O Faturamento Individualizado de Consórcios na Contratação Pública: Conformidade Legal e Implicações Práticas.
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Procurador-Geral do Município (Taboão da Serra), Professor Universitário, Especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e em Compliance (FGV-SP)
Maria Catarina Delfino Lagrotta
Bacharelanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO
O presente artigo examina a viabilidade jurídica e fiscal do faturamento individualizado por empresas consorciadas em licitações públicas, à luz da Lei Federal nº 14.133/2021 e de interpretações normativas e jurisprudenciais. Analisa-se a responsabilidade solidária prevista na legislação de licitações em contraponto à responsabilidade proporcional estabelecida pela Receita Federal do Brasil, bem como os entendimentos de fiscos estaduais e municipais sobre a emissão de documentos fiscais e o recolhimento de tributos. Adicionalmente, explora-se o recente posicionamento da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás que corrobora a possibilidade do faturamento individualizado e a emissão de empenhos em nome de cada consorciado. Argumenta-se que, na ausência de vedação expressa no edital, a Administração Pública pode adotar o faturamento individualizado por conveniência administrativa, desde que haja controle rigoroso dos percentuais de participação, medições individualizadas e manutenção da solidariedade das obrigações contratuais e tributárias.
ABSTRACT
This article examines the legal and fiscal viability of individualized invoicing by consortium companies in public tenders, in light of Federal Law No. 14.133/2021 and normative and jurisprudential interpretations. It analyzes the joint liability provided for in procurement legislation in contrast to the proportional liability established by the Brazilian Federal Revenue, as well as the understandings of state and municipal tax authorities regarding the issuance of fiscal documents and the collection of taxes. Additionally, it explores the recent position of the State Attorney General's Office of Goiás, which corroborates the possibility of individualized invoicing and the issuance of commitment notes in the name of each consortium member. It is argued that, in the absence of an express prohibition in the bidding document, the Public Administration may adopt individualized invoicing for administrative convenience, provided there is strict control over participation percentages, individualized measurements, and the maintenance of joint and several liability for contractual and tax obligations.
Keywords: Business consortium. Public tender. Individualized invoicing. Joint liability. Law No. 14.133/2021. State Attorney General's Office of Goiás.
Palavras-chave: Consórcio de empresas. Licitação pública. Faturamento individualizado. Responsabilidade solidária. Lei nº 14.133/2021. Procuradoria-Geral do Estado de Goiás.
Resumo: 1. Introdução. 2. O Regime dos Consórcios em Licitações e a Responsabilidade Solidária. 3. A Interpretação Fiscal do Faturamento e da Responsabilidade Tributária em Consórcios. 3.1 Posição dos Fiscos Estaduais e Municipais. 3.2 Posicionamento da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás. 4. Possibilidade de Faturamento Individualizado e Implicações para a Administração Pública. 5. Conclusão
1. Introdução
A participação de consórcios de empresas em licitações públicas é uma prática comum, expressamente permitida pela Lei Federal nº 14.133/2021, que estabelece diretrizes claras para sua formação e atuação. Em seu artigo 15, a nova Lei de Licitações e Contratos reforça a necessidade de indicação de uma empresa líder e a assunção de responsabilidade solidária e integral dos consorciados pela execução contratual.
No entanto, a complexidade surge ao conciliar essa premissa de solidariedade na execução com as normas fiscais que, em muitas situações, admitem e, por vezes, orientam o faturamento proporcional e individualizado das empresas consorciadas para fins tributários.
Essa dualidade gera questionamentos sobre a possibilidade e os impactos da emissão de notas fiscais e do recebimento de pagamentos de forma individualizada, em vez de centralizada pela empresa líder ou pelo próprio consórcio.
Diante desse cenário, o presente estudo tem como objetivo analisar o arcabouço normativo e interpretativo que fundamenta a permissão para o faturamento individualizado em contratos públicos firmados com consórcios.
Para tanto, serão examinadas as disposições da Lei nº 14.133/2021, instruções normativas da Receita Federal do Brasil (RFB), e posicionamentos de órgãos fazendários estaduais e municipais, incluindo, agora, o entendimento recente da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás (PGE-GO) sobre a matéria.
