O acordo de não persecução penal e sua importância para o direito negocial brasileiro

10/07/2025 às 22:12
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“O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP) E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO NEGOCIAL BRASILEIRO”

“THE NON-CRIMINAL PROSECUTION AGREEMENT (NPA) AND ITS IMPORTANCE FOR BRAZILIAN BUSINESS LAW”

Danilo Gomes da Costa

RESUMO

Este artigo trata do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) e as inovações que o instituto trouxe ao sistema penal brasileiro. O estudo realizado aborda aspectos históricos, bem como suas origens, aponta também alguns mecanismos estrangeiros que serviram de inspiração para os atuais modelos negociais existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Traça considerações, semelhanças e diferenças entre o ANPP e outros negócios jurídicos despenalizadores, como a transação penal e a suspensão condicional do processo. Também aponta os requisitos objetivos, subjetivos, as condições e os pressupostos de existência, validade e eficácia do acordo. Além disso, aborda os impactos que esse negócio jurídico pode apresentar para auxiliar na melhor, mais célere e eficaz aplicação do jus puniendi estatal.

Palavras-chave: Acordo de não persecução penal. ANPP. Direito negocial. Pacote anticrime.

ABSTRACT

This paper examines the Non-Prosecution Agreement (NPA) and the innovations it has introduced to the Brazilian criminal justice system. The study explores historical aspects and origins of the NPA, while also highlighting foreign mechanisms that inspired current negotiation models in Brazilian law. It presents considerations, similarities, and differences between the NPA and other decriminalizing legal instruments, such as the criminal transaction and the conditional suspension of proceedings. Additionally, it outlines the objective and subjective requirements, conditions, and the legal criteria for the agreement’s existence, validity, and effectiveness. The paper also discusses the potential impact of this legal instrument in promoting a more effective, efficient, and swift application of the State’s penal authority (jus puniendi).

Keywords: The non-criminal prosecution agreement. NPA. Brazilian business law. Anti-crime package.

INTRODUÇÃO

A mais recente reforma do Código de Processo Penal (CPP), ocorrida em 2019, através da Lei 13.964/2019 e que ficou popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, trouxe inovações importantes para os chamados negócios jurídicos penais. Em seu artigo 28-A, o texto legal apresentou o acordo de não persecução penal (ANPP), negócio jurídico de natureza extrajudicial que, após ser homologado – a norma também define que essa atribuição seria do Juiz das garantias – passa a possuir validade e eficácia no mundo jurídico e, se cumprido pelo acusado, possibilita a extinção da sua punibilidade.

A “novatio legis” vêm para auxiliar a Justiça Criminal a enfrentar a grande avalanche de processos que abarrotam as suas varas por todo país, buscando trazer alternativas promissoras para os casos de pequena e média gravidade, onde a possibilidade de celebração de acordos evita o longo caminho a ser percorrido através do “devido processo legal”, gerando economia de tempo e recursos públicos.

Inicialmente o ANPP foi previsto na Resolução nº 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A norma infralegal já trazia, em seu artigo 18, todo o escopo daquilo que viria a ser utilizado pelo legislador na reforma do CPP de 2019. O CNMP sofreu influência de normas estrangeiras, de países como Alemanha, França e Estados Unidos da América (EUA).

O presente artigo aborda e contextualiza o ANPP, comparando-o com outros institutos despenalizadores já existentes em nosso ordenamento e previstos na Lei 9.099/95, por exemplo. Além disso, estuda os requisitos objetivos e subjetivos do acordo, e como ocorre a sua apreciação judicial, que busca permitir – ou não – a sua homologação, trazendo validade e eficácia aos atos ali negociados. Por fim, o estudo também verifica se o ANPP é direito subjetivo do acusado, apresentando posicionamento doutrinário e jurisprudencial atualizado sobre o tema.

A PROBLEMÁTICA DO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL BRASILEIRO

2.1 ORIGENS E RAZÕES POLÍTICO-CRIMINAIS DO ANPP

É notória a situação caótica que vive o sistema penal brasileiro, diante do gigantesco número de processos que acabam impossibilitando a concretização de princípios fundamentais do direito, como a duração razoável do processo1. Não é incomum encontrarmos processos que se arrastam por vários e vários anos, trazendo prejuízo imensurável às partes envolvidas, seja para a vítima, que não vê os criminosos serem devidamente responsabilizados e punidos, seja para o acusado, que, não bastasse sofrer com toda a persecução penal, ainda se vê obrigado a enfrentá-la por vários anos, antes mesmo de ser condenado.

Além disso, os problemas começam antes mesmo da chegada da exordial ao Judiciário. Os dados estatísticos da área criminal mostram que apenas uma pequena parcela dos crimes é esclarecida, grande parte deles apenas com a prisão em flagrante, evidenciando que a investigação criminal no Brasil é, de modo geral, um grande fracasso.

De acordo com levantamento apresentado na 15ª edição do relatório Justiça em Números, em 2018 surgiram no Brasil 2.443.064 ações penais na Justiça Estadual e 120.380 na Justiça Federal. O número de casos criminais pendentes de julgamento alcançou 7.533.528 na esfera estadual e 214.212 na federal. Destes, 6.2 milhões estavam na fase de conhecimento (em 1º grau ou nos tribunais) e 1.6 milhão em execução penal.

