A concomitância entre o crime de responsabilidade, a infração político-administrativa e o ato de improbidade administrativa.

Repercussões da Lei nº 14.230/2021 e a compatibilidade com o Tema 576 do STF

11/07/2025 às 00:28
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A Concomitância entre o Crime de Responsabilidade, a Infração Político-Administrativa e o Ato de Improbidade Administrativa: Repercussões da Lei nº 14.230/2021 e a Compatibilidade com o Tema 576 do STF

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor Universitário, Especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e em Compliance (FGV-SP)

Maria Catarina Delfino Lagrotta

Bacharelanda em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Resumo:
O presente artigo examina a possibilidade de responsabilização simultânea do agente político por crime de responsabilidade, infração político-administrativa e ato de improbidade administrativa, à luz da Lei nº 8.429/1992, alterada substancialmente pela Lei nº 14.230/2021. Analisa-se a compatibilidade do Tema 576 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal, que consagra a autonomia das instâncias penal, político-administrativa e civil, com a nova redação do art. 21, § 1º da LIA, que positivou a eficácia vinculante da sentença penal absolutória quanto à inexistência do fato ou negativa de autoria.

Palavras-chave: Improbidade administrativa; autonomia das instâncias; crime de responsabilidade; infração político-administrativa; coisa julgada penal; Lei nº 14.230/2021.

Abstract:

This article examines the possibility of simultaneous accountability of political agents for crimes of responsibility, political-administrative infractions, and acts of administrative improbity, in light of Law No. 8,429/1992, substantially amended by Law No. 14,230/2021. The study analyzes the compatibility of Theme 576 of the Brazilian Federal Supreme Court's General Repercussion, which enshrines the autonomy of criminal, political-administrative, and civil instances, with the new wording of Article 21, § 1º, of the LIA (Law of Administrative Improbity), which codified the binding effect of a criminal acquittal regarding the non-existence of the fact or denial of authorship.

Keywords: Administrative improbity; autonomy of instances; crime of responsibility; political-administrative infraction; res judicata in criminal matters; Law No. 14,230/2021.

1. Introdução

A responsabilização de agentes políticos por condutas lesivas à probidade administrativa é tema de relevância permanente no Direito Público brasileiro, em razão de sua conexão direta com os princípios da moralidade e da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF). A partir da Constituição Federal de 1988, positivou-se um regime próprio de responsabilização por atos de improbidade, disciplinado pela Lei nº 8.429/1992 (LIA).

O Supremo Tribunal Federal, ao fixar a tese do Tema 576 da Repercussão Geral (RE 976.566/PA), consagrou a possibilidade de responsabilização simultânea do agente político nas esferas penal, político-administrativa e civil, reafirmando a autonomia funcional das instâncias. Entretanto, a Lei nº 14.230/2021 introduziu uma regra expressa no art. 21, § 1º da LIA, prevendo eficácia vinculante da sentença penal absolutória nos casos de inexistência do fato ou negativa de autoria. É fundamental notar que a constitucionalidade da redação dada ao art. 21 da Lei 8.429/1992 pela Lei 14.230/2021 é objeto de análise na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7326, ainda pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Este artigo pretende examinar se tal inovação normativa, à luz das discussões e decisões parciais da ADI 7326, altera ou não a compatibilidade do Tema 576, especificamente quanto à coexistência do crime de responsabilidade, da infração político-administrativa e do ato de improbidade administrativa.

2. O regime constitucional da improbidade administrativa

O art. 37, § 4º da Constituição de 1988 criou um regime jurídico próprio para punir atos de improbidade administrativa, prevendo sanções cíveis severas — suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário — “sem prejuízo da ação penal cabível”. A redação evidencia, de forma explícita, a autonomia funcional entre as sanções de natureza civil e penal.

É bem de ver que a improbidade administrativa possui natureza eminentemente civil, orientada por finalidades de proteção patrimonial, repressão à corrupção e preservação da moralidade administrativa.

Logo, mesmo que a conduta configure ilícito penal ou político-administrativo, subsiste a possibilidade de responsabilização civil pela via da ação de improbidade (DI PIETRO, 2022; BANDEIRA DE MELLO, 2021).

3. O Tema 576 do STF: autonomia das instâncias

No julgamento do RE 976.566/PA, o STF fixou, em regime de repercussão geral, a seguinte tese: “O processo e julgamento de prefeito municipal por crime de responsabilidade (Decreto-Lei 201/67) não impede sua responsabilização por atos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/1992, em virtude da autonomia das instâncias.”

