A ampliação do Bolsa Família e a persistência da assistência paternalista.

Uma análise jurídica e crítica

15/07/2025 às 16:36
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No dia 9 de julho de 2025, foi publicada a Portaria nº 1.097/2025 pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, ampliando o alcance do Programa Bolsa Família para incluir famílias em situação de rua, em risco social associado à violação de direitos e em risco de segurança alimentar. Embora tal ampliação aparente configurar um avanço no compromisso social do Estado, o movimento revela, sob análise crítica e jurídica, uma continuidade da lógica já consolidada: em vez de estruturar efetivas políticas públicas de emancipação, limita-se a repassar valores monetários, como se apenas o dinheiro fosse suficiente para resolver problemas de ordem estrutural e complexa.

Tal medida assemelha-se a uma postura paternalista: o Estado, agindo como um pai que entrega mesada aos filhos, concede os recursos financeiros, mas sem lhes prover os instrumentos necessários para que superem, por si próprios, suas dificuldades. Em vez de estruturar e fortalecer os equipamentos públicos da assistência social, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), os programas de capacitação profissional e as políticas públicas de inserção no mercado de trabalho, simplesmente amplia o rol de beneficiários sem contrapartida estrutural. Essa lógica puramente assistencialista, sem amparo em programas estruturantes, vai de encontro ao próprio modelo de proteção social previsto no Estado Democrático de Direito.

A Constituição de 1988 é clara ao dispor que a assistência social deve atender a quem dela necessitar, sem exigir contribuição, mas sempre com vistas à promoção da autonomia e dignidade da pessoa humana. A ampliação do Bolsa Família nos moldes da Portaria nº 1.97/2025 revela justamente o contrário: perpetua-se uma relação de dependência financeira e desresponsabilização estatal quanto à criação de condições reais para a superação da pobreza. Em outras palavras, transfere-se ao próprio beneficiário o ônus de resolver suas dificuldades apenas com o recurso financeiro recebido, sem lhe proporcionar as ferramentas para romper o ciclo de vulnerabilidade.

Além disso, deve-se observar que o critério adotado para priorizar famílias com mais filhos mantém uma distorção já identificada em estudos anteriores, que apontam para o incentivo velado à ampliação da prole como estratégia de aumento do valor do benefício. Tal situação fere diretamente o princípio constitucional da isonomia, na medida em que atribui vantagens diferenciadas a famílias em situações similares de pobreza, baseando-se unicamente em sua composição demográfica. Trata-se de um desvio de finalidade administrativa e de violação do planejamento familiar livre e consciente, previsto no artigo 226, §7º da Constituição Federal. O Estado, ao adotar tais critérios sem implementar políticas complementares, converte-se em agente indireto de indução reprodutiva, o que, sob a ótica jurídica, não se compatibiliza com os direitos fundamentais sociais.

Não se pode desconsiderar ainda o impacto desse modelo na gestão pública e na eficiência administrativa. A simples ampliação do número de beneficiários, sem incremento proporcional da rede de suporte, compromete a capacidade de atendimento e fiscalização, aumentando os riscos de fraudes, sobreposição de benefícios e desequilíbrios orçamentários. A eficiência administrativa, também prevista na Constituição Federal como princípio norteador da Administração Pública, exige que o gasto estatal seja racional, planejado e orientado para resultados concretos e duradouros. Quando o benefício se transforma em instrumento de acomodação social, e não em ferramenta de emancipação, tal princípio é igualmente violado.

Essa lógica puramente assistencialista, sem amparo em programas estruturantes, se opõe frontalmente à proteção social delineada pela Constituição de 1988. A Carta Magna é enfática ao afirmar que a assistência social deve ser promovida com vistas à autonomia do cidadão, e não à sua perpetuação na dependência do Estado. Os direitos sociais, tais como definidos, pressupõem não apenas a transferência de recursos, mas também o fortalecimento da capacidade individual e coletiva de superar a pobreza por meio de políticas complementares, como a educação técnica, a capacitação profissional e a inserção no mercado de trabalho formal.

Nessa linha, não é razoável que o Estado se limite à concessão do benefício financeiro, ampliando o rol de atendidos sem promover reformas que fortaleçam o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e assegurem a oferta de serviços públicos essenciais. O modelo vigente compromete não apenas a dignidade dos beneficiários, que se vêm reféns de um auxílio inócuo a longo prazo, mas também a própria sustentabilidade fiscal do programa. Um Bolsa Família verdadeiramente eficaz deve articular as transferências monetárias às condicionalidades sociais acompanhadas de investimentos efetivos nos serviços públicos locais, garantindo não apenas o alívio imediato da pobreza, mas sua superação estruturada.

Por fim, é imprescindível que se reconheça a urgência de uma reformulação normativa e administrativa do Programa Bolsa Família, visando corrigir suas distorções e devolvê-lo à sua finalidade constitucional original: ser instrumento de combate à desigualdade social, de fortalecimento da cidadania e de transição para a emancipação plena da miséria. A assistência que não emancipa, aprisiona; e o benefício que eterniza a miséria deixa de ser direito para se tornar condenação.

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Sobre o autor
Gabryel Fraga Lima

Estagiário de Pós-Graduação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

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