Resumo: A presente reflexão versa sobre o retorno simbólico e acadêmico de um jurista e professor à Faculdade de Direito após 26 anos de magistério jurídico. Através de uma abordagem crítica e pessoal, expõem-se os desafios contemporâneos do sistema penal brasileiro, a inversão de valores processuais, e a crescente politização ideológica da persecução penal. Denuncia-se a atrofia do Direito diante do crescente e perigoso ativismo judicial, da violação ao devido processo legal e da perigosa substituição do processo jurídico pelo processo político, com nefastas consequências para as liberdades públicas.
Palavras-chave: Processo penal ideológico; garantismo hiperbólico; liberdades públicas; politização da Justiça; juiz natural; sistema acusatório.
INTRODUÇÃO
Nos próximos dias iniciaremos mais uma jornada acadêmica: voltarei aos bancos da universidade para cursar, novamente, Direito. Foram 26 anos lecionando Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Direito Penal e Processo Penal, em faculdades diversas. Agora, retorno com a alma inquieta e a mente sedenta. Quero reaprender o que ensinei, revisar as teorias com olhar mais maduro, redescobrir conceitos com olhos de aluno, mergulhar novamente na semântica processual, nas raízes principiológicas, nas tormentas filosóficas e nas incertezas do Direito penal contemporâneo.
Tenho sede de compreender, por exemplo, a formulação do jurista Oskar von Bülow, sobre a teoria tripartida da ação. Desejo revisitar o princípio da inércia jurisdicional e a fórmula “ne procedat judex ex officio”. Preciso entender por que, em certos tribunais, mesmo diante da apreensão de grande quantidade de cocaína, um processo é anulado por ausência de mandado de busca, sem sequer se discutir a temática da permanência do crime. Quero entender novamente os conceitos de crimes instantâneo e permanente. Quero compreender o atual conceito de crime permanente e o que, de fato, é o sistema acusatório consagrado no art. 3º-A do Código de Processo Penal.
Anseio por entender a lógica da essência do garantismo hiperbólico monocular, que transforma o infrator em vítima e o agente da lei em réu moral. Quero compreender até que ponto se estende o direito à felicidade plena que impede o reconhecimento de crime até mesmo diante de uma invasão domiciliar. Desejo, com coragem, enfrentar os efeitos corrosivos do autoritarismo oculto no ativismo judicial, onde em algumas ocasiões o intérprete, em uma síntese absolutista, assume o papel sistêmico, numa espécie de ciclo total, em face da assunção de atividades próprias e execução de políticas públicas, fazendo relembrar a velha máxima do Rei Sol, agora disfarçada de imparcialidade.
É incontestável que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco civilizatório ao instituir, em seu Título VIII, a consagração da Ordem Social, estruturada a partir do primado do trabalho e orientada pela busca do bem-estar e da justiça sociais.
Essa ordem, plasmada nos artigos 193 a 232 da Carta Magna, abrange de forma ampla e inovadora diversos direitos sociais fundamentais, como a Seguridade Social, a Educação, a Cultura e o Desporto, a Ciência, Tecnologia e Inovação, a Proteção ao Meio Ambiente, à Família, à Criança, ao Adolescente, ao Jovem e ao Idoso, bem como aos Povos Indígenas — consagrando, assim, um compromisso inequívoco do Estado brasileiro com os pilares de uma sociedade inclusiva, plural e solidária.
Além de estabelecer direitos, o texto constitucional impõe ao Estado o dever de exercer o planejamento das políticas sociais, garantindo, nos termos da lei, a participação ativa da sociedade civil em todas as etapas dos processos de formulação, monitoramento, controle e avaliação dessas políticas públicas.
Entretanto, diante da recorrente inércia dos entes estatais no cumprimento espontâneo de tais mandamentos constitucionais, tornou-se imperiosa uma atuação mais proativa do Poder Judiciário. O Judiciário é, portanto, instado a assumir um papel de protagonismo na concretização dos direitos sociais, não como violador do princípio da separação dos poderes, mas como guardião legítimo da Constituição e promotor da justiça material.
