A escola de Beirute e o jurista do século XXI: entre a IA, a desinformação e a responsabilidade

10/07/2025 às 20:49

Resumo:


  • O ensaio destaca a importância da Escola de Direito de Beirute como símbolo de formação jurídica que une erudição, vocação pública e coragem para regular o poder.

  • Aponta o dilema contemporâneo em que faculdades de Direito formam bacharéis, mas há hesitação em preparar juristas para lidar com desafios como inteligência artificial, desinformação e plataformas globais.

  • Destaca o recente julgamento do STF sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet, ressaltando a necessidade de o Direito não ser refém de códigos fechados e de assumir a responsabilidade de vigiar o poder digital.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Escola de Beirute e o Jurista do Século XXI: Entre a IA, a Desinformação e a Responsabilidade

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra. Professor Universitário. Especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e em Compliance (FGV-SP)

Resumo

Mais do que relembrar ruínas, este ensaio recupera a Escola de Direito de Beirute como símbolo de um ideal — o de uma formação jurídica que une erudição, vocação pública e coragem para regular o poder. A leitura é crítica: em plena era da inteligência artificial e da desinformação, faculdades de Direito multiplicam diplomas, mas hesitam em formar juristas aptos a enfrentar plataformas globais e algoritmos que moldam consciências. O recente julgamento do STF sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet expõe o nervo exposto: o Direito não pode ser refém de códigos fechados, mas também não pode terceirizar sua função de vigiar o poder digital. É hora de reaprender com Beirute — ou perder o fio civilizatório.

Palavras-chave: Beirute. Formação Jurídica. Desinformação. IA. STF. Marco Civil.

Abstract

More than recalling ancient ruins, this essay reclaims the School of Law of Beirut as a symbol of an ideal — legal education that combines erudition, public vocation and the courage to regulate power. The reading is critical: in the era of artificial intelligence and disinformation, law schools multiply degrees but hesitate to train jurists ready to confront global platforms and algorithms that shape minds. The recent ruling by Brazil’s Supreme Court on Article 19 of the Civil Rights Framework for the Internet reveals the raw nerve: the law must not be hostage to closed codes, nor outsource its duty to monitor digital power. It is time to relearn from Beirut — or lose the civilizing thread.

Keywords: Beirut. Legal Education. Disinformation. AI. Supreme Court. Civil Rights Framework.

Sumário: 1. Introdução. 2. Beirute: não apenas um passado. 3. O dilema contemporâneo: diploma não é bússola. 4. Um exemplo vivo: o art. 19 e o pulso do STF. 5. Para onde vamos: regressão ou reinvenção. 6. Conclusão: ou nutriz, ou ruína. 7. Referências

1. Beirute: não apenas um passado

A Escola de Direito de Beirute não foi só uma curiosidade arqueológica. Foi uma promessa cumprida de que o Direito pode ser maior que um Império — e sobreviver à queda de pedras, incêndios e terremotos.

Ali se formaram não apenas intérpretes de normas, mas engenheiros da ordem: Papiniano, Ulpiano, Doroteu. Os principais Juristas Romanos da época, que não temiam enfrentar governantes, estruturar códigos, dar forma universal a princípios.

Enquanto isso, hoje, no Brasil, mais de mil cursos de Direito despejam milhares de bacharéis por ano — mas quantos Papinianos se formam?

Quantos Ulpianos são preparados para dizer “não” ao poder desmedido das “big techs”, da IA enviesada, do algoritmo que lucra com mentira e ódio?

2. O dilema contemporâneo: diploma não é bússola

Vivemos num paradoxo: nunca se falou tanto de Direito — mas nunca se confiou tão pouco em quem o professa.

De um lado, advogados automatizados, petições escritas por IA, pareceres instantâneos e de outro, “fake News” travestidas de parecer técnico, redes que amplificam narrativas tóxicas e trituram reputações.

No meio disso, o velho jurista, sem bússola, fascinado ou amedrontado pelo poder dos bytes, premido pela velocidade e falta de profundidade que permeia a redes sociais.

Beirute ensinava: texto legal sem interpretação sistêmica não é nada e Direito sem comunidade é ruína.