Esse resultado é muito aquém da média global e reflete a classificação do Brasil em 94º lugar (em um total de 126 países avaliados) quanto ao quesito “eficiência da Justiça Criminal”, no ranking WJP Rule of Law Index 2019 performance, elaborado pela organização internacional World Justice Project (Barros, 2025, p.32).

Dessa maneira, constatou-se que havia urgência na reforma do modo como era realizada a nossa persecução penal.

O CNMP buscou então alternativas consensuais – mesmo sem autorização legal (tendo em vista que a solução legislativa seria a adequada) – em documentos internacionais, como a Resolução nº 45/110 da Assembleia Geral das Nações Unidas, conhecida como “Regras de Tóquio”. Esse dispositivo prevê, em seu item 5.1:

Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça criminal pode retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. Para a decisão sobre a adequação da retirada ou determinação dos procedimentos deve-se desenvolver um conjunto de critérios estabelecidos dentro de cada sistema legal. Para infrações menores, o promotor pode impor medidas não privativas de liberdade, se apropriado (Regras de Tóquio, 1990, p.17).

Apesar do texto da Organização da Nações Unidas (ONU) não ser vinculante, têm força de soft law2, isto é, possuí capacidade orientadora para os negócios jurídicos, da mesma forma que os enunciados das Jornadas de Direito Civil, por exemplo, e por isso serviu de inspiração para a elaboração da Resolução do CNMP.

Foi precisamente essa necessidade de buscar-se soluções céleres e efetivas, que inspirou a edição da Resolução nº 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público (posteriormente, reformada pela Resolução nº 183/18 e, agora, novamente alterada pela Resolução nº 289/24, para adequar a regulamentação à Lei Anticrime), que criou a possibilidade de celebração de acordo de não persecução penal e que, também, levou o legislador a inserir o art. 28-A em nosso Código de Processo Penal, que estabeleceu, formalmente em lei, o aludido acordo e não persecução penal (Cabral, 2025, p.17).

Ainda de acordo com os ensinamentos de Cabral (2025, p.20):

A criação do acordo por meio de Resolução do CNMP causou bastante controvérsia, especialmente com relação à sua constitucionalidade, sem embargo, desde a sua edição, o instituto encontrava-se em pleno vigor e já vinha sendo aplicado em um considerável número de casos.

Vários anos antes da Resolução do CNMP, na Europa, França e Alemanha já realizavam acordos penais semelhantes ao que foi definido no texto da ONU. Por lá, em meados dos anos 1990, juízes e promotores passaram a compreender a incapacidade dos seus sistemas penais para processar e julgar o grande volume de casos de crimes de pequena gravidade, sem violência:

Em virtude disso, o acordo penal foi introduzido na Alemanha pela prática desses atores processuais, como resposta ao aumento do número de casos complexos no sistema de justiça criminal. Juízes e promotores queriam economizar tempo e recursos, à medida que a carga de trabalho crescia. Defensores buscavam uma segurança maior e penas menores para os réus, em troca de sua cooperação. Considerando que a legislação não autorizava esses acordos, essa prática se desenvolveu de forma lenta e, inicialmente, se limitava aos casos de delitos sem violência (Turner, 2019, p.74).

Na Alemanha, por exemplo, Schünemann (2004, p.179) explica que essas práticas consensuais chegaram até o Bundesgerichtshof (semelhante ao nosso STJ), que em 1997, reconheceu a legalidade desse tipo de acordo, afirmando que eles não violavam princípios constitucionais e processuais. Mesmo assim, a previsão legal expressa só veio em 2013. Na França, por outro lado, essa negociação já era possível em 1993.

O modelo brasileiro inspirou-se no francês ao apresentar a resolução nº 181, que apesar de ser norma infralegal, não buscava seus fundamentos e procedimentos em meras práticas forenses e sim em diploma legal, ainda que elaborado pelo CNMP.

O acordo francês guarda muita semelhança com o modelo adotado pelo art. 18 da Resolução nº 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público e agora pelo art. 28-A do Código de Processo Penal, uma vez que na França o promotor pode oferecer ao defensor a opção diversionista para o seu caso, evitando o julgamento criminal padrão, em troca da admissão da culpa e do preenchimento de certas condições (Cabral, 2025, p.23).

Lembrando que, diferentemente de outros sistemas, o modelo brasileiro adota o princípio da obrigatoriedade da ação penal, isto é, o titular da ação penal (Ministério Público) é obrigado a promover a ação penal pública e isso acaba gerando a necessidade de relativização desse princípio para o sucesso dos acordos.

Por fim, Cabral também nos explica que:

As sentenças penais condenatórias proferidas somente após longos anos de processo podem, ao final, encontrar pessoas totalmente diferentes daquelas que existiam no início da persecução penal e, muitas vezes, já livres de qualquer envolvimento com o meio criminoso, mas que se veem puxadas novamente para o seio da criminalidade em um ambiente carcerário que não propicia qualquer recuperação dos detidos (Cabral, 2025, p.33).

