A SEGREGAÇÃO E O VAMPIRISMO CULTURAL EM “PECADORES” DE RYAN COOGLER
Autor: Leonardo Barreto Ferraz Gominho1 (Estácio/FAL)
Resumo:
Este artigo oferece uma análise crítica do filme de horror histórico “Pecadores” (2025), a mais recente obra do realizador Ryan Coogler. Situado durante um único dia em Clarksdale no Mississippi em 1932, o filme utiliza várias relações pessoais e analogias para dissecar as patologias da América da Era Jim Crow. Argumentamos que Coogler constrói uma alegoria multifacetada em que: a) o cenário da festa de inauguração de um bar para a comunidade negra funciona como um estudo de época, cujos pecados capitais despontam ao longo da trama, sendo personificados como motores de exploração do enredo; b) os paralelos bíblicos são reconfigurados para uma teologia da resistência negra; e c) a figura do vampiro é brilhantemente transposta de forma inovadora para os patronos brancos que de forma simbólica furtam as culturas dos povos submissos (cultural appropriation) e impõem uma violenta lei de segregação. “Pecadores” emerge como uma denúncia da “hospitalidade predatória” e do roubo da alma cultural que assombra a história americana, sendo referência para compreender as ansiedades contemporâneas sobre identidade, patrimônio e a persistência da exploração.
Palavras-chave:
Apropriação Cultural; Extração Epistêmica; Pecadores (2025); Segregação Negra; Teologia Pós-Colonial; Vampirismo Cultural.
1. INTRODUÇÃO: O ESPECTRO DE JIM CROW E O CINEMA COMO EXORCISMO
O cinema, em sua forma mais potente, não é apenas um espelho da realidade, mas um sismógrafo das falhas tectônicas da história, registando os tremores de traumas não resolvidos que continuam a abalar o presente. Dentro deste paradigma, o gênero de horror social emergiu no século XXI como o principal campo de batalha simbólico para o confronto com os espectros da sociedade. Longe de serem meros exercícios de sustos e violência gráfica, obras como Get Out (2017) de Jordan Peele demonstraram que o horror pode funcionar como um bisturi psicanalítico, dissecando as patologias sociais e expondo os monstros que não se escondem debaixo da cama, mas que presidem em salas de estar, em conselhos de administração e nos corredores do poder. É nesta tradição de cinema como exorcismo social que a mais recente e aguardada obra de Ryan Coogler, “Pecadores” (Sinners, 2025), se inscreve, oferecendo uma das mais devastadoras críticas fílmicas à fundação racial da América.
A importância de Ryan Coogler como autor é o primeiro pilar desta análise. A sua carreira, desde a crueza visceral de Fruitvale Station (2013) até a construção mitológica de nação em Black Panther (2018), tem sido uma contínua meditação sobre a identidade negra face à violência sistêmica e ao peso da ancestralidade. Coogler não é apenas um contador de histórias; ele é um arquiteto de mundos que investiga a dialética entre a comunidade e o indivíduo, a herança e o futuro. Em Fruitvale, ele humanizou a estatística, forçando o espectador a confrontar a vida roubada por trás de uma manchete. Em Creed (2015), ele usou o gênero do drama desportivo para explorar o legado e a pressão de carregar o nome de um pai simbólico. E em Black Panther, ele transcendeu o filme de super-heróis para imaginar um futuro descolonizado, questionando o que significa poder, responsabilidade e pertencimento para a diáspora africana. “Pecadores” surge, portanto, não como um desvio, mas como a culminação lógica e mais sombria destas preocupações. Ao voltar-se para o passado, especificamente para a noite de 1932, Coogler não está a praticar a nostalgia, mas sim a arqueologia, escavando as fundações assombradas sobre as quais a América contemporânea foi construída.
Importante frisar que não iremos desviar a intenção deste artigo para mencionar a cultura irlandesa que também foram oprimidos em sua cultura pelos ingleses e pelos nativos americanos Choctaw que originalmente estavam no Alabama, Mississipi e Louisiana e que suspostamente também cansavam seres supernaturais e também foram explorados e dizimados. E talvez o mais importante, estes são os legítimos donos das terras, mas na obra aparecem rapidamente e não se envolvem mais na questão da exploração. Enfim, vamos nos ater a cultura afro-americana.
