INTRODUÇÃO
A tarefa de interpretar o Direito é, sem dúvida, uma das mais desafiadoras e cruciais para a manutenção da ordem jurídica e da segurança social. No cenário jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, desempenha um papel central na concretização dos valores e normas constitucionais, contudo, a crescente utilização de princípios como fundamento para as decisões judiciais levanta um questionamento fundamental: até que ponto a interpretação desses princípios pode levar a uma transformação das decisões em meras aplicações da equidade, distanciando-se do arcabouço normativo estabelecido?
Partindo deste questionamento, o objetivo geral deste trabalho é pesquisar se as decisões interpretativas do Supremo Tribunal Federal têm se transformado em decisões por equidade. Para abordar essa questão de forma estruturada e aprofundada, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: demonstrar o que é equidade, explorando-a a partir da concepção de justiça como equidade proposta por John Rawls, distinguindo-a de uma proposição meramente metafísica e ressaltando sua aplicação no contexto político e constitucional; descrever o método de decisão baseada em princípios adotado pelo Supremo Tribunal Federal, analisando a nova interpretação constitucional brasileira, o papel dos princípios na superação do positivismo estrito, e os desafios da ponderação de valores; avaliar se a interpretação por princípios leva a uma aplicação da equidade nas decisões, confrontando as práticas hermenêuticas do STF com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, especialmente no que tange à moldura e à lacuna jus-interpretativa, a fim de defender que a interpretação não pode transmutar-se em mera decisão equitativa.
Para a análise dos dados será utilizado o método hipotético-dedutivo, baseado nas teorias de Karl Popper (1975), sendo efetuados os testes de falseamento a partir da possibilidade ou não de refutação dos pressupostos, com análise teórica e bibliográfica.
Importante ter em mente, que o estudo a ser desenvolvido se lastreia em que a Constituição, como norma superior do ordenamento jurídico, exige uma interpretação que garanta sua efetividade e a estabilidade da ordem social (SICCA, 1999). No entanto, essa tarefa hermenêutica é complexa e envolve a busca por um equilíbrio entre a supremacia do legislador e a garantia dos Direitos Fundamentais (SICCA, 1999). A preocupação reside em evitar que o Judiciário se torne excessivamente fraco, mero assistente da vida política, ou demasiadamente forte, a ponto de violar as atribuições dos demais poderes (SICCA, 1999).
Com este estudo, busca-se contribuir para o debate jurídico, defendendo a tese de que a interpretação judicial, mesmo aquela pautada em princípios, deve manter-se dentro dos limites da moldura kelseniana, assegurando a previsibilidade e a segurança jurídica, pilares essenciais de um Estado de Direito.
O CONCEITO DE EQUIDADE – JUSTIÇA COMO EQÜIDADE
Para compreendermos a distinção entre a interpretação de princípios e a decisão por equidade no contexto judicial, é fundamental que antes definamos o conceito de equidade. Recorro, para tanto, à obra de John Rawls, em especial sua concepção de justiça como equidade (justice as fairness) (RAWLS, 1992). Rawls apresenta essa ideia como uma concepção política, e não metafísica, de justiça, buscando que ela seja, na medida do possível, independente de controvérsias doutrinárias, filosóficas e religiosas (RAWLS, 1992).
A justiça como equidade é uma concepção que Rawls desenvolve para uma democracia constitucional, e seu objetivo é explicar por que essa concepção de justiça evita certas proposições filosóficas e metafísicas (RAWLS, 1992). Ao formular tal concepção, Rawls aplica o princípio da tolerância à própria filosofia, afirmando que a concepção pública de justiça deve ser política, e não metafísica (RAWLS, 1992).
O cerne da justiça como equidade não reside em uma presunção da verdade universal ou de uma natureza e identidade essenciais das pessoas, proposições filosóficas que Rawls deseja evitar (RAWLS, 1992). Em vez disso, ele propõe uma base para a cooperação social que se fundamente no respeito mútuo e na possibilidade de moderação das diferenças entre visões políticas concorrentes (RAWLS, 1992). A esperança é que, através de um método de esquiva (method of avoidance), as divergências possam ser atenuadas ou até removidas, permitindo a manutenção da cooperação social baseada no respeito mútuo (RAWLS, 1992).