2.2 A INFLUÊNCIA DO MODELO NORTE-AMERICANO (PLEA BARGAINING – CHARGE E SENTENCE BARGAINS)

Inicialmente verifica-se a premissa de que a justiça consensual é aquela em as partes concordam com o desfecho do conflito penal.

Nas últimas décadas, o legislador brasileiro atuou em diversas leis relacionadas à justiça consensual. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), em seu artigo 8º, parágrafo único, prevê a redução de um a dois terços da pena ao agente que contribua com o desmantelamento de associação criminosa voltada à prática de crimes. Da mesma forma, o Código Penal passou a admitir esse benefício para o autor ou coautor que facilite a libertação da vítima sequestrada, nos moldes do artigo 159, §4º.

Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços (BRASIL, 1990).

Art. 159 - Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: [...] § 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços (BRASIL, 1996)

Outros dispositivos penais também surgiram, como a Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/1998), a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) e a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013, também conhecida como Lei das Orcrim), que detalhou, inclusive, o instituto da colaboração premiada, possibilitando novas abordagens dos órgãos investigativos no combate ao crime organizado, visando alcançar e desmantelar organizações e crimes de difícil solução, seguindo os mesmos moldes dos acordos de leniência e representando verdadeiras “transações penais consensuais”.

Como se vê, apesar da forte influência do direito europeu, o sistema de justiça penal norte-americano vem ganhando espaço no ordenamento jurídico brasileiro:

De fato, o processo penal brasileiro, nos últimos anos, tem sido receptivo à incorporação de institutos próprios do sistema de justiça criminal norte-americano. Pode-se apontar alguns institutos que acabaram por penetrar no ordenamento jurídico brasileiro, modificando consideravelmente o cenário do processo penal: na reforma de 2008, o legislador alterou o código de processo penal para introduzir questões relativas à prova ilícita, claramente se inspirando em precedentes criados através de julgamentos da Suprema Corte Americana; na mesma reforma, disciplinou a colheita da prova testemunhal, introduzindo uma versão inspirada no exame cruzado (cross examination) norte-americano; o novo Código de Processo Civil claramente orientou-se na fixação de precedentes judiciais, seguindo o modelo do stare decisis; em 1995, o Brasil permitiu a renúncia ao processo mediante a aplicação de uma pena restritiva de direitos, inspirado no plea bargaining americano (transação penal); na mesma década, consolidou-se a importação de mecanismos americanos, através do que se convencionou denominar como “delação premiada”, posteriormente denominada como “colaboração premiada” (Alves, 2025, p.189).

O plea bargaining3 norte-americano evidentemente serviu de inspiração para o ANPP. No modelo estadunidense encontramos duas modalidades distintas, conhecidas como charge bargaining e sentence bargaining. No primeiro, o acusado confessa ou deixa de contestar a prática delitiva, em contrapartida, o promotor se compromete a atenuar a acusação. Nesse caso, em regra, importará em uma condenação definitiva, podendo ser aplicado a qualquer delito (diferentemente do ANPP, que só pode ser aplicado aos crimes de média e leve gravidade).

Já nas sentence bargains, também ocorre a confissão ou omissão na contestação de um crime, contudo, a promotoria assume o compromisso de recomendar uma pena menos severa, incluindo a suspensão da pena. Contudo, essa recomendação não vincula o juízo, que pode ou não, aceitar esses termos.

De acordo com Devers (2011, p. 3)4, membro do Bureau of Justice Assistance, órgão vinculado ao U. S. Departament of Justice, mais de 95% dos casos criminais solucionam-se com a plea bargaining.

O Escritório de Estatísticas de Justiça (Bureau of Justice Statistics), em 2003, estimou que cerca 75.573 casos foram resolvidos pelos tribunais federais ou distritais americanos, através de julgamentos ou declarações de culpa. Destes, cerca de 95% eram encerrados por meio de uma confissão de culpa – guilty plea (Devers, 2011, p.3, tradução nossa5).

Como se vê, diferentemente do plea bargaining americano, que pode ser aplicado a qualquer delito e resulta geralmente em condenação definitiva, o ANPP possui limitações objetivas e subjetivas bem definidas e representa não apenas uma ferramenta processual, mas uma mudança paradigmática na justiça criminal brasileira, que cada vez mais reconhece a importância da participação ativa e voluntária do investigado na solução do conflito penal.

PRINCIPAIS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE O ANPP E OUTROS INSTITUTOS DESPENALIZADORES

3.1 TRANSAÇÃO PENAL

A transação penal é um negócio jurídico celebrado entre o Ministério Público (nos casos de ação penal pública incondicionada) ou querelante (nos casos de ação penal privada) e o acusado. A sua aceitação acarreta a imediata aplicação de pena restritiva de direitos ou multa, nos moldes do art. 44 do Código Penal.

Com isso, evita-se a instauração do processo e, geralmente, sua proposição ocorre antes do oferecimento da denúncia, quando verificada a existência dos requisitos legais para o acordo. A transação também pode ser oferecida depois da denúncia, principalmente nos casos de desclassificação de crimes.

De acordo com o art. 76, da Lei 9.099/95:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

§ 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.