Todavia, é igualmente certo que, mesmo diante da omissão dos demais Poderes, não se legitima ao Judiciário ultrapassar os limites de sua competência constitucional. Sua missão deve ser exercida com isenção, equilíbrio e imparcialidade, atuando sempre mediante provocação legítima e buscando assegurar uma justiça efetiva, equânime e verdadeiramente justa — aquela que concretiza a dignidade da pessoa humana e confere sentido à promessa constitucional de um Estado Democrático de Direito.
Ao processo penal, igualmente, aplicam-se as disposições do artigo 8º do Código de Processo Civil, o qual estabelece que, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz deverá atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana, com estrita observância aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência.
Essa diretriz se harmoniza de forma inequívoca com o artigo 3º do Código de Processo Penal, que admite a interpretação extensiva e a aplicação analógica da norma processual penal, bem como o suplemento por meio dos princípios gerais do direito. Trata-se, pois, de uma verdadeira convocação hermenêutica à justiça substancial, onde a letra fria da lei se aquece no fogo dos valores constitucionais.
Destarte, o processo penal deve ser instrumento de justiça, jamais de vingança, e a aplicação da pena deve atender aos fins sociais, jamais se curvar à histeria coletiva ou aos impulsos ideológicos que, contaminados por uma polarização afetiva que dilacera o país, colocam em risco o sagrado princípio da segurança jurídica.
Não se pode admitir que paixões políticas ou interesses circunstanciais deformem o processo penal em um teatro de exceções. O direito penal não pode ser sequestrado por agendas ideológicas. Ele deve permanecer fiel ao seu compromisso histórico com a civilização: punir com justiça, garantir direitos, proteger inocentes e assegurar, acima de tudo, que a dignidade da pessoa humana não seja um conceito decorativo, mas um pilar inegociável da República.
ANÁLISE CRÍTICA
O Direito Penal brasileiro vive uma era de inversões simbólicas e reais. A ideologia infelizmente contaminou a técnica. Alguns jurisconsultos, muitas vezes, abandonaram a Constituição e se ajoelharam diante do altar ao sabor da conveniência política. O sagrado e assaz disseminado princípio da imparcialidade foi substituído por narrativas; o tão decantado princípio do juiz natural em certas ocasiões virou dogma decorativo; o sistema acusatório, conquanto positivado, artigo 3º-A do CPP, parece ter convertido em letra morta. O “garantismo”, outrora construído como salvaguarda contra o arbítrio, hoje opera como escudo para criminosos influentes e como espada contra a sociedade vulnerável.
Claro que não é a regra, lógico que não é da essência do sistema jurídico predominante, mas de vez por outra assistimos a atuação do sistema policialesco, do respeitado Ministério Público e do prestigiado Poder Judiciário por vezes sendo submetida à lógica da ideologia dominante, que converte fatos em construções subjetivas, desconsidera a materialidade das provas e transforma o processo em teatro, transmitido para o julgamento da opinião pública ou sentimento ideológico e não mais a essência do Direito. Em nome da proteção de direitos, violam-se as bases do próprio Estado Democrático de Direito.
Cria-se um processo penal ideológico, onde a seletividade, antes social, passa a ser política. A defesa não é mais técnica, mas identitária; o mérito não é mais jurídico, mas moralizado. As decisões não se fundamentam mais em provas, mas em posicionamentos ideológicos, travestidos de garantismo. Trata-se de uma perigosa substituição do processo penal jurídico pelo processo político, onde o rito, os princípios e os direitos fundamentais viram obstáculos à conveniência de poder.
Antes, as decisões, defesas, impugnações, razões e contrarrazões, arrazoados jurídicos, eram carregados de citações de pensamentos de ministros da Suprema Corte, como pensava o teofilotonense Celso Fulgêncio da Cunha Peixoto, Nelson Hungria, Aliomar Baleeiro, Moreira Alves, Pedro Lessa, Orozimbo Nonato, Alfredo Buzaid, além de tantos outros.
