Capa da publicação Caixa dois: como empresas burlam o Fisco no Brasil
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O crime de caixa dois: análise jurídica e mecanismos de ocultação fiscal no cenário brasileiro

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Como empresas e autônomos praticam o caixa dois no Brasil? O artigo analisa os mecanismos fiscais ilícitos e os crimes envolvidos, como sonegação, falsidade e lavagem de dinheiro.

Resumo: O presente artigo científico aborda o fenômeno do "caixa dois" no contexto jurídico brasileiro, examinando sua definição, as implicações legais e os mecanismos empregados por empresas e profissionais para a sua prática. Inicialmente, conceitua-se o caixa dois como a movimentação de recursos financeiros não contabilizados ou falsamente registrados, com o intuito primordial de sonegação fiscal. Em seguida, discorre-se sobre as principais formas pelas quais as pessoas jurídicas orquestram a maquiagem de suas demonstrações contábeis perante o Fisco, incluindo a omissão de receitas, o superfaturamento de despesas e o subfaturamento de compras. Um estudo de caso específico é apresentado, detalhando como academias e personal trainers podem criar e operar um caixa paralelo, notadamente através da evasão da emissão de notas fiscais e da preferência por pagamentos não rastreáveis. Por fim, analisam-se as bases legais para a criminalização do caixa dois, destacando as leis de combate à sonegação fiscal, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro, bem como a abordagem da jurisprudência brasileira sobre o tema. Conclui-se pela imperiosa necessidade de aprimoramento dos mecanismos de fiscalização e pela conscientização sobre os graves impactos jurídicos e sociais dessa conduta.

Palavras-chave: Caixa Dois; Sonegação Fiscal; Crime Tributário; Contabilidade Paralela.


1. Introdução

O crime de "caixa dois" representa uma das mais persistentes e danosas práticas ilícitas no cenário econômico-financeiro brasileiro. Caracterizado pela manutenção de recursos financeiros em paralelo à contabilidade oficial, essa conduta visa, em sua essência, à ocultação de rendimentos e à consequente sonegação de tributos. Contudo, suas ramificações se estendem para além do campo fiscal, podendo configurar crimes de falsidade ideológica e até mesmo lavagem de dinheiro, conforme a origem e o destino dos valores.

A complexidade da legislação tributária e a busca por vantagens competitivas desleais impulsionam empresas de diversos portes e setores a se valerem de expedientes ilegais para reduzir sua carga tributária. Essa prática, embora muitas vezes percebida como uma "malandragem", acarreta graves prejuízos ao erário público, minando a capacidade do Estado de financiar serviços essenciais e promover o desenvolvimento social.

Este artigo se propõe a desmistificar o funcionamento do caixa dois, apresentando sua definição jurídica, os principais artifícios utilizados pelas empresas para maquiar suas contas e um estudo de caso específico no setor de academias e personal trainers, que ilustra a diversidade de contextos em que essa ilegalidade pode ser observada. Adicionalmente, será feita uma análise das leis brasileiras que tipificam condutas relacionadas ao caixa dois e a forma como o Poder Judiciário tem se posicionado sobre o tema.


2. O Conceito de Caixa Dois e Suas Implicações Jurídicas

O termo "caixa dois" não encontra uma definição legal explícita em um único dispositivo normativo no Brasil. Trata-se de uma expressão popularizada para designar a movimentação de recursos financeiros não registrados na contabilidade oficial de uma pessoa jurídica ou física, ou o registro fraudulento desses valores. O objetivo primário dessa prática é a sonegação fiscal, ou seja, a diminuição indevida do montante de impostos a serem pagos, mediante a ocultação de receitas ou a falsificação de despesas.