2. O Regime dos Consórcios em Licitações e a Responsabilidade Solidária
A Lei Federal nº 14.133/2021, em seu artigo 15, reitera a permissão para que pessoas jurídicas participem de licitações em consórcio, estabelecendo normas que visam garantir a transparência e a segurança jurídica do processo licitatório e da execução contratual.
Dentre as disposições, destacam-se a exigência de comprovação de compromisso de constituição do consórcio, a indicação da empresa líder (responsável por sua representação perante a Administração), a admissão do somatório dos quantitativos e valores para habilitação técnica e econômico-financeira, e o impedimento de participação individual ou em múltiplos consórcios na mesma licitação.
Fundamental para a presente discussão é o inciso V do artigo 15, que dispõe: "responsabilidade solidária dos integrantes pelos atos praticados em consórcio, tanto na fase de licitação quanto na de execução do contrato" (BRASIL, 2021).
Essa cláusula estabelece que a Administração Pública poderá exigir de qualquer um dos consorciados o cumprimento integral das obrigações contratuais, sem que haja necessidade de fracionamento ou divisão de responsabilidades. Tal previsão visa proteger o interesse público, garantindo que o contrato seja plenamente executado independentemente de eventual inadimplência de um ou outro consorciado.
Adicionalmente, conforme a Lei nº 6.404/76, que regula as sociedades anônimas e é a base para o tratamento dos consórcios na legislação societária. O art. 278 estabelece que:
“Art. 278. As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo.”
“§ 1º O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade.”
“§ 2º A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio.” (BRASIL, 1976)
Esta lei reforça que, embora o consórcio não tenha personalidade jurídica, as consorciadas se obrigam nos termos do contrato, mantendo sua autonomia.
3. A Interpretação Fiscal do Faturamento e da Responsabilidade Tributária em Consórcios
Embora a legislação de licitações imponha a responsabilidade solidária pela execução contratual, as normas fiscais frequentemente adotam uma abordagem distinta no que tange ao faturamento e à responsabilidade tributária dos consórcios. A Instrução Normativa RFB nº 1.199, de 14 de outubro de 2011, é um marco nesse sentido, ao estabelecer que:
“Art. 2º As empresas integrantes de consórcio constituído nos termos dos arts. 278 e 279 da Lei nº 6.404, de 1976, respondem pelos tributos devidos, em relação às operações praticadas pelo consórcio, na proporção de sua participação no empreendimento, observado o disposto nos §§ 1º e 2º.” (BRASIL, 2011a)
Essa mesma Instrução Normativa (BRASIL, 2011a, art. 3º) determina que cada consorciado deve apropriar suas receitas, custos e despesas proporcionalmente à sua participação, conforme documento arquivado no órgão de registro, observando o regime tributário a que estão sujeitas as pessoas jurídicas consorciadas.
Embora a empresa líder deva manter registro contábil das operações do consórcio de forma segregada, cada consorciado também deve escriturar segregadamente as operações relativas à sua participação em seus próprios livros contábeis e fiscais (§ 5º).
Ainda mais relevante para a questão do faturamento é o artigo 4º da IN RFB nº 1.199/2011, que dispõe expressamente:
“Art. 4º O faturamento correspondente às operações do consórcio será efetuado pelas pessoas jurídicas consorciadas, mediante a emissão de Nota Fiscal ou de Fatura próprias, proporcionalmente à participação de cada uma no empreendimento.” (BRASIL, 2011a)
Isso significa que, para fins fiscais federais, o pagamento e a emissão dos documentos fiscais devem ser realizados por cada empresa participante, na medida de sua respectiva parte no negócio.
A Instrução Normativa RFB nº 1.234/2012, que trata da retenção de tributos federais nos pagamentos efetuados por órgãos e entidades da Administração Pública Federal, corrobora esse entendimento. O artigo 17 desta instrução prevê que:
“Art. 17. No caso de pagamento a consórcio constituído para o fornecimento de bens e serviços, inclusive a execução de obras e serviços de engenharia, a retenção deverá ser efetuada em nome de cada empresa participante do consórcio, tendo por base o valor constante da correspondente nota fiscal de emissão de cada uma das pessoas jurídicas consorciadas.” (BRASIL, 2012)
Para isso, a empresa líder deve apresentar os documentos de cobrança acompanhados das notas fiscais individuais (§ 1º). A própria Secretaria da Receita Federal já havia afirmado, em consulta publicada no DOU nº 72, de 15/4/2005, que cabe a cada empresa consorciada a emissão de Nota Fiscal ou documento equivalente, levando-se em conta a participação que detém no empreendimento, sendo irrelevante o fato de o consórcio ter inscrição própria no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).