Esse cenário impõe grave risco às liberdades públicas. A instrumentalização do processo penal para fins de poder converte o sistema em ameaça à cidadania, em vez de proteção. Em vez de um escudo da liberdade contra o arbítrio, o processo vira uma engrenagem de controle social e perseguição disfarçada. Eis o paradoxo: em nome do Direito, mata-se o Direito.
CONCLUSÃO
O Poder Judiciário: Fortaleza da Liberdade e Escudo da Justiça. O Poder Judiciário deve ser compreendido como a última cidadela dos direitos, a inabalável fortaleza erguida contra as investidas da tirania. É mais que um órgão de Estado — é o altar onde repousa a esperança do povo, a ponte sagrada que conduz os injustiçados ao vale da liberdade. Deve ser instrumento firme e vigilante, que não se curva aos interesses sombrios, nem se cala diante da opressão. Cabe-lhe a missão nobre de proteger o cidadão do despotismo moderno, de sustentar a dignidade humana sob os ventos impiedosos da arbitrariedade. Em tempos sombrios, quando a nação é silenciada por gestores narcisistas, que encenam a democracia enquanto ceifam direitos, o Judiciário deve ser escudo do povo e espada da legalidade. Deve erguer-se como farol de esperança para uma sociedade cansada da dor, traída pelos que deveriam servi-la. Que jamais se esqueça: onde o juiz teme, o injusto reina. Onde a toga se cala, o grilhão se aperta.
Vou realizar outro sonho: fazer Direito novamente pelas bandas do Vale do Mucuri, viajar pelas montanhas de Minas Gerais, retornar à capital mundial das pedras preciosas. Sair novamente de bicicleta do bairro Bela Vista, passar bem em frente ao simpático e exuberante Grão Pará, apreciando de longe o Alto do Iracema, voltar às lembranças de 1991.
Mas desta vez, quero fazer direito ao Direito. Quero reaprender as garantias judiciais previstas no artigo 8º do Pacto de São José da Costa Rica. Preciso estudar novamente os clássicos Giuseppe Bettiol, Francesco Carrara, Beccaria, Giuseppe Chiovenda, Enrico Túlio Liebman, Piero Calamandrei, Francesco Carnelutti, Manzini, Ada Pellegrini Grinover, Mauro Cappelletti e muitos outros; tenho sede de estudar a doutrina brasileira que importou e consolidou uma estrutura que deveria prezar pela imparcialidade, paridade de armas, contraditório, ampla defesa, dignidade da pessoa humana e pela supremacia da Constituição como marco regulador da ação estatal.
Quero reaprender acerca das condições da ação, sua natureza jurídica. Pretendo rever o tema da actio libera in causa e saber sobre a teoria do duty to mitigate e a sua repercussão nos tribunais. Tenho sede de saber novamente sobre a Teoria da norma, do crime e da pena. Quero reestudar processo penal, os seus ritos, a teoria das provas, processo procedimento, a teoria das nulidades. Vivemos tempos de deformação jurídica. O sistema que deveria garantir justiça e equidade transformou-se num labirinto de narrativas ideológicas e conveniências políticas. A túnica de Rômulo, que um dia foi símbolo de imparcialidade, muitas vezes virou bandeira de partido. A caneta do intérprete substitui as provas; o discurso substitui os autos. É o processo penal performático, onde a encenação vale mais que a verdade.
A atrofia do Direito é visível: princípios constitucionais são ignorados, tratados internacionais são relativizados, a Constituição é reinterpretada segundo humores e vontades. O devido processo legal passou a ser assessorado, reduzido a formalidade ornamental. Os operadores do Direito tornaram-se, em parte, operadores da política jurídica, inclinando a balança da justiça conforme o vento da ideologia.