§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível. (BRASIL, 2019)

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3.1.1 Requisitos da transação penal:

Não sendo caso de arquivamento, cabe a transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo (crimes ou contravenções penais cominadas com pena máxima não superior a 2 anos). Em caso de incidência de causas de aumento ou de diminuição de pena (terceira fase da dosimetria da pena), deve-se sempre utilizar os valores máximos e mínimos possíveis, se mesmo assim a pena máxima não for superior a 2 anos, será cabível.

Importante ressaltar que a transação não é aplicável aos casos de violência doméstica (art. 41 da Lei 11.340/06 e Súmula 536 do STJ), da Lei Henry do Borel (art. 226, §2º do ECA) e aos crimes de competência da Justiça Militar, conforme previsão expressa do art. 90 da Lei 9.099/95.

A transação também exige que o agente não tenha sido beneficiado nos últimos 5 anos por essa ou outra benesse, a jurisprudência entende que o óbice se aplica, por analogia, aos demais benefícios previstos na Lei 9.099/95, não exigindo o lapso temporal apenas para a concessão do mesmo instituto6. Fatores subjetivos, relativos ao agente, também devem ser levados em conta, como antecedentes, conduta social e sua personalidade, nos moldes do art. 59, do Código Penal.

Apesar do art. 76 da Lei 9.099/95 deixar expresso que a transação penal representa antecipação da pena, o tema é controverso e a doutrina, a exemplo de Cabral, que discorda:

São manifestações de consenso no âmbito criminal, acordos pré-processuais (o autor se refere ao ANPP e a transação penal) que importam no não oferecimento de denúncia e que devem ser homologados judicialmente. Além disso não importam em efetiva aplicação de pena (apesar da redação do artigo falar em “aplicação imediata de pena”) (Cabral, 2025, p.34).

Concluindo, a transação não gera reincidência, já que não existe a análise de culpa do acusado. Assim, o seu cumprimento acarreta a extinção da punibilidade. Por outro lado, o descumprimento possibilita o recebimento da denúncia e prosseguimento do processo. Também é importante lembrar que a transação penal não suspende o prazo prescricional, que continua a fluir normalmente.

Por fim, a transação penal é possível nas ações penais públicas incondicionadas, condicionadas à representação e até mesmo nas ações penais privadas.

3.1.2 Semelhanças e diferenças entre a transação penal e o ANPP

Os dois institutos se assemelham pois preveem que, em caso de descumprimento, seja possível a instauração de um processo penal para a aplicação da respectiva sanção criminal. Além disso, a celebração de qualquer um dos acordos não importa em maus antecedentes, já que os celebrantes não são tidos formalmente como culpados e não existe nenhuma análise de mérito nesse sentido (Aras, 2025).

O principal ponto de divergência é observado quando a transação penal estabelece o critério de pena máxima de 2 anos, enquanto o ANPP é cabível para os crimes cuja pena mínima é de até 4 anos (leia-se 3 anos, 11 meses e 30 dias), ou seja, a transação é voltada para os crimes de menor potencial ofensivo, já o ANPP busca atingir os delitos de pequena e média gravidade, desde que não abrangidos pela transação penal.

Não obstante, o ANPP também exige a confissão formal e circunstanciada7 do acusado, requisito dispensado pela transação penal e demais institutos despenalizadores do CPP ou Legislação extravagante.

3.2 SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

A suspensão condicional do processo é cabível aos crimes com pena mínima igual ou inferior a 1 ano, abrangidos ou não pela Lei 9.099/95, salvo as hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher.

De acordo com a Súmula 723, do STF: “não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de 1/6 (um sexto) for superior a 1 ano”.

O STJ também possui entendimento nesse sentido, a partir da edição da Súmula 243, vedando a concessão do benefício em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório ou pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de 1 ano.

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

 I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II - proibição de frequentar determinados lugares;

III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

§ 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado.

§ 3º A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.

§ 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta.

§ 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.

§ 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.

§ 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos. (BRASIL, 1995)

Da mesma forma que o ANPP, a suspensão condicional do processo tem como base a pena mínima cominada à infração penal, analisada como gênero, independentemente de sua espécie, isto é, crime ou contravenção penal. Contudo, causas de aumento e de diminuição de pena, além das hipóteses de concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva podem inviabilizar a concessão do benefício ao agente.

No caso da suspensão do processo, a soma das penas mínimas cominadas não pode ser superior a 1 ano. Já no ANPP, essa somatória não pode ser igual ou maior do que 4 anos (também faz referência à pena mínima) – deve ser de até 3 anos, 11 meses e 30 dias.

Em caso de aceitação da proposta, o agente deverá cumprir alguns requisitos objetivos, como a reparação do dano causado – salvo impossibilidade de fazê-lo – da mesma forma que o ANPP.

A suspensão do processo prevê ainda um “período de prova”, de 2 a 4 anos, em que o agente não pode ser processado por outro crime ou contravenção penal, sob pena de ter seu benefício revogado – revogação obrigatória em caso de crime e facultativa tratando-se de contravenção penal.

Após o decurso desse período, caso não haja revogação do benefício, haverá a extinção da punibilidade, da mesma forma que a transação penal e o próprio ANPP.