Rawls sugere que as ideias intuitivas básicas de justiça como equidade se combinam em uma concepção política de justiça adequada para uma democracia constitucional (RAWLS, 1992). Essa concepção é reformulada para ser menos dependente de certas proposições filosóficas e metafísicas (RAWLS, 1992). Em sua obra "Justiça como Equidade: Uma Reformulação", organizada por Erin Kelly, Rawls aprofunda essa visão, reforçando a natureza política da justiça em contraposição a uma base metafísica (RAWLS, 2003). A obra discute ideias fundamentais como a sociedade como sistema equitativo de cooperação, a posição original, pessoas livres e iguais, justificação pública, equilíbrio reflexivo e consenso sobreposto (RAWLS, 2003).
A equidade, neste contexto, não se confunde com um juízo subjetivo de justiça no caso concreto, desvinculado de um sistema normativo preexistente. Pelo contrário, ela é apresentada como um princípio fundamental para a estruturação de uma sociedade justa, onde os princípios de justiça são escolhidos em uma posição original, sob um véu de ignorância, garantindo a imparcialidade (RAWLS, 2003). Rawls também aborda os dois princípios de justiça que regem a estrutura básica da sociedade, visando a uma distribuição justa e à garantia de liberdades iguais (RAWLS, 2003).
É crucial notar que a equidade, na acepção rawlsiana, serve como um alicerce para a construção de um sistema jurídico e político justo, e não como uma ferramenta para que o julgador corrija a lei em casos específicos com base em sentimentos pessoais de justiça. A justiça como equidade de Rawls é uma concepção política que visa a um acordo público coerente com as condições históricas e as restrições do mundo social, promovendo a cooperação social com base no respeito mútuo (RAWLS, 1992). Ela é uma concepção de justiça para a estrutura básica da sociedade e suas instituições, e não um critério para decisões casuísticas que subvertam o quadro normativo estabelecido.
Portanto, quando se discute a aplicação da equidade no Direito, especialmente no âmbito de um tribunal constitucional, é imperativo ter em mente essa distinção. A equidade, no sentido de uma busca por um ideal de justiça substancial para o caso individual, fora dos limites normativos, pode configurar uma perigosa derrapagem para o arbítrio judicial. Rawls nos ensina que a justiça, mesmo que se busque sua dimensão equitativa, deve ser política, sistemática e previsível, evitando proposições metafísicas que poderiam levar a decisões subjetivas e imprevisíveis.
O MÉTODO DE DECISÃO BASEADA EM PRINCÍPIOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A experiência política e constitucional brasileira, até a Constituição de 1988, foi marcada por um desencontro entre o país e seu povo, com a ilegitimidade do poder, a falta de efetividade das Constituições e uma sucessão de violações da legalidade constitucional (BARROSO, 2003). A falta de efetividade decorreu do não reconhecimento de força normativa aos textos constitucionais, prevalecendo a tradição europeia que via a Lei Fundamental como mera ordenação de programas de ação (BARROSO, 2003). No entanto, a Constituição de 1988 representou um marco de recomeço, com uma nova atitude em relação à sua efetividade (BARROSO, 2003).
A partir de 1988, as normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade e aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam (BARROSO, 2003). Mais do que isso, a Constituição passou a ser a lente através da qual se interpretam todas as normas infraconstitucionais (BARROSO, 2003). Esse movimento deu origem à nova interpretação constitucional no Brasil (BARROSO, 2003).
Nesse novo cenário, o papel dos princípios no Direito brasileiro ganhou destaque fundamental (BARROSO, 2003). O pós-positivismo abriu caminho para um conjunto amplo de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação (BARROSO, 2003). A redescoberta dos princípios como elementos normativos, embora inicialmente deslumbrante, trouxe consigo o desafio da elaboração teórica das dificuldades que sua interpretação e aplicação oferecem, tanto na determinação de seu conteúdo quanto no de sua eficácia (BARROSO, 2003).
O Supremo Tribunal Federal (STF), no exercício de seu papel de guardião da Constituição, passou a adotar um método de decisão que envolve a interpretação e a aplicação de princípios constitucionais. Um dos mecanismos cruciais é a interpretação conforme à Constituição (Verfassungskonforme Auslegung) (SICCA, 1999). Este princípio determina que se leve em conta a Constituição como norma superior do ordenamento, vinculando toda a atividade hermenêutica ao seu texto (SICCA, 1999). A interpretação conforme busca garantir a relação entre o princípio democrático (caracterizado no Parlamento e nas normas por ele emanadas) e o princípio da supremacia da Constituição, assegurando a separação dos poderes (SICCA, 1999).