O sistema penal, contaminado por essa lógica, tornou-se um perigo real às liberdades públicas. O processo penal, que deveria proteger o cidadão contra o Estado, passou a servir ao Estado contra o cidadão. E nesse cenário distorcido, cabe a nós, juristas, advogados, professores, alunos e operadores, reconstruir o Direito como ciência, não como instrumento de ideologia.
Por isso, volto à faculdade. Quero reaprender. Não para ser apenas mais um bacharel, mas para ser o eterno menino do Vale da resistência. Para que o Direito volte a ser direito. Para que o processo penal volte a ser jurídico, técnico e justo, e não espetáculo, político e ideológico.
Como eterno amante de um sistema de justiça neutro, imparcial e verdadeiramente justo, ergue-se o clamor pela preservação da pureza do Direito diante das tentações ideológicas que assombram o templo da legalidade.
Pugna-se, com a força serena dos justos, para que a polarização afetiva — essa paixão cega travestida de ideologia — não se torne um vírus corrosivo a contaminar o processo jurídico, transformando-o em palco de um teatro político, manchado pela nódoa da maldade tendenciosa.
Não importa a cor da bandeira nem o timbre do discurso. Quando a ideologia veste a toga e empunha a caneta, o risco é iminente: o Direito se curva, a imparcialidade se desfaz, e a justiça torna-se refém de uma agenda oculta.
É preciso resistir, usando a revolução de ideias republicanas e sentimento assaz democrático, sem fanatismo ideológico e sem fantasias extremistas.
É preciso lembrar que a caneta, instrumento de paz e construção civilizatória, não pode se tornar arma de terror jurídico, a serviço do ódio travestido de legalidade.
Que reine a Justiça — e não os justiceiros.
Que impere o Direito — e não os ditames da paixão ideológica.
Pois onde a imparcialidade se esvai, a liberdade geme.
E assim, com o coração aceso pela sede do saber e a mente pulsando nas veredas do Direito, ergue-se o espírito de quem não se contenta com as verdades empacotadas, com os conceitos engessados ou com as fórmulas caducas da dogmática penal. O desejo de reestudar as teorias da pena — da relatividade à absolutividade, do eclético ao agnóstico — revela não apenas uma inquietação acadêmica, mas uma jornada ontológica pela essência da justiça.
É nesse caminhar que se encontra a alma da terceira via do direito penal, onde a técnica abraça a ética, e a racionalidade não se divorcia da humanidade. Revisitar os princípios do processo penal, como quem relê um evangelho jurídico, é reconhecer que o devido processo não é mero rito, mas uma trilha sagrada em que cada passo deve ser iluminado pela imparcialidade, pelo juiz natural e pelo sagrado direito de defesa.
Prometer atenção ao princípio da imparcialidade do julgador é abrir os olhos para o maior dos desafios contemporâneos: fazer do processo um instrumento de libertação e não de opressão. É escutar, nas palavras de Mauro Cappelletti, as ondas reformadoras que clamam por uma justiça que seja não apenas legal, mas justa — aquela que não se contenta com o cumprimento formal das leis, mas busca sua razão de ser na dignidade da pessoa humana.
Portanto, não se trata apenas de estudar o Direito, mas de reencontrar sua alma. É neste renascer acadêmico que floresce o verdadeiro jurista: não aquele que apenas repete teorias, mas aquele que transforma o saber jurídico em ponte entre o caos e a ordem, entre o arbítrio e a esperança. Que esta jornada, marcada por humildade intelectual e ousadia ética, continue — porque estudar o Direito é, no fundo, um ato poético de resistência à injustiça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÜLOW, Oskar. Teoria da Ação e Processo Penal Alemão. [Obra de referência do jurista alemão sobre a teoria tripartida da ação].
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, especialmente os artigos 5º (incisos LIV e LV), 93 e 129.
Código de Processo Penal Brasileiro, com ênfase no art. 3º-A (introduzido pela Lei nº 13.964/2019 – Pacote Anticrime).
Código Penal Brasileiro.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (1969).
Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948).
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais.
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966).
Texto ajustado com apoio técnico da IA ChatGPT. Acesso em 15 de julho de 2025.