Por fim, a proposta para suspensão do processo pode ser realizada no momento do oferecimento da denúncia, ou a qualquer tempo até a prolação da sentença, contudo, diferentemente do ANPP, que tem como premissa o compromisso estatal de não oferecimento de denúncia8, na suspensão do processo a ideia é não dar prosseguimento a um processo penal já iniciado.

Da mesma forma que os outros institutos despenalizadores vistos até agora, a suspensão do processo também não configura direito subjetivo do acusado, mas apenas um poder-dever do Ministério Público, como se vê na jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores:

"Ação constitucional. Habeas corpus. Estatuto da criança e do adolescente. Crime de aquisição, posse ou armazenagem, por qualquer meio, de fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente (artigo 241-b da lei 8.069/90). Pretensão de oferecimento da suspensão condicional do processo ao paciente ou, subsidiariamente, a remessa dos autos ao procurador geral de justiça, em interpretação analógica do artigo 28 do código de processo penal. Inexistência de ilegalidade. Sursis processual que não é direito público subjetivo do acusado, mas um poder- dever do ministério público. Negativa devidamente fundamentada em dados concretos dos autos, suficientes para justificar o não preenchimento dos requisitos legais. Artigo 89, caput, da lei 9.099/1995 c/c o art. 77, II e III, do código penal. Enunciado 696 do supremo tribunal federal. Entendimento que não se aplica ao presente caso. Ausência de dissenso entre o ministério público e o juízo impetrado. Constrangimento ilegal não caracterizado.

Ordem que se denega.” Grifei (STJ – RHC 83.062 – 5ª turma – j. 13/06/2017 – julgado por Felix Fischer – DJe 26/06/2017).

Como se vê, apesar de não configurar direito subjetivo do acusado, a negativa do Ministério Público em oferecer a transação penal ou mesmo a suspensão condicional do processo, requer fundamentação jurídica e em sua ausência, gera a possibilidade de revisão pelo órgão superior.

REQUISITOS, condições e PRESSUPOSTOS DE EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DO ANPP

4.1 REQUISITOS E CONDIÇÕES DO ANPP

4.1.1 Requisitos objetivos

A Lei 13.964/2019, em seu art. 28-A, trouxe alguns requisitos de natureza objetiva, fundamentais para proposição e celebração do ANPP, possibilitando a sua pactuação nos delitos (crimes ou contravenções penais) cuja pena mínima seja inferior a 4 anos, levando-se em consideração as causas de aumento e diminuição de pena aplicáveis ao caso concreto. Além disso, os delitos não podem ter sido cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente (BRASIL, 2019).

De acordo com Cabral (2025, p.39), a lei busca dar efetividade e eficácia à atuação estatal no âmbito penal, propugnando, também, “o cumprimento de medidas menos severas para os envolvidos em práticas criminosas de pequena e média gravidade”.

Em outras palavras, o legislador possibilitou o acordo para aqueles investigados que, ao que tudo indica, já seriam efetivamente beneficiados pela substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Além disso, a palavra violência aqui empregada, restringe-se, portanto, em uma interpretação sistemática do próprio Código de Processo Penal, à violência contra pessoas, não estando incluída na vedação os crimes cometidos com violência contra as coisas. (Cunha, 2025, p.48).

Os conceitos de violência incluem a real, imprópria e presumida. A violência é real quando o agente exerce força física contra a vítima, limitando o seu poder de ação e, geralmente, produzindo lesões corporais. A doutrina nos traz como exemplo de violência imprópria, àquela em que o agente utiliza outros meios para incapacitar a vítima, como soníferos e tranquilizantes. Já a violência presumida ocorre nos casos de estupro de vulnerável, onde não se discute o consentimento da vítima e qualquer prática sexual deve ser vista como violenta.

Nos casos envolvendo violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, também não é admitida a realização do ANPP.

Não obstante, a celebração do acordo deve se mostrar ferramenta necessária e suficiente para a prevenção e reprovação do crime. No momento do oferecimento do acordo devem ser observados aspectos relacionados ao tamanho do dano causado aos bens jurídicos tutelados pela norma. Podem servir como parâmetro interpretativo, as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, por exemplo.

Nesse sentido, o especial contexto da ação, o modo e a forma de execução delitiva, os elementos objetivos de autoria (v.g. energia criminal empregada, grau de afetação do bem jurídico, extensão dos efeitos da ação delitiva), a conduta prévia e a sua maior vulneração do bem jurídico tutelado (v.g. ação à traição, emboscada), a ação posterior, como o auxílio da vítima, tentativa espontânea de reparação do dano, dentre outros, são elementos que têm estreita vinculação com a extensão da gravidade do injusto e devem ser levados em consideração para apreciar se o acordo é necessário e suficiente para cumprir sua função preventiva (Cabral, 2025, p.82).

Por ser medida mais gravosa, não pode ser celebrado ANPP nos casos em que seja admitida a transação penal e, evidentemente, também não se admite quando for possível o arquivamento do caso.

O ANPP também depende da condição em que se encontrem as investigações realizadas pelos órgãos competentes, (muitas vezes a Polícia Judiciária – Polícia Civil nos Estados e DF, Polícia Federal nos casos envolvendo a União e conforme previsão legal) e só pode ser celebrado quando elas já estiverem “maduras” para o oferecimento da denúncia, isto é, devem estar presentes os pressupostos da ação penal, como o fumus comissi delicti e os indícios suficientes de que o investigado cometeu os crimes apurados, além da legitimidade das partes (MP ou querelante, a depender do tipo de ação penal).

