhe reti­ra a impar­cia­li­da­de neces­sá­ria para a rea­li­za­ção da Justiça. Para apli­ca­ção do devi­do pro­ces­so legal seria pre­ci­so à ins­ti­tui­ção da figu­ra do ofi­cial acu­sa­dor, que fica­ria res­pon­sá­vel pela colhei­ta dos ele­men­tos de prova da cul­pa­bi­li­da­de do agen­te, o que per­mi­ti­ria ao ofi­cial jul­ga­dor ter uma isenção efetiva no mo­men­to do jul­ga­men­to da acusação constante na portaria baixada pela autoridade militar competente.

No curso da ins­tru­ção pro­ba­tó­ria, podem sur­gir dúvi­das quan­to aos depoi­men­tos colhi­dos, que não levam à cer­te­za da auto­ria, ou mate­ria­li­da­de, da trans­gres­são dis­ci­pli­nar, o que não auto­ri­za a pro­la­ção de um segu­ro decre­to con­de­na­tó­rio. A con­fi­gu­ra­ção da trans­gres­são dis­ci­pli­nar exige a com­pro­va­ção dos elementos de auto­ria e mate­ria­li­da­de, sob pena de se estar pra­ti­can­do um exces­so, ou até mesmo uma arbi­tra­rie­da­de. A manu­ten­ção da hie­rar­quia e da dis­ci­pli­na deve ser feita em con­for­mi­da­de com os prin­cí­pios da lega­li­da­de, e do devi­do pro­ces­so legal, para que o Estado demo­crá­ti­co de Direito não seja vio­la­do.

A ausên­cia de pro­vas segu­ras, ou de ele­men­tos, que pos­sam demons­trar que o acu­sa­do tenha vio­la­do o dis­pos­to no regu­la­men­to dis­ci­pli­nar leva à sua absol­vi­ção, com fun­da­men­to no prin­cí­pio da ino­cên­cia. A ado­ção deste pro­ce­di­men­to afas­ta o enten­di­men­to segun­do o qual no Direi­to Admi­nis­tra­ti­vo Mili­tar vige o prin­cí­pio in dubio pro admi­nis­tra­ção, que foi revo­ga­do a par­tir de 5 de outu­bro de 1988, e que não se confunde com causas de justificação estabelecidas nos Regulamentos Disciplinares.

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A Constituição Federal, no art. 5º, inci­so LVII, dis­põe que, “nin­guém será con­si­de­ra­do cul­pa­do até o trân­si­to em jul­ga­do de sen­ten­ça penal con­de­na­tó­ria”. Deve-se obser­var que o art. 5º, inci­so LV, pre­cei­tua que, aos liti­gan­tes, em pro­ces­so judi­cial ou admi­nis­tra­ti­vo, e aos acu­sa­dos em geral são asse­gu­ra­dos o con­tra­di­tó­rio e ampla defe­sa, com os meios e recur­sos a eles ine­ren­tes.

Desta forma, com fun­da­men­to nos dis­po­si­ti­vos cons­ti­tu­cio­nais, fica evi­den­cia­do que o prin­cí­pio da ino­cên­cia é apli­cá­vel ao Direi­to Admi­nis­tra­ti­vo Mili­tar. A ampla defe­sa e o con­tra­di­tó­rio pres­su­põem o res­pei­to ao prin­cí­pio do devi­do pro­ces­so legal, no qual se encon­tra inse­ri­do o prin­cí­pio da ino­cên­cia. As ques­tões admi­nis­tra­ti­vas que envol­vem puni­ções (san­ções) não são mais meros pro­ce­di­men­tos, mas se tor­na­ram pro­ces­sos. A Constituição Federal de 1988 igua­lou o pro­ces­so judi­cial e o processo admi­nis­tra­ti­vo, e asse­gu­rou as mes­mas garan­tias pro­ces­suais e cons­ti­tu­cio­nais aos liti­gan­tes em ques­tões admi­nis­tra­ti­vas (civis ou mili­ta­res).

A auto­ri­da­de admi­nis­tra­ti­va mili­tar (fede­ral ou esta­dual) deve atuar com impar­cia­li­da­de nos pro­ces­sos sujei­tos aos seus jul­ga­men­tos, e quan­do esta veri­fi­car que o con­jun­to pro­ba­tó­rio estam­pa­do nos autos é defi­cien­te deve enten­der pela absol­vi­ção do mili­tar. A pre­ca­rie­da­de do con­jun­to pro­ba­tó­rio deve levar à absol­vi­ção do acu­sa­do para se evi­tar que este passe por cons­tran­gi­men­tos de difí­cil repa­ra­ção, que pode­rão dei­xar suas mar­cas mesmo quan­do supe­ra­dos, poden­do refle­tir nos ser­vi­ços pres­ta­dos pelo mili­tar à popu­la­ção, que é o con­su­mi­dor final do pro­du­to de segu­ran­ça públi­ca e segu­ran­ça nacio­nal.

Devido à estru­tu­ra ado­ta­da nos pro­ces­sos admi­nis­tra­ti­vos mili­ta­res, onde exis­te uma mis­tu­ra entre a figu­ra do acu­sa­dor e a do jul­ga­dor, fica difí­cil a absol­vi­ção do acu­sa­do com fun­da­men­to no prin­cí­pio da ino­cên­cia. Além disso, em mui­tos casos, ainda exis­te uma con­fu­são entre dis­cri­cio­na­rie­da­de e arbi­tra­rie­da­de. A pri­mei­ra fica sujei­ta ao prin­cí­pio da lega­li­da­de e da mora­li­da­de pre­vis­tos no art. 37, caput, da CF. A liber­da­de do admi­nis­tra­dor deve se pau­tar pelo res­pei­to à lei, por­que este foi o sis­te­ma ado­ta­do no país. Para se evi­tar pos­sí­veis arbi­tra­rie­da­des no campo admi­nis­tra­ti­vo mili­tar se faz neces­sá­ria a edi­ção de uma lei que trate dos prin­cí­pios e nor­mas que devem ser obser­va­das nos jul­ga­men­tos.

O prin­cí­pio da ino­cên­cia, o qual não se confunde com as causas de justificação, por serem coisas distintas, é uma rea­li­da­de do pro­ces­so admi­nis­tra­ti­vo disciplinar mili­tar, e deve ser apli­ca­do pelo admi­nis­tra­dor, autoridade militar, quan­do o con­jun­to pro­ba­tó­rio impe­ça a pro­la­ção de um segu­ro decre­to con­de­na­tó­rio. A jus­ti­ça é o ele­men­to essen­cial de qual­quer Ins­ti­tui­ção, Civil ou Militar, pois somen­te com a obser­vân­cia do devi­do pro­ces­so legal e das garan­tias cons­ti­tu­cio­nais é que se pode alcan­çar os obje­ti­vos do Estado demo­crá­ti­co de Direito. O res­pei­to à lei em todos os seus aspec­tos é con­di­ção essen­cial para a cons­tru­ção de uma socie­da­de justa, fra­ter­na, e livre da vio­lên­cia e das desi­gual­da­des ­sociais.

Sobre o autor
Paulo Tadeu Rodrigues Rosa

PAULO TADEU RODRIGUES ROSA é Juiz de Direito. Mestre em Direito pela UNESP, Campus de Franca, e Especialista em Direito Administrativo e Administração Pública Municipal pela UNIP. Autor do Livro Código Penal Militar Comentado Artigo por Artigo. 4ª ed. Editora Líder, Belo Horizonte, 2014.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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