Juridicamente, a prática do caixa dois se enquadra em diversos tipos penais, dependendo da sua finalidade e dos meios empregados. As principais tipificações são:

  • Crimes contra a Ordem Tributária: A Lei nº 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, é a principal base legal para punir a sonegação. O artigo 1º, em seus incisos, descreve condutas como "omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias" ou "fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos ou omitindo operação de qualquer natureza em documento ou livro exigido pela lei fiscal". A pena para esses crimes varia de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa. A manutenção de contabilidade paralela e a omissão de receitas à fiscalização tributária, com o objetivo de reduzir o pagamento de impostos, configura o crime previsto no art. 1º, inciso I. O dolo de suprimir ou reduzir tributo é inerente à conduta de ocultar o faturamento.

  • Falsidade Ideológica: O Art. 299 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40) tipifica a falsidade ideológica, que ocorre quando se "omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante". A emissão de notas fiscais com valores menores ou a omissão de receitas em livros contábeis pode configurar este crime, com pena de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, se o documento for público, e reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, se o documento for particular.

  • Lavagem de Dinheiro: A Lei nº 9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro) pode ser aplicada se os recursos do caixa dois tiverem origem em atividades ilícitas (como corrupção, tráfico de drogas, etc.) ou se o caixa dois for utilizado para ocultar ou dissimular a origem, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes de infrações penais. A pena é de reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa.

A detecção do caixa dois é complexa, exigindo investigações aprofundadas por parte das autoridades fiscais e policiais, que frequentemente utilizam técnicas de auditoria, cruzamento de dados bancários e fiscais, e quebras de sigilo.


3. Mecanismos Utilizados por Empresas para Maquiar a Contabilidade

A criatividade na dissimulação fiscal é vasta, mas alguns mecanismos são recorrentes na prática do caixa dois empresarial:

  • Omissão de Receitas:

    • Não Emissão de Notas Fiscais: A forma mais direta de ocultar uma venda de produto ou prestação de serviço é simplesmente não emitir o documento fiscal correspondente. O pagamento é recebido em dinheiro ou por outros meios não rastreáveis, e o valor não transita pela contabilidade oficial.

    • Subfaturamento de Notas Fiscais: A nota fiscal é emitida, mas com um valor inferior ao da transação real. A diferença é recebida "por fora" e não declarada.

    • Vendas sem Comprovante Fiscal: Em setores com alto volume de vendas diretas ao consumidor, como varejo e serviços, a prática de não emitir cupom fiscal ou nota fiscal eletrônica para todas as transações é um expediente comum.

  • Superfaturamento de Despesas:

    • Notas Fiscais Frias ou Inidôneas: A empresa adquire notas fiscais de empresas "fantasmas" ou de fornecedores que emitem documentos por serviços ou produtos não prestados ou não entregues, ou com valores inflacionados. Essas "despesas" fictícias reduzem o lucro tributável.

    • Comprovantes Manipulados: Alteração de valores em recibos e outros comprovantes de despesa para inflar os custos.

  • Subfaturamento de Compras:

    • Ao comprar produtos ou matérias-primas, a empresa solicita ao fornecedor que emita uma nota fiscal com valor abaixo do real. A diferença é paga "por fora". Isso pode reduzir o custo de aquisição aparente, impactando o custo dos produtos vendidos (CPV) e, por consequência, o lucro bruto.

  • Contabilidade Paralela:

    • A manutenção de dois conjuntos de livros contábeis: um "oficial", para apresentação ao Fisco, e outro "real", que reflete as verdadeiras movimentações financeiras da empresa. Os dados do caixa dois são registrados apenas no livro "real".

  • Uso de Contas Bancárias Alternativas:

    • Utilização de contas bancárias em nome de pessoas físicas ("laranjas") ou de outras empresas ligadas aos sócios, mas não vinculadas oficialmente à contabilidade da empresa principal, para movimentar os recursos não declarados.


4. O Caso Específico das Academias e Personal Trainers

O setor de serviços, e em particular o de academias e personal trainers, apresenta características que facilitam a prática do caixa dois, especialmente no que tange à movimentação de valores "por fora".