Contudo, a aplicação de princípios não é um processo trivial. Diferentemente das regras, que são aplicadas no formato tudo ou nada, os princípios admitem diferentes graus de concretização e podem ser aplicados com maior ou menor intensidade, à vista de circunstâncias jurídicas ou fáticas, sem que isso afete sua validade (BARROSO, 2003). Isso leva à necessidade da ponderação de interesses, bens, valores (BARROSO, 2003). A ponderação é o processo pelo qual o intérprete, diante de um caso concreto, sopesa os princípios aplicáveis, que muitas vezes podem estar em conflito, e determina qual deles prevalecerá ou em que medida cada um será aplicado (BARROSO, 2003).
Luís Roberto Barroso, em seu artigo "O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro", destaca que a ponderação de valores e a argumentação jurídica são temas centrais nessa nova fase do Direito Constitucional (BARROSO, 2003). Ele ressalta que o caráter aberto de muitas normas, o espaço de indefinição de conduta deixado pelos princípios e os conceitos indeterminados conferem ao intérprete um elevado grau de subjetividade (BARROSO, 2003). A demonstração lógica adequada do raciocínio desenvolvido é vital para a legitimidade da decisão proferida (BARROSO, 2003).
O princípio da razoabilidade, por exemplo, é uma ferramenta interpretativa que permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando não há adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado, quando a medida não é necessária ou quando não há proporcionalidade em sentido estrito (BARROSO, 2003). Essa atuação, embora essencial para a proteção de Direitos, exige uma fundamentação robusta para não se converter em mero ativismo judicial.
A jurisprudência do STF, especialmente após 1988, tem se valido progressivamente da teoria dos princípios, da ponderação de valores e da argumentação. A dignidade da pessoa humana, por exemplo, tem ganhado densidade jurídica e servido de fundamento para decisões judiciais, funcionando o princípio da razoabilidade como a justa medida de aplicação de qualquer norma (BARROSO, 2003).
Apesar do avanço e da importância dessa nova abordagem, a discricionariedade inerente à aplicação e à ponderação de princípios pode, em certas situações, levar a uma aproximação perigosa com a ideia de decisão por equidade, se não forem observados limites claros. É nesse ponto que a Teoria Pura do Direito de Kelsen se mostra crucial, oferecendo um contraponto necessário para a manutenção da segurança jurídica.
A INTERPRETAÇÃO POR PRINCÍPIOS E A APLICAÇÃO DA EQUIDADE: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A ÓTICA KELSENIANA
A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, como o próprio nome sugere, busca purificar o Direito de quaisquer elementos estranhos a ele, como a moral, a sociologia ou a política. Kelsen propõe um sistema jurídico hierárquico, uma pirâmide normativa, na qual cada norma encontra seu fundamento de validade em uma norma superior, culminando na Norma Fundamental (BASTOS, 2017). Dentro dessa teoria, a interpretação do Direito ocupa um lugar específico e fundamental.
João Alves Bastos, em seu artigo "Da Interpretação do Direito Segundo Hans Kelsen: Uma Proposta de Controle de sua Lacuna Jus-Interpretativa", explora a visão kelseniana da interpretação (BASTOS, 2017). Kelsen sustenta que a interpretação de uma norma jurídica não conduz a uma única solução correta, mas sim a um quadro ou moldura (Kelsen's frame) de possibilidades (BASTOS, 2017). O aplicador do Direito – seja o juiz, o administrador ou o legislador – tem a liberdade de escolher, dentro dessa moldura, uma das possibilidades oferecidas pela norma (BASTOS, 2017). Essa escolha é um ato de vontade, um ato de criação do Direito, e não um ato de mero conhecimento (BASTOS, 2017).
A interpretação, para Kelsen, não é o preenchimento de uma lacuna, mas sim a concretização da moldura que a própria norma oferece. As lacunas jus-interpretativas, na visão kelseniana, não são falhas da lei que devem ser preenchidas por um "poder discricionário" ilimitado do juiz. Em vez disso, a lacuna ocorre quando há várias possibilidades de aplicação da norma, e a escolha de uma delas é um ato volitivo (BASTOS, 2017). Bastos busca suprir a lacuna na interpretação pura do Direito segundo Kelsen, questionando a insuficiência da interpretação pura para determinar o sentido das normas jurídicas (BASTOS, 2017).