Não pode, contudo, ser meio para obtenção da justa causa, isto é, ele deve ser o resultado de um procedimento persecutório inicial, com elementos de autoria e materialidade idôneos e aptos ao oferecimento da denúncia, não o contrário.

Veja-se que essa última condição de ação – a justa causa – deve merecer uma especial atenção no momento da celebração do ANPP. Isso porque – e é fundamental que isso fique bem claro – o ANPP não se presta como instrumento de obtenção da justa causa para a investigação. Somente cabe o acordo, quando já existir a justa causa, amparada em uma base factual investigativa, e quando não for o caso de arquivamento da investigação criminal” (Cabral, 2025, p.79).

4.1.2 Requisitos subjetivos

Como se vê, os requisitos objetivos dizem respeito ao crime, já os subjetivos analisam o sujeito do crime e verificam a possibilidade de aplicação do acordo em virtude das características do investigado. Dessa forma, o primeiro requisito avalia a reincidência, vedando a celebração do ANPP quando ela estiver configurada9. Além disso, também veda a aplicação da benesse quando existirem elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, salvo se essas infrações forem insignificantes, conforme previsão expressa do art. 28-A, §2º, II.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: [...]

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas10 (BRASIL, 2019).

Nesse sentido, Renato Brasileiro e Mauro Messias nos trazem a definição de conduta criminal habitual e profissional:

O conceito de criminoso habitual não se confunde com o de crime habitual. Neste, o delito é único, figurando a habitualidade como elementar do tipo. É o que ocorre, por exemplo, com o delito de casa de prostituição (CP, art. 229). Na habitualidade criminosa, há pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma característica do agente, e não da infração penal (Lima, 2024, p. 281).

A conduta criminal habitual consiste na já conhecida habitualidade criminosa. É o meio de vida criminoso desenvolvido pelo agente, a característica da pessoa dada à prática de delitos. [...] Por fim, conduta criminal profissional define o agente que, como ofício ou profissão, pratica crimes repetidamente (Messias, 2020, p. 37).

Dessa forma, verifica-se que o mais adequado seria a compreensão de que os conceitos são distintos e que a constatação da conduta criminal habitual, reiterada ou profissional se dá a partir de elementos de informação colhidos ainda na fase pré-processual.

Outro requisito subjetivo a ser observado está previsto no art. 28-A, §2º, III, que veda a celebração do ANPP caso o agente já tenha sido beneficiado, nos 5 anos anteriores à infração11, em transação penal, suspensão condicional do processo ou até mesmo outro ANPP.

4.1.3 Condições exigidas para a celebração do ANPP

Uma vez reunidos os requisitos objetivos e subjetivos, a Lei passa a permitir a celebração do acordo, contudo, ainda exige o cumprimento de algumas condições fundamentais para sua validade, são elas: confissão formal e circunstanciada da prática do delito (art. 28-A, caput); reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo (art. 28-A, caput); renuncia voluntaria de bens e direitos , indicados pelo MP como instrumento, produto ou proveito do crime (art. 28-A, II); prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução (art. 28-A, III); pagamento de prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45, do CP, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo MP, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo direito (art. 28-A, IV); cumprimento de outra condição estipulada pelo MP, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada (art. 28-A, V).

A confissão formal e circunstanciada da prática do delito vem sendo amplamente debatida e é alvo frequente de críticas por supostamente violar o princípio nemo tenetur se detegere.

Desde que o investigado seja formalmente advertido quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo e não seja constrangido a celebrar o acordo, parece não haver nenhuma incompatibilidade entre esta primeira obrigação do investigado, prevista no art. 28-A, caput, do CPP, e o direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII). Ora, como não há dever ao silêncio, todo e qualquer

investigado (ou acusado) pode voluntariamente confessar os fatos que lhe são imputados. Nessas condições, cabe ao próprio indivíduo decidir, livre e assistido pela defesa técnica, se tem (ou não) interesse em celebrar o acordo de não persecução penal (Lima, 2020, p.283).

É claro que a confissão deve ser voluntária, livre de vícios ou coação e fruto da vontade do acusado. Além disso, o ANPP exige a presença de um defensor técnico e a homologação do acordo, isto é, a apreciação judicial do negócio jurídico firmado entre o MP (ou querelante, se ação privada) e o investigado.

Dessa forma, a doutrina majoritária entende que não há ofensa ao direito ao silêncio, já que o acusado possui liberdade de confessar ou não o ato delitivo, é uma escolha possível dentro de sua autonomia de vontade.

De acordo com Cabral (2020, p.114): “O acordo aqui, evidentemente, pressupõe que cada uma das partes “abra mão” de alguma coisa. O MP “abre mão” do exercício da ação penal, o investigado entrega a confissão formal e circunstanciada”.