Embora a tese mencione o crime de responsabilidade, o voto condutor do Ministro Alexandre de Moraes deixa claro que a autonomia abrange também as infrações político-administrativas (art. 4º, DL 201/67), julgadas pela Câmara Municipal, além do ilícito civil de improbidade.

Portanto, o mesmo núcleo fático pode ensejar três espécies de responsabilização: penal, político-administrativa e civil.

Tal entendimento é coerente com a lógica do regime republicano, que exige múltiplas formas de controle da probidade no exercício do poder.

4. A Lei nº 14.230/2021 e o art. 21, § 1º: limitação da independência das instâncias

O art. 21, § 1º, inserido pela Lei 14.230/2021, cristalizou o entendimento da Súmula 18/STJ: “A sentença penal absolutória que reconheça a inexistência do fato ou a negativa de autoria faz coisa julgada no cível.” No REsp 1.366.721/SP, destacou-se: “Reconhecido penalmente que não houve o fato, extingue-se o interesse jurídico da ação de improbidade.”

Diz o referido dispositivo que:

“Art. 21. A absolvição criminal não obsta a propositura da ação civil de improbidade administrativa, exceto quando reconhecida a inexistência do fato ou a negativa de autoria.”

“§ 1º A sentença penal absolutória que reconhecer a inexistência do fato ou a negativa de autoria estende-se aos demais juízos cíveis e administrativos.”

Essa norma apenas positivou entendimento já consagrado na jurisprudência (Súmula 18 do STJ), segundo o qual, sendo absolvido o acusado na esfera penal por inexistência material do fato ou negativa de autoria, não subsiste fundamento fático para responsabilização civil. A doutrina majoritária já apontava tal consequência como decorrência natural da eficácia preclusiva da coisa julgada material penal (JESUS, 2022; SMANIO, 2021).

É crucial, contudo, observar que a constitucionalidade da redação dada ao art. 21 da Lei 8.429/1992 pela Lei 14.230/2021 é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7326, que ainda se encontra pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal. Em 24 de abril de 2025, o Plenário do STF, com a Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso, analisou o tema.

Após o voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, que divergiu parcialmente do Ministro Alexandre de Moraes (Relator), foram adotadas importantes deliberações. A Corte declarou a inconstitucionalidade da expressão “na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e”, contida no § 1º do art. 12 da Lei 8.429/1992, na redação que lhe foi dada pela Lei 14.230/2021.

Mais relevante para esta análise, foi conferida interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 21 da Lei 8.429/1992, na redação que lhe foi dada pela Lei 14.230/2021, para excluir do seu âmbito de aplicação a hipótese absolutória contida no inciso III do art. 386 do CPP (“não constituir o fato infração penal”).

Isso significa que, se a absolvição penal se der pelo fato de a conduta não configurar crime (ainda que o fato e a autoria sejam comprovados), tal decisão não vincula a instância da improbidade administrativa. Esse entendimento reforça a autonomia entre as esferas, permitindo que um mesmo fato, embora não seja considerado crime, possa configurar ato de improbidade.

Ademais, foi conferida interpretação conforme à Constituição ao art. 23-C da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021, para assentar que atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, serão responsabilizados nos termos da Lei 9.096/1995, sem prejuízo da incidência da Lei de Improbidade Administrativa, vedado eventual “bis in idem”. A constitucionalidade de todos os demais dispositivos impugnados foi declarada, e o Ministro Edson Fachin pediu vista antecipada dos autos, aguardando-se os demais Ministros.

A independência das instâncias, como regra geral, não foi afastada pela nova lei, pois decorre do texto constitucional (art. 37, § 4º). No entanto, a nova tipificação, e agora as interpretações do STF na ADI 7326, tornam mais restrita a hipótese de se punir o mesmo fato em duplicidade, especialmente porque a absolvição criminal que vincula a esfera cível está agora mais delimitada. Assim, em muitos casos concretos, se a infração penal ou político-administrativa for apurada e não restar comprovado o dolo específico, ou se a absolvição criminal se der por atipicidade penal, a ação de improbidade ainda poderá subsistir, a menos que haja efetiva inexistência do fato ou negativa de autoria. Assim, a tese do Tema 576 mantém-se formalmente válida, mas deve ser interpretada à luz das novas condições legais e das qualificações impostas pela Suprema Corte.

Em síntese, o entendimento do Tema 576 permanece em vigor do ponto de vista da independência formal das instâncias; mas a prática punitiva ficou mais restrita, pois agora há filtro mais rigoroso para classificar condutas como improbidade, embora a autonomia seja preservada em casos de atipicidade penal ou ausência de dolo específico. Assim, em muitos casos concretos, se a infração político-administrativa ou penal não confirmar o dolo específico ou se a absolvição penal não for por inexistência do fato/negativa de autoria, poderá haver substrato para ação de improbidade, reduzindo, mas não eliminando totalmente, o risco de bis in idem.