  1. Taxas de Personal Trainer sem Nota Fiscal:

    • Muitas academias cobram uma taxa de seus alunos que contratam personal trainers externos para utilizarem as instalações. Essa taxa, por vezes, é paga diretamente em dinheiro ao proprietário ou gerente da academia, sem a emissão de qualquer recibo ou nota fiscal. A transação não é registrada na contabilidade oficial da academia.

    • Em alguns casos, a própria academia oferece personal trainers, e o pagamento dessas aulas avulsas ou pacotes pode ser realizado em dinheiro, sem registro fiscal, complementando a receita "por fora".

  2. Pagamento Direto ao Personal Trainer (Sem Intermediação ou Declaração):

    • Um personal trainer que atende em diversas academias ou em domicílio pode receber seus pagamentos diretamente dos alunos, em dinheiro ou por transferências bancárias não identificadas como receita profissional. Frequentemente, esses profissionais, que atuam como autônomos, não emitem nota fiscal ou sequer possuem CNPJ, inviabilizando o rastreamento fiscal de sua receita.

    • A Lei nº 9.696/98 regulamenta a profissão de Educação Física e a atuação do personal trainer. No entanto, a fiscalização sobre a emissão de notas fiscais por parte desses profissionais é um desafio. O Artigo 19 da Lei nº 8.137/90, por exemplo, estabelece que "qualquer pessoa física ou jurídica que, por sua conduta, concorra para a prática de crimes definidos nesta Lei, será punida na medida de sua culpabilidade". Assim, tanto a academia quanto o personal trainer que se beneficiam ou colaboram para a omissão fiscal podem ser responsabilizados.

  3. Recusa de Meios de Pagamento Rastreados (Cartão de Crédito/Débito):

    • A preferência ou exigência de pagamentos em dinheiro ou via PIX para contas de pessoas físicas (não vinculadas ao negócio) é um forte indício de caixa dois. Meios de pagamento eletrônicos, como cartões de crédito e débito, geram registros que são facilmente auditáveis pelas autoridades fiscais, tornando a ocultação de receita muito mais difícil.

    • A utilização de maquininhas de cartão não registradas no CNPJ da empresa, ou o uso de maquininhas em nome de "laranjas", também é uma tática para desviar a receita.

Essas práticas resultam em uma subdeclaração da receita bruta da academia e/ou do personal trainer, levando à diminuição indevida do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) devido à prefeitura, bem como do IRPJ e da CSLL (para a academia) e do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) para o personal trainer.


5. A Jurisprudência Brasileira e o Caixa Dois

A jurisprudência brasileira tem consolidado o entendimento de que o caixa dois, embora não seja um tipo penal autônomo, configura ilícitos penais, notadamente os crimes contra a ordem tributária. Os tribunais superiores têm reiteradamente afirmado que a omissão de receitas ou a falsidade na contabilidade, com o intuito de suprimir ou reduzir tributos, caracteriza o crime de sonegação fiscal.

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O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm reforçado a competência da Justiça Federal para julgar crimes de sonegação fiscal envolvendo tributos federais e a da Justiça Estadual para tributos estaduais e municipais. A discussão sobre a competência para julgar o caixa dois eleitoral, por exemplo, tem sido uma pauta relevante, com o STF firmando o entendimento de que a Justiça Eleitoral possui competência para julgar crimes de caixa dois de campanha, mesmo quando em conexão com outros delitos, como corrupção e lavagem de dinheiro, desde que a relação com o crime eleitoral seja comprovada.


6. Conclusão

O caixa dois é uma prática nefasta que transcende a mera irregularidade fiscal, configurando uma complexa teia de ilícitos penais que corroem a ordem tributária, econômica e, em última instância, a própria integridade do sistema jurídico e social. A omissão de receitas e a maquiagem contábil, seja por grandes corporações ou pequenos negócios como academias, demonstram a persistência de uma cultura de informalidade e ilegalidade que busca furtar-se às responsabilidades fiscais.