Aqueles que militam pela inconstitucionalidade da exigência de confissão para a celebração do ANPP alegam que, se descumprido o acordo, o MP já estaria em poder da autoincriminação do acusado e que isso significaria grave prejuízo ao seu direito de defesa. Data vênia a esse posicionamento, não parece razoável permitir que o acusado, sob o pretexto de se beneficiar do ANPP e após confessar a prática delitiva, possa voltar atrás, evidentemente gerando acordos sem o propósito almejado pelo legislador. Nesse cenário veríamos acusados firmando acordos simplesmente com o objetivo de atrasar e prejudicar a persecução penal.

Essa denúncia a ser oferecida pelo Ministério Público poderá trazer, como suporte probatório, inclusive a confissão formal e circunstanciada do investigado por ocasião da celebração do acordo. Ora, se o próprio investigado deu ensejo à rescisão do acordo, deixando de adimplir as obrigações convencionadas, é de todo evidente que não se poderá desprezar os elementos de informação por ele fornecidos. (Lima, 2020, p.287).

É claro que a confissão, nos termos do art. 200, do CPP, é retratável, dessa forma, a celebração do acordo não poderá, em caso de descumprimento, servir como prova absoluta para a condenação do réu.

Por outro lado, ainda que o acusado tenha negado a prática delitiva na fase pré-processual, isto é, no inquérito policial, não há óbice ao oferecimento do ANPP, caso o MP verifique presentes os requisitos, condições e pressupostos para sua celebração. O assunto chegou a ser questionado na 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, que entendeu que cabe ao MP designar audiência extrajudicial para explicar o ANPP ao investigado e seu defensor, concedendo a oportunidade para confissão e somente a negativa nessa ocasião inviabilizaria o negócio jurídico.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. Rejeição da denúncia diante da ausência de interesse de agir. Inconformismo ministerial. Negativa de acordo de não persecução penal porque ausente confissão. Nova sistemática processual que exige intimação do investigado para exercer seu direito ao acordo, ao eventual recurso e até mesmo para o arquivamento. Inexistência dessa manifestação. Ação penal ofertada sem observação dessas garantias que não demonstra sua necessidade e utilidade. Ausência do interesse de agir evidenciado. Denúncia rejeitada. Recurso improvido. (RESE, processo 1507691-40.2020.8.26.0050, julgado em 17/06/2020.

Em síntese, ainda que existam debates acerca da constitucionalidade da exigência de confissão, a doutrina majoritária entende que não há violação ao princípio nemo tenetur se detegere, já que o investigado possui liberdade para aceitar ou recusar o acordo, exercendo sua autonomia de vontade, sempre acompanhado de defensor técnico. Ademais, mesmo com a confissão, esta permanece retratável nos termos do art. 200 do CPP, não podendo servir como prova absoluta para condenação em caso de descumprimento do acordo.

4.2 PRESSUPOSTOS DE EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DO ANPP

A análise dos pressupostos para o ANPP parte da premissa da clássica Teoria da Escada Ponteana, do renomado jurista Pontes de Miranda. Segundo ele, o negócio jurídico se forma a partir de uma tricotomia de planos, sendo eles o da existência, da validade e da eficácia. Ainda de acordo com Miranda, os fatos jurídicos devem ser compreendidos em uma estrutura hierárquica de três etapas (como degraus de uma escada) obrigatória para que essas relações jurídicas gerem consequências como direitos e obrigações entre as partes.

O primeiro degrau se refere ao plano da existência e aqui encontram-se aqueles elementos essenciais para a constituição do negócio jurídico. É fundamental a existência da manifestação da vontade das partes para a celebração do ANPP, não pode existir acordo quando houve erro, dolo ou coação.

O segundo passo, chamado de plano da validade, observará os requisitos gerais dos negócios jurídicos, isto é, o ANPP deve ser celebrado por agente capaz (de acordo com a Lei Civil), possuir objeto lícito e ser realizado na forma prescrita ou não defesa em Lei, também incidindo os requisitos específicos do ANPP, previstos no art.28-A.

O terceiro e último degrau aborda o plano da eficácia, onde será examinada a aptidão do negócio jurídico de gerar os efeitos pretendidos pelo ANPP, ou seja, verificará se houve ou não a homologação do acordo.

4.2.1 Homologação do ANPP

Prezando pela garantia da imparcialidade, a atuação judicial não pode assumir posição de protagonismo, sendo vedado ao juiz atuar efetivamente na negociação, afinal, esse espaço negocial é reservado às partes.

A homologação do acordo de não persecução penal não tem natureza de sentença penal condenatória, constituindo mero ato homologatório, de natureza integrativa do negócio jurídico, sem força de coisa julgada material, e que tem a função de garantia da legalidade e legitimidade da avença, permitindo que ela passe a surtir seus efeitos jurídicos (Cabral, 2025, p.114).

Diferentemente de outros atos processuais, a homologação não pode se dar a partir de simples decisão nos autos, ela deve ser precedida de audiência pública, onde será avaliada a legalidade e voluntariedade do ANPP. Nessa audiência faz-se necessária e obrigatória a presença das partes, ou seja, MP e defesa técnica do acusado.

É nesse momento que haverá o controle da legalidade do acordo (e apenas de legalidade), ocasião em que o magistrado avaliará se os requisitos, as condições e os pressupostos estão presentes e foram atendidos, analisando se houve insuficiência, abusividade ou inadequação no ANPP proposto.