Cite-se ainda a Solução de Consulta COSIT nº 123, de 7 de maio de 2024, que reitera que, para consórcios de empresas, as vendas realizadas individualmente pelas consorciadas têm como base de cálculo a receita bruta mensal segundo a participação de cada uma, com recolhimento por estimativa incidindo separadamente sobre a parte da receita atribuída para IRPJ, CSLL, PIS/COFINS."
3.1 Posição dos Fiscos Estaduais e Municipais
A interpretação da Receita Federal do Brasil sobre o faturamento individualizado em consórcios encontra eco em manifestações de fiscos estaduais e municipais, embora com nuances.
Um exemplo claro dessa abordagem é a Consulta Tributária nº 003/2010 da Secretaria de Estado da Fazenda de Santa Catarina (SEF/SC).
Ao analisar o caso de um consórcio para construção de uma subestação de energia elétrica, a SEF/SC foi categórica ao afirmar que "consórcio de empresas não tem personalidade jurídica o que o impede de ser sujeito passivo tributário".
Consequentemente, "cada empresa constituinte do consórcio responde pelos tributos relativos aos fatos geradores que praticar". A consulta detalha que, mesmo em um empreendimento único, se houver divisão de atribuições entre as consorciadas (e.g., construção civil e fornecimento de equipamentos), incidirão impostos diferentes (ISS e ICMS, respectivamente) sobre a parcela de cada uma.
A SEF/SC ainda reforça que "a obrigação tributária é matéria sob reserva absoluta da lei e que não pode ser modificada por edital ou contrato administrativo", sendo o edital e o contrato que devem observar a legislação tributária. Essa consulta ratifica a coerência da interpretação fiscal que preza pela individualidade tributária das consorciadas, baseada na ausência de personalidade jurídica do consórcio para fins de sujeição passiva.
Corroborando esse entendimento, a Consulta nº 86/2010 da Receita Estadual do Paraná também se manifesta favoravelmente ao faturamento individualizado de ICMS. O fisco paranaense esclarece que, na ausência de disposição normativa própria que preveja o faturamento global pelo consórcio, "não há previsão para que o faturamento das mercadorias dê-se de forma global pelo consórcio, sendo necessária a emissão de notas fiscais próprias, que atendam à participação proporcional de cada consorciada no empreendimento". Dessa forma, "impõe-se às consorciadas a emissão das notas fiscais segundo os fatos que praticam ou na proporção em que participam".
Em resposta à Consulta Tributária nº 2503/2013, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (SEFAZ-SP) esclareceu que, na legislação tributária paulista, não há previsão específica para a emissão de documentos fiscais por consórcio. A SEFAZ-SP reconheceu que:
“[...] os documentos fiscais pertinentes poderão ser emitidos em nome de cada consorciado, pois o consórcio é uma sociedade sem personalidade jurídica própria, formado por pessoas jurídicas distintas, onde cada consorciada mantém sua autonomia [...]” (SÃO PAULO, Estado, 2013).
Contudo, também apontou a possibilidade de o consórcio emitir documentos próprios e faturar em seu nome, desde que esteja inscrito no Cadastro de Contribuintes do ICMS (CADESP) e mantenha escrituração em conformidade com a IN RFB nº 1.199/2011. Essa interpretação demonstra uma dupla possibilidade: faturamento centralizado ou individualizado, a depender das circunstâncias e da organização do consórcio.