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5. A decisão político-administrativa e sua não vinculação

Outro ponto relevante é a distinção entre decisão penal absolutória e decisão político-administrativa.

A cassação de mandato pelo Poder Legislativo, quando motivada por infração político-administrativa, não possui natureza jurisdicional, mas política.

Assim, eventual absolvição pela Câmara Municipal não faz coisa julgada material para o Poder Judiciário.

O art. 21, § 1º da LIA refere-se exclusivamente à sentença penal absolutória, não abrangendo a decisão político-administrativa, que se submete a critérios de conveniência e oportunidade política, não vinculando o juízo cível da improbidade.

Isto é, a única limitação específica está no art. 21, § 1º da LIA: se a jurisdição penal absolver por inexistência do fato ou negativa de autoria, isso bloqueia a ação de improbidade, mas não afeta a infração político-administrativa decidida pela Câmara Municipal, pois esta não é jurisdição penal, nem a decisão dela produz coisa julgada penal.

6. Compatibilização do Tema 576 com a nova regra

Diante disso, a tese firmada pelo STF no Tema 576 permanece plenamente compatível com a redação atual da LIA e com as interpretações emanadas da ADI 7326.

A autonomia das instâncias continua a existir, com a única limitação objetiva imposta pela coisa julgada penal quanto à inexistência do fato ou negativa de autoria.

A exclusão da absolvição por "não constituir o fato infração penal" como causa de vinculação para a improbidade, conforme decidido na ADI 7326, é um forte indicativo da preservação da autonomia.

Além disso, a decisão político-administrativa da Câmara Municipal — mesmo que absolva o prefeito — não impede a propositura de ação civil por improbidade administrativa. Trata-se de esferas distintas, com ritos, natureza jurídica e finalidades diversas.

Isto é, a única limitação específica está no art. 21, § 1º da LIA: se a jurisdição penal absolver por inexistência do fato ou negativa de autoria, isso inibe a propositura da ação de improbidade administrativa.

No entanto, se a absolvição penal for por "não constituir o fato infração penal", a ação de improbidade não é automaticamente impedida, sendo que tal delimitação está sendo discutida na ADI 7326 perante o STF.

Da mesma forma, a decisão político-administrativa da Câmara Municipal não afeta a ação de improbidade, pois esta não é jurisdição penal, nem a decisão dela produz coisa julgada penal.

Logo, um prefeito pode ser absolvido pela Câmara (não cassado) por falta de votos políticos, bem como pode ser processado criminalmente por crime de responsabilidade e ser absolvido por atipicidade (não é crime); mas ainda assim responder por improbidade se restar o fato e a autoria, porque a inexistência de crime não é o mesmo que inexistência do fato.

Agora, se o juiz criminal absolver dizendo que o fato não existiu ou que o réu não foi o autor, isso atinge a ação de improbidade. Contudo, se a absolvição criminal se der porque o fato, apesar de existente e praticado pelo réu, não é infração penal, a ação de improbidade pode prosseguir. Isso, porém, não impede a Câmara de julgar politicamente (ex.: cassar o mandato se entender que houve infração política ou quebra de decoro)

7. Conclusão

A responsabilização múltipla do agente político por crime de responsabilidade, infração político-administrativa e ato de improbidade administrativa permanece compatível com o regime constitucional, mesmo após as inovações da Lei nº 14.230/2021 e as recentes interpretações do Supremo Tribunal Federal na ADI 7326.

A regra do art. 21, § 1º da nova LIA, ao positivar a vinculação da sentença penal absolutória, apenas reforça a segurança jurídica do sistema, mas não revoga nem enfraquece a autonomia funcional das instâncias, tal como afirmada no Tema 576 do STF.

As qualificações trazidas pela ADI 7326, ao delimitar as hipóteses de vinculação da sentença penal, na verdade, fortalecem a autonomia da instância de improbidade em casos onde a absolvição criminal se dá por atipicidade penal.

Portanto, o núcleo do sistema permanece: a moralidade administrativa, a probidade e o combate à corrupção seguem resguardados pela convivência harmônica dos regimes sancionatórios penal, político-administrativo e civil, dentro dos limites constitucionais e processuais, agora mais bem definidos pelas recentes decisões da Suprema Corte.

Referências

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Geral. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

SMANIO, Gianpaolo Poggio. Improbidade Administrativa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 976.566/PA (Tema 576 da Repercussão Geral). Rel. Min. Alexandre de Moraes. j. 13.09.2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 7326. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Decisão parcial em Plenário, 24.04.2025.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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