A questão central que se coloca é: como conciliar a inevitável escolha do aplicador do Direito dentro da moldura kelseniana com a crescente utilização de princípios pelo STF, que, por sua natureza, possuem um grau maior de abstração e podem gerar um leque mais amplo de possibilidades interpretativas? O perigo reside em que a "escolha" dentro da moldura se transforme em uma decisão por equidade, desprovida de ancoragem normativa suficiente, e que transcenda os limites que Kelsen impõe à atividade interpretativa.
Enquanto a interpretação conforme à Constituição busca, como visto anteriormente, manter a validade da norma infraconstitucional através de uma interpretação que a harmonize com a Constituição (SICCA, 1999), e a ponderação de princípios sopesa bens e valores (BARROSO, 2003), essas ferramentas devem ser empregadas com a consciência dos limites da moldura kelseniana. O espaço de indefinição de conduta deixado pelos princípios e os conceitos indeterminados (BARROSO, 2003) confere ao intérprete um elevado grau de subjetividade, o que exige que a demonstração lógica do raciocínio seja vital para a legitimidade da decisão (BARROSO, 2003).
A equidade, como um juízo de justiça no caso concreto, desvinculado de uma norma geral preexistente ou extrapolando a moldura normativa, é precisamente o que a Teoria Pura do Direito de Kelsen busca evitar em um sistema jurídico baseado na legalidade. Para Kelsen, o Direito é um sistema de normas, e a aplicação do Direito é a criação de uma norma individual (a sentença) a partir de uma norma geral (a lei) (BASTOS, 2017). A escolha do aplicador do Direito deve se dar dentro das possibilidades jurídicas presentes na moldura de Kelsen, as quais decorrem do processo de interpretação do texto normativo (BASTOS, 2017).
Se o STF, ao interpretar princípios, age como um legislador positivo que cria a norma para o caso concreto sem que essa criação esteja contida na "moldura" da norma superior, ele estaria, de fato, proferindo decisões por equidade. Isso significa que a decisão não seria uma aplicação do Direito preexistente, mas uma criação ex nihilo ou baseada em um sentimento de justiça que não possui lastro normativo suficiente. Isso comprometeria seriamente a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões, pois os cidadãos não teriam como antever o resultado de uma controvérsia jurídica.
Ainda que a Constituição de 1988 tenha permitido uma interpretação mais aberta e valorativa, com a ascensão dos princípios, a legitimidade das decisões judiciais ainda depende da aderência a um raciocínio jurídico que possa ser justificado objetivamente (BARROSO, 2003). A interpretação criativa, mas comprometida com a boa dogmática jurídica, defendida por Barroso (BARROSO, 2003), deve encontrar seu limite na moldura kelseniana. A superação da ilegitimidade do poder político e a efetividade das normas constitucionais, que a Constituição de 1988 buscou (BARROSO, 2003), não podem ser alcançadas por meio de decisões que, a pretexto de realizar a justiça no caso concreto, desconsiderem os limites da interpretação e se transformem em juízos puramente equitativos.
Em suma, o desafio do Supremo Tribunal Federal é aplicar os princípios constitucionais de forma a concretizar os valores da Carta Magna, sem, contudo, transformar-se em um tribunal de equidade. A lacuna jus-interpretativa de Kelsen nos alerta que, mesmo diante de múltiplas possibilidades, a escolha do julgador deve ser uma decorrência do texto normativo, ainda que em sua dimensão mais abstrata (princípios), e não uma criação arbitrária. O respeito à moldura kelseniana é o baluarte contra o ativismo judicial desmedido e a garantia de que as decisões permaneçam sendo atos de aplicação do Direito, e não de sua pura e simples invenção.
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho, exploramos o complexo terreno da interpretação jurídica no Brasil, com foco nas decisões do Supremo Tribunal Federal e no risco de que a aplicação de princípios se converta em um exercício de equidade, desvinculado da estrutura normativa kelseniana.