No âmbito municipal, a Solução de Consulta SF/DEJUG nº 28/2016, emitida pela Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo (PMSP), abordando a incidência do ISS sobre serviços prestados por consórcios, reforça o entendimento de que consórcios não possuem personalidade jurídica. A consulta destaca que:
“De acordo com o parágrafo 1º do artigo 278 da Lei Federal nº 6.404, de 1976, consórcios não possuem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade.” (SÃO PAULO, Município, 2016)
O fisco municipal, portanto, admite o uso do CNPJ do consórcio ou, alternativamente, a escrituração individualizada por cada participante, desde que não haja emissão duplicada de notas fiscais e a modalidade adotada seja compatível com o regime de solidariedade tributária (CTN, art. 124, I).
3.2 Posicionamento da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás
Recentemente, a Procuradoria-Geral do Estado de Goiás (PGE-GO), por meio do Despacho 1531/2023/GAB, manifestou-se sobre a questão da emissão de empenhos para consórcios de empresas (GOIÁS, 2023). O despacho analisa uma consulta da Gerência de Execução Orçamentária da Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (GOINFRA) sobre o modo correto de empenhar pagamentos no Contrato 11/2023 - GOINFRA, firmado com o CONSÓRCIO BRAVIA - CFA CNB. A questão central era definir se o empenho deveria ser emitido em nome do consórcio ou da empresa-líder, no valor total, ou em nome de cada empresa consorciada, na proporção de sua participação no contrato administrativo.
A PGE-GO reafirma o entendimento de que o consórcio, apesar de registrado e possuir CNPJ, não tem personalidade jurídica, que advém de seus membros. A inscrição no CNPJ serve para facilitar a fiscalização da arrecadação dos tributos devidos individualmente pelos consorciados (GOIÁS, 2023). Em consonância com a Lei nº 12.402/2011 e as Instruções Normativas RFB nº 1.199/2011 e nº 1.234/2012, o despacho ratifica que as empresas integrantes do consórcio respondem pelos tributos na proporção de sua participação e que o faturamento deve ser efetuado pelas pessoas jurídicas consorciadas, mediante a emissão de notas fiscais próprias e proporcionais.
O Despacho 1531/2023/GAB (GOIÁS, 2023) corrobora o parecer jurídico GOINFRA/PR-PROSET-ANS nº 556/2023, que recomendava que o empenho, liquidação e pagamento fossem feitos a cada participante do consórcio, considerando a exata proporção de sua responsabilidade pela execução do contrato. A PGE-GO argumenta que, se a empresa consorciada deve emitir a nota fiscal dos serviços executados em seu nome para fins de tributação, é plausível defender que o pagamento seja feito diretamente a esta, mediante a emissão da correspondente Nota de Empenho individual.
A decisão da PGE-GO alinha-se com a orientação da consultoria Zênite, que sugere:
“Existem, portanto, justificativas plausíveis para defender que o pagamento seja feito a cada um dos participantes do consórcio, e em vista dos fins da inscrição no CNPJ, parece razoável admitir que cada consorciado deve emitir uma nota fiscal em apartado, relativa à sua participação no empreendimento. Por consequência, cumprirá ser emitida uma nota de empenho (ou instrumento equivalente) no âmbito da Administração Consulente) para cada empresa consorciada, a qual terá o direito ao seu pagamento em apartado, ainda que celebrado um único contrato.” (ZÊNITE FÁCIL, 2017)
Além disso, o despacho reforça o entendimento da Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco:
“Assim sendo, diante da discricionariedade da lei, a PGE entende não ser obrigatória a emissão do empenho exclusivamente para empresa-líder, fato que dificulta e burocratiza o processo, sendo obrigatória apenas quando houver previsão no edital, caso contrário, conclui-se pela inexistência de óbice jurídico à emissão de vários empenhos em benefício de cada uma das empresas partícipes do consórcio, na exata proporção de sua responsabilidade pela execução do contrato.” (PERNAMBUCO, 2004)
Assim, a Procuradoria-Geral do Estado de Goiás orienta que, diante da omissão das leis de licitação (Lei nº 8.666/93, Lei nº 17.928/2012 e, por extensão, Lei nº 14.133/2021) quanto à sistemática de pagamento a consórcios e não havendo previsão no edital que exija o empenho exclusivo em nome do consórcio ou da empresa-líder, é juridicamente viável e recomendável que a emissão da nota de empenho seja efetivada em nome de cada empresa consorciada, de acordo com a proporção de sua participação declarada no ato de constituição do consórcio (GOIÁS, 2023).