Dois caminhos surgem, o juiz poderá homologar ou não o ANPP. Em caso de homologação, o acordo já estará autorizado a iniciar a sua fase de cumprimento (ou execução) perante o juízo de execução penal, nos moldes do art.28-A, §6º. Homologado e cumprido, ocorrerá a extinção da punibilidade. Se não for cumprido, como já dito anteriormente, haverá a rescisão do acordo e o oferecimento da denúncia, que aproveitará, inclusive, a confissão formal e circunstanciada realizada pelo acusado.

Se não for homologado, o juiz devolverá os autos ao MP para que reformule a proposta de acordo, necessitando novamente da concordância do investigado e seu defensor. Se não for reformulado, o pedido será indeferido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo apresentou o Acordo de Não Persecução Penal, instituído pela Lei 13.964/2019. Para alguns especialistas, o pacote enrijeceu as leis, tornando-as mais severas, além de criar importantes institutos como o juiz das garantias e o próprio ANPP. Nesse contexto, foi apresentada a problemática do sistema de justiça penal brasileiro, abordando aspectos importantes sobre outros institutos estrangeiros que inspiraram o direito negocial atual. Também foi visto como o cenário anterior à Lei favoreceu a criação das resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), documentos que marcaram a evolução desse tipo acordo penal.

Posteriormente houve a análise e comparação do ANPP com outros institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/95, apresentando os requisitos e vedações da transação penal e da suspensão condicional do processo, por exemplo. Também foram abordados aspectos teóricos e principiológicos que norteiam o acordo, conforme a clássica Teoria da Escada Ponteana, ou seja, os pressupostos da existência, validade e eficácia do fato jurídico (lato sensu) e, consequentemente, do ato jurídico negocial.

Por fim, com o estudo realizado foi possível verificar que, de fato, a prática negocial no direito brasileiro vem ganhando espaço e contribuindo para desafogar o Judiciário, que não consegue processar e julgar a quantidade de demandas a que é submetido. A expansão desse tipo de negócio jurídico, para crimes de pequena e média gravidade, que se amoldem nos requisitos e demais condições já previstas em lei, certamente deveria ser encorajada, pois muitas vezes apresenta resultados mais valiosos e pacificadores do que a mera segregação social de criminosos não reincidentes e de baixa periculosidade.

REFERÊNCIAS

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LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei 13.964/2019, artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2021.

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  1. O princípio da razoável duração do processo foi inserido na Constituição Federal através da Emenda Constitucional nº 45/2004, que ficou conhecida como “Reforma do Judiciário” e inseriu o inciso LXXVIII no artigo 5º, com o seguinte texto: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. (grifo nosso)

  2. O soft law (também chamado de soft norm, droit doux, direito flexível e direito plástico) consiste em regras não vinculantes adotadas em foros internacionais, como os fornecidos por institutos privados. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/380100/soft-law-e-direito-privado-estrangeiro-fontes-uteis-aos-juristas. Acesso em: 11 de jan. 2025.

  3. O plea bargaining é instituto de origem na common law e consiste numa negociação feita entre o representante do Ministério Público e o acusado: o acusado apresenta importantes informações e o Ministério Público pode até deixar de acusá-lo formalmente. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-que-se-entende-por-plea-bargaining/121924834. Acesso em 10 jan. 2025.

  4. DEVERS, Lindsey. Plea and Charge Bargaining. Bureau of Justice Assistance. Arlington: Jan. 2011

  5. No original: According to the Bureau of Justice Statistics, in 2005 there were 75,573 cases disposed of in federal district court by trial or plea. Of these, about 95 percent were disposed of by a guilty plea.

  6. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.837.960 PA – 6ª Turma – j. 12/11/2019. Recorrente: Graciene Lopes da Silva. Recorrido: Ministério Público Federal. Relator: Min. Nefi Cordeiro. Disponível em https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0a89b421000001945c6eb662d933943a&docguid=Id6f6c40070b111eab5928c84d1d26d89&hitguid=Id6f6c40070b111eab5928c84d1d26d89&spos=1&epos=1&td=41&context=17&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1. Acesso em 12 jan. 2025.

  7. A confissão formal e circunstancial é um tipo de confissão que deve ser pessoal, integral, completa, minuciosa e detalhada. (o autor)

  8. ENUNCIADO 20 (ART. 28-A) Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia (grifei).

  9. Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

    Art. 64 - Para efeito de reincidência: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

    I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

    II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos (BRASIL, 1984).

  10. É possível concluir que a intenção do legislador foi referir-se aos crimes de menor potencial ofensivo, previstos na Lei 9.099/95.

  11. Aqui o termo a quo dos prazos deve ser o dia da homologação do ANPP e da transação penal anteriores ou a data em que o juiz suspender o processo, submetendo o acusado ao período de prova definido no art. 89, §1º, da Lei 9.099/95.

Sobre o autor
Danilo Gomes da Costa

Investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Graduando em Direito, Graduado em História, Especialização em: 1. Direito Penal; 2.Segurança Pública e Investigação Criminal; 3. Direitos Humanos; 4. Direito e Processo constitucional; 5. Legislação Penal Especial;

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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