Não basta exibir códigos ou diplomas — é preciso formar intérpretes que saibam o que o código não diz, o que o algoritmo não filtra, o que a máquina não substitui: coragem, responsabilidade, consciência e compromisso ético.

3. Um exemplo vivo: o art. 19, o pulso do STF e o alerta ao legislador

O julgamento final do STF, concluído em junho de 2025, redesenhou o art. 19 do Marco Civil da Internet.

De um lado, a Corte declarou a regra parcialmente inconstitucional, por entender que exigir sempre ordem judicial blindava plataformas que lucram com conteúdo ilícito — sobretudo quando se trata de fake news, golpes de Estado, terrorismo, crimes de ódio ou violência contra crianças e mulheres.

Por outro lado, o Supremo manteve a exigência da ordem judicial para crimes contra a honra, reconheceu exceções para serviços privados (mensageria, e-mail, vídeo fechado) e modulou a responsabilização, impondo autorregulação, canais de denúncia e relatórios públicos.

A tese foi clara: “Há omissão legislativa parcial que deixa bens constitucionais sem proteção suficiente”.

Enquanto o Congresso não age, o STF avisa: a omissão não é salvo-conduto, sendo que para conteúdo impulsionado, redes artificiais de bots ou crimes graves, o provedor responde sem esperar intimação do juiz.

Ou seja: a plataforma agora é co-reguladora. Se falhar, paga. Se lucrar com ódio, paga. Se fingir que não vê, paga. É o Direito forçando a porta do poder privado digital — um poder que nenhum Papiniano imaginaria, mas que certamente enfrentaria.

4. Para onde vamos: regressão ou reinvenção

O futuro não vai perguntar se o jurista gosta ou teme a IA — ela já está aqui. Vai perguntar se ele sabe utilizá-la. Se sabe limitar a máquina, expor o viés, impor responsabilidade a quem lucra e viola direitos. Vai exigir juristas que entendam de código, mas não se curvem a ele.

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Beirute sobrevive porque era ponte: entre Oriente e Ocidente, entre texto e vida, entre lei e moral.

O ensino jurídico que quiser ser digno desse legado precisará ser ponte também: entre algoritmo e Constituição, entre liberdade e responsabilidade, entre sociedade e plataforma.

5. Conclusão: o legado que vira bússola

Essa decisão não resolve tudo. O STF mesmo preconizou: sem nova lei, falta a necessária segurança jurídica.

Mas, até lá, a mensagem é forte: o Direito não pode se esconder atrás de lacunas legislativas. Ou aprende a vigiar algoritmos, moderar narrativas tóxicas e regular o lucro da mentira — ou perde sua função civilizatória.

Se Beirute sobreviveu ao tempo, foi porque formou intérpretes corajosos. O ensino jurídico de hoje precisa olhar para o art. 19 do Marco Legal da Internet, o STF e o vazio legislativo como chamados de vocação e extrema responsabilidade: ou forma juristas que entendam plataformas, IA, redes e suas patologias — ou passará a ser apenas um belo sítio arqueológico, estudado por quem já não precisa mais dele.

Referências:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 1.037.396 (Tema 987 da Repercussão Geral). Rel. Min. Dias Toffoli. Recurso Extraordinário n.º 1.057.258 (Tema 533). Rel. Min. Luiz Fux. Reconhecimento parcial de inconstitucionalidade do art. 19 da Lei n.º 12.965/2014. Julgamento final em 26 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-parametros-para-responsabilizacao-de-plataformas-por-conteudos-de-terceiros. Acesso em: 10 de jul. de 2025.

BUZAID, Alfredo. A Escola de Direito de Beirute: Berytus...Legum nutrix. Revista de História, São Paulo, v. 32, n. 66, p. 309–327, 1966. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.rh.1966.124424. Disponível em: https://revistas.usp.br/revhistoria/article/view/124424.. Acesso em: 10 jul. 2025.

SAD, Adib Kassouf. A escola de direito de Beirute e a vocação dos libaneses. Revista Libanus, 1ª edição, 10 nov. 2020. Disponível em: https://revistalibanus.com.br/2020/11/10/escola-de-direito-beirute/. Acesso em: 10 jul. 2025.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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