Inicialmente foi aprofundado o conceito de equidade a partir da perspectiva de John Rawls e sua justiça como equidade. Conclui-se que a concepção rawlsiana é uma abordagem política para a justiça, buscando a imparcialidade e a construção de um sistema equitativo de cooperação, distanciando-se de noções metafísicas ou subjetivas de justiça (RAWLS, 1992). Essa distinção é crucial, pois a equidade, no sentido de uma correção da lei para o caso concreto baseada em sentimentos pessoais de justiça, é precisamente o que devemos evitar no âmbito da jurisdição constitucional. A justiça como equidade de Rawls é uma ferramenta para estruturar a sociedade e suas instituições, e não um salvo-conduto para decisões casuísticas desprovidas de base normativa sólida.
Em seguida, foi analisada a evolução da interpretação constitucional brasileira, com a Constituição de 1988 marcando o reconhecimento da força normativa dos textos constitucionais e a ascensão dos princípios (BARROSO, 2003). Descreveram-se o método de decisão baseada em princípios adotado pelo STF, que envolve a interpretação conforme à Constituição (SICCA, 1999) e a ponderação de valores (BARROSO, 2003). Embora essenciais para a concretização dos Direitos Fundamentais, reconheceu-se que a abstração dos princípios e a inerente subjetividade na ponderação podem gerar um elevado grau de discricionariedade (BARROSO, 2003), o que levou à análise crítica da continuação do texto.
Por fim, confrontou-se a prática interpretativa com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Relembrou-se que, para Kelsen, a interpretação não leva a uma única solução, mas a uma moldura de possibilidades, dentro da qual o aplicador do Direito faz uma escolha volitiva (BASTOS, 2017). A lacuna jus-interpretativa não autoriza a invenção do Direito, mas a seleção de uma das opções que a própria norma oferece (BASTOS, 2017). O ponto central da nossa defesa é que as decisões interpretativas do Supremo Tribunal Federal, mesmo ao lidar com princípios, devem respeitar os limites dessa moldura kelseniana. Uma decisão que transcenda essas possibilidades, baseando-se em um juízo de equidade puramente subjetivo, seria uma criação de norma ex nihilo, comprometendo a segurança jurídica e a separação de poderes.
Em resposta ao objetivo geral, a pesquisa indica que existe uma tendência, na interpretação por princípios pelo Supremo Tribunal Federal, de se aproximar perigosamente das decisões por equidade, especialmente se não houver um compromisso rigoroso com a justificação racional e a aderência à moldura normativa. A interpretação por princípios, quando exercida sem os devidos freios teóricos, pode levar a uma aplicação da equidade nas decisões que desvirtua o papel do Judiciário e fragiliza o Estado de Direito.
Portanto, defende-se que a interpretação de princípios pelo Supremo Tribunal Federal não pode se transformar em decisões por equidade. É imperativo que o STF, ao concretizar os princípios constitucionais, faça-o dentro dos limites da moldura normativa de Kelsen, garantindo que suas escolhas sejam uma decorrência das possibilidades jurídicas preexistentes, e não um ato de pura vontade ou de justiça individualizada que subverte a primazia da lei. Somente assim poderemos assegurar que a efetividade da Constituição caminhe lado a lado com a segurança jurídica e a previsibilidade, elementos indispensáveis para a confiança no sistema de justiça e para a construção de um país verdadeiramente justo e digno.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 23, p. 25-62, 2003. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revista/revista23/23_25.pdf. Acesso em: 04 jul. 2025.
BASTOS, João Alves. Da Interpretação do Direito Segundo Hans Kelsen: Uma Proposta de Controle de sua Lacuna Jus-Interpretativa. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 79, p. 181-203, maio/ago. 2017. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revista/revista79/79_181.pdf. Acesso em: 04 jul. 2025.
POPPER, Karl S. A lógica da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975.
RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Concepção Política, Não Metafísica. Tradução de Regis de Castro Andrade. Lua Nova, n. 25, p. 26-60, 1992. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n25/n25a02.pdf. Acesso em: 04 jul. 2025.
RAWLS, John. Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação. Organizado por Erin Kelly. Tradução de Claudia Berliner. Revisão técnica e da tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4379309/mod_resource/content/1/justic3a7a-como-equidade.pdf. Acesso em: 04 jul. 2025.
SICCA, Gerson dos Santos. A interpretação conforme à Constituição - Verfassungskonforme Auslegung - no Direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 36, n. 143, jul./set. 1999. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/RIL%20143/R143-03.pdf. Acesso em: 04 jul. 2025.