3.2.1 Exemplo Específico: Decreto RJ nº 49.219/2024 (Setor de Óleo e Gás)
Recentemente, a discussão sobre o faturamento individualizado ganhou um novo capítulo com a publicação do Decreto nº 49.219/2024 do Estado do Rio de Janeiro, em 26 de julho de 2024. Este decreto estabelece um tratamento tributário especial para as movimentações de bens e mercadorias entre empresas participantes de consórcios relacionados às atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural (E&P) no estado.
O decreto, que revoga o Decreto nº 26.064/2000 e entra em vigor em 1º de dezembro de 2024, reforça a tendência de individualização fiscal ao determinar diversas obrigações:
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A empresa líder do consórcio deve requerer a inscrição do consórcio no Cadastro de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro (CAD-ICMS), atuando como mandatária, mas cada consorciada com participação em campos de produção também deve solicitar inscrição individualizada no CAD-ICMS.
Estabelece a transferência proporcional dos saldos de créditos fiscais do ICMS para as consorciadas, mediante a emissão de notas fiscais individuais.
Especifica normas para a emissão de notas fiscais relativas a saídas de bens e mercadorias, bem como a obrigatoriedade de cada consorciada emitir nota fiscal em relação a cada escoamento de petróleo ou gás natural.
No entanto, o Artigo 5º do Decreto nº 49.219/2024 estabelece que "As empresas consorciadas respondem solidariamente pelas obrigações tributárias relacionadas com toda a atividade consortil".
Este ponto merece especial atenção em nosso artigo. Embora a responsabilidade solidária seja uma premissa na execução do contrato licitado (conforme Lei nº 14.133/2021), a imposição de solidariedade para as obrigações tributárias (e não apenas contratuais) por um decreto estadual, especialmente quando o mesmo decreto detalha um regime de faturamento e apuração individualizados, pode ser questionada.
Essa disposição contrasta com a diretriz federal de apuração e pagamento proporcional dos tributos federais pelas consorciadas, conforme a IN RFB nº 1.199/2011, e com o entendimento de outros fiscos estaduais como o de Santa Catarina, que reafirma que a obrigação tributária é matéria de lei e não pode ser modificada por contrato ou edital. A aparente contradição entre a prática de faturamento individualizado e a solidariedade tributária explícita levanta discussões sobre a segurança jurídica e a necessidade de harmonização das normativas fiscais em diferentes esferas
4. Possibilidade de Faturamento Individualizado e Implicações para a Administração Pública
A análise das normas e interpretações fiscais, agora reforçada pelo posicionamento da PGE-GO, revela uma base jurídica robusta que permite o faturamento individualizado pelas empresas consorciadas, desde que o edital da licitação ou o contrato não estabeleçam vedação expressa ou forma específica de faturamento. Essa permissão é fundamentada na ausência de personalidade jurídica própria do consórcio e na responsabilidade proporcional de cada consorciado para fins tributários.
Conforme orientação da consultoria especializada Zênite (2017), é razoável admitir que cada consorciado emita uma nota fiscal em apartado, relativa à sua participação no empreendimento. Por consequência, seria coerente que a Administração emitisse uma nota de empenho (ou instrumento equivalente no âmbito da Administração) para cada empresa consorciada, a qual teria o direito ao seu pagamento em separado, ainda que celebrado um único contrato. Ainda que a empresa líder possa ser investida de poderes para dar quitação em nome de todas, as notas fiscais devem ser expedidas pelas empresas consorciadas que executaram parcelas do objeto contratual.
Corrobora esse entendimento o Parecer nº 392/04 da Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2004), que, diante da discricionariedade da lei, considera não ser obrigatória a emissão do empenho exclusivamente para a empresa-líder, a menos que haja previsão expressa no edital. O parecer conclui pela inexistência de óbice jurídico à emissão de vários empenhos em benefício de cada uma das empresas partícipes do consórcio, na exata proporção de sua responsabilidade pela execução do contrato.
Portanto, diante da ausência de vedação expressa em Edital, Termo de Referência ou no Instrumento de Contrato, existe espaço para o Poder Público, por conveniência administrativa, optar por estruturar a gestão do contrato de modo a permitir a emissão de notas individualizadas por cada consorciada.