A combatividade a essa prática exige não apenas o aprimoramento dos mecanismos de fiscalização e investigação por parte das autoridades fazendárias e policiais, mas também uma conscientização social sobre os graves prejuízos que o caixa dois impõe à coletividade. A arrecadação de tributos é essencial para o financiamento de serviços públicos vitais, como saúde, educação e segurança.

Portanto, a adesão à legalidade e a transparência nas operações financeiras e contábeis não são apenas obrigações legais, mas pilares fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa, onde a carga tributária seja distribuída de forma equânime e os recursos públicos sejam devidamente aplicados em benefício de todos.


Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Acesso em: 27.6.2025.

BRASIL. Decreto-Lei n° 4.729, de 14 de julho de 1965. Define os crimes de sonegação fiscal e dá outras providências. Disponível em: Lei n° 4.729, de 14 de julho de 1965. Acesso em: 26.6.2025.

BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Acesso em: 26.6.2025

BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências.

BRASIL. Lei nº 9.696, de 1º de setembro de 1998. Dispõe sobre a regulamentação da Profissão de Educação Física e cria os Conselhos Federal e Regionais de Educação Física.

SENADO FEDERAL. Caixa dois — Manual de Comunicação. Brasília: Senado Federal, 2024. Acesso em: 26 jun. 2025.

CONUBE. O que é caixa 2 nas empresas e qual a importância da emissão da nota fiscal?. São Paulo: Conube, [s.d.]. Acesso em: 26 jun. 2025.

THE CONTROL CONTABILIDADE. Nota Fiscal Personal trainer é obrigado a emitir ?. [S.l.]: The Control Contabilidade, 2023. Acesso em: 26 jun. 2025.


Nota

[1] Art. 1º da Lei nº 8.137 | Lei Dos Crimes Contra A Ordem Tributária, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponivel em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm>


Abstract: This scientific article addresses the phenomenon of "slush funds" (caixa dois) within the Brazilian legal context, examining its definition, legal implications, and the mechanisms employed by companies and professionals for its practice. Initially, the slush fund is conceptualized as the movement of unaccounted or falsely recorded financial resources, with the primary intention of tax evasion. Subsequently, it discusses the main ways in which legal entities orchestrate the whitewashing of their financial statements before the tax authorities, including revenue omission, expense overbilling, and purchase underbilling. A specific case study is presented, detailing how gyms and personal trainers can create and operate a parallel fund, notably through the evasion of issuing invoices and the preference for untraceable payments. Finally, the legal bases for the criminalization of slush funds are analyzed, highlighting laws combating tax evasion, ideological falsehood, and money laundering, as well as the approach of Brazilian jurisprudence on the subject. The article concludes by emphasizing the imperative need to improve inspection mechanisms and raise awareness about the severe legal and social impacts of this conduct.

Keywords: Slush Fund; Tax Evasion; Tax Crime; Parallel Accounting.

Sobre o autor
Antonio Alexandre de Carvalho Galvão

Graduado em Educação Física e Bacharel em Direito; é pós-graduado em Fisiologia do exercício e Biomecânica do movimento humano (Centro UniFatec); pós- graduado em Direito Civil, Direito do Consumidor e Direito Constitucional (Faculdade Líbano). Tem experiência na área de Educação Física, com ênfase em Reabilitação em Ombro e joelho. Diversos cursos nas áreas de prevenção de lesões, emagrecimento saudável, Personal Trainer, treinamento funcional, atendimento ao cliente, reabilitação de lesões, bandagem elástica funcional e outros. Sou um profissional pró-ativo, dinâmico e cooperativo em trabalhos com profissionais da área de Educação Física e outras áreas da saúde (nutricionistas, fisioterapeutas, médicos). "Estou procurando um lugar que precise de muitas reformas e consertos, mas que tenha fundações sólidas. Estou disposto a demolir paredes, construir pontes e acender fogueiras. Tenho uma grande experiência, um monte de energia, um pouco dessa coisa de visão e não tenho medo de começar do zero". STEVE JOBS

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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