Para tanto, é imprescindível que estejam completamente definidos os percentuais de participação de cada empresa na execução, que haja controle rigoroso das medições individualizadas pela fiscalização, e que a responsabilidade solidária das obrigações contratuais perante a Administração se mantenha integralmente, inclusive para fins de garantias e penalidades.
5. Conclusão
A legislação de licitações, notadamente a Lei nº 14.133/2021, estabelece a responsabilidade solidária dos consorciados pela execução do contrato. Contudo, a legislação tributária federal, estadual e municipal, reforçada por recentes entendimentos de Procuradorias-Gerais de Estados como a de Goiás, apresenta flexibilidade quanto ao faturamento, permitindo, e em alguns casos incentivando, a emissão de notas fiscais e o recolhimento de tributos de forma individualizada, proporcionalmente à participação de cada empresa no consórcio.
Nesse contexto, o recente Decreto nº 49.219/2024 do Estado do Rio de Janeiro exemplifica a regulamentação estadual que, embora detalhe procedimentos para a individualização de inscrições no CAD-ICMS e emissão de notas fiscais de ICMS pelas consorciadas no setor de petróleo e gás, ao mesmo tempo, em seu artigo 5º, estabelece expressamente a responsabilidade solidária das empresas consorciadas pelas obrigações tributárias relacionadas a toda a atividade do consórcio. Essa disposição particular, ao impor solidariedade tributária explícita, pode gerar tensão com o regime de apuração proporcional adotado para outros tributos federais, e exige uma análise cuidadosa para garantir a harmonização das normativas em diferentes esferas
Em cenários onde o edital e o contrato não trazem vedação expressa ou detalhamento sobre a forma de faturamento, a Administração Pública possui base jurídica robusta para admitir o faturamento individualizado pelas consorciadas. Essa prática pode ser vantajosa em casos de repartição da execução física dos serviços, possibilitando uma gestão mais clara e controlada das parcelas do objeto contratual.
Para a implementação eficaz do faturamento individualizado, é fundamental que a Administração estabeleça cláusulas contratuais claras sobre os percentuais de execução de cada consorciada, critérios objetivos para medição e ateste de cada parcela, e fluxos de pagamento individualizados, sem prejuízo da responsabilidade solidária para com a Administração e o Fisco.
Recomenda-se que o Gestor do Contrato e sua equipe avaliem os impactos operacionais dessa escolha, considerando o possível aumento da complexidade administrativa, contábil e fiscal. É crucial reforçar o controle interno para evitar a fragmentação indevida da execução e mitigar riscos de inadimplência. Em qualquer circunstância, o fracionamento do faturamento não afasta a responsabilidade solidária das consorciadas perante a Administração e o Fisco, conforme disposto no artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional.
Referências:
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BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021.
BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.199, de 14 de outubro de 2011. Dispõe sobre a apuração e o pagamento de tributos federais pelas pessoas jurídicas integrantes de consórcio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 out. 2011a.
BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.234, de 11 de janeiro de 2012. Dispõe sobre a retenção de tributos nos pagamentos efetuados pelos órgãos da administração pública federal direta, autarquias e fundações federais, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades que menciona, e pelos órgãos da administração pública direta dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, inclusive suas autarquias e fundações. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jan. 2012.
GOIÁS. Procuradoria-Geral do Estado. Despacho nº 1531/2023/GAB. Referência: Processo nº 202300036001743. Interessado(a): BRAVIA ENGENHARIA E ARQUITETURA LTDA-ME. Assunto: CONSULTA. Goiás, 13 set. 2023. Disponível em: file:///C:/Users/carlos.tsilva/Downloads/Despacho_do_Gabinete_N_Automatico_51609984.html. Acesso em: 16 jul. 2025.
PERNAMBUCO. Procuradoria-Geral do Estado. Parecer nº 392/04. Disponível em: https://www.scge.pe.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/Boletim-n%C2%BA-004-2020-%E2%80%93-Empenhamento-da-Despesa-%E2%80%93-Empresas-participantes-de-Cons%C3%B3rcio-P%C3%BAblico.pdf. Acesso em: 16 jul. 2025.
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