O filme se situa num momento histórico de paradoxo lancinante: 1932. Esta data não é acidental; é um nexo de contradições profundas. Por um lado, a nação norte-americana testemunhava a deslumbrante fluorescência do Renascimento do Harlem, um movimento de autoafirmação e produção cultural negra sem precedentes. Era a era do “New Negro”, um tempo em que poetas como Langston Hughes, escritores como Zora Neale Hurston e músicos como Duke Ellington e Bessie Smith forjavam uma nova identidade artística, cheia de orgulho e complexidade. O som deste momento era o Blues e o Jazz, formas de arte nascidas da dor do Delta do Mississippi e agora eletrizando os salões e clubes do Norte. No entanto, esta explosão criativa se desdobrava sob a sombra da arquitetura brutal das leis Jim Crow. Enquanto a arte negra era celebrada em certos círculos, os corpos negros eram sistematicamente segregados, aterrorizados e linchados. A memória do Massacre de Tulsa de 1921, onde uma próspera comunidade negra foi dizimada pela violência branca, pairava como um lembrete constante da precariedade da vida e do sucesso negros. É nesta dualidade - a celebração da alma negra e a opressão do corpo negro - que Ryan Coogler ancora o seu horror.
“Pecadores” utiliza a trama de uma festa pela abertura de um bar voltado ao público negro como um microcosmo para esta esquizofrenia nacional. A trama inicia mencionando a importância da música aos povos e que ela pode trazer paz e demônios. Depois que acompanha o retorno de dois irmãos gêmeos Elijah (“Fumaça”, retratado com boina azul, o que demonstra que é o irmão mais calculista e frio. Possui transtorno pós-guerra já que vemos cenas em que ele pega o cigarro já pronto do irmão e no fim do filme não consegue enrolar o cigarro já que a sua mão não para de tremer. Utiliza um estilo de roupas irlandês) e Elias (“Fuligem”, retratado com chapéu vermelho simbolizando ser mais intenso e tem mais imposição. Utiliza um estilo de máfia italiana em suas roupas), ambos interpretados por Michael B. Jordan, à cidade natal (Clarksdale) no Mississipi, no início da década de trinta. Os irmãos são lendas locais temíveis por questões não reveladas diretamente, mas ficando implícita a utilização de violência. Os dois viviam como gângsteres na cidade de Chicago e após roubarem as máfias italiana e irlandesa retornam a sua cidade natal para abrirem um clube de dança ou bar (juke joint) especificamente direcionado ao público negro na tentativa de se estabelecer um local de alegria ao povo segregado. Logo, a trama apresenta a segregação racial e o racismo no Sul dos Estados Unidos da primeira metade do século XX com pano de fundo para um mundo de submissão de culturas ou furto de cultura quanto conveniente.
Ponto de destaque que é mencionado à forma de escravidão naquele tempo, pois em que pese à escravidão ter sido abolida, os trabalhadores não recebiam dólares em seu laboro, mas apenas uma moeda utilizada pelo próprio patrão para continuar explorando os seus trabalhadores que necessitavam trocar a tal moeda por materiais de consumo básicos.
Devemos destacar que os irmãos protagonistas possuem relações amorosas intensas e marcadas pela cultura e segregação a época. Elijah teve um relacionamento com Annie (Wunmi Mosaku), mas a relação chegou ao fim quando a filha dos dois faleceu e a dor os separa. A relação é carregada de aspectos religiosos afro-americanos, já que Annie é uma mentora espiritual da comunidade trazendo também elementos sobrenaturais na trama. O outro irmão, Elias, possui uma complicada relação com Mary (Hailee Steinfeld), uma mulher branca descendente de afro-americanos, e se a relação for conhecida à segregação também recairá em Mary, o que Elias não deseja, e o faz se afastar, mesmo a amando. Aqui a personagem vive o luto pela morte de sua mãe, mas desfruta do privilégio de ser branca aos olhos da comunidade. Todavia, Mary possui forte relação e identidade ao grupo de pessoas negras que se reúnem no clube.
Outro personagem fundamental a trama é o jovem guitarrista de Blues Sammie Moore, primo dos irmãos protagonistas, vivido pelo ator e músico Miles Caton. O filme acompanha a relação deste com o trabalho, com o seu pai que é pastor e não deseja ver o seu filho indo ao Blues e ao pecado, a relação fraterna com os seus primos, a busca do sonho de ser músico e o caminho na vida do Blues.
A trama evolui para mostrar o vampiro Remmick, vivido pelo ator Jack O´Connell, que deseja consumir/sugar toda a cultura de acredite ser interessante, especialmente a africana. Aqui vemos a ambição branca na tentativa de reter a cultura de povos, ou seja, uma alegoria para o que a teórica Bell Hooks denominou “Eating the Other” (Comer o Outro) ao argumentar que, na sociedade de consumo, a alteridade racial e étnica é transformada numa mercadoria, um tempero que pode ser consumido para dar sabor a uma vida branca dominante e insípida. Logo, os vampiros querem consumir a autenticidade cultural, sugar a dor da música para sentirem algo real, ainda que momentaneamente. Este ato de consumo é, fundamentalmente, um ato vampírico. Recordemos que o vampiro sempre foi uma metáfora para a aristocracia parasita que suga a vida dos camponeses para manter a sua própria imortalidade decadente. O filme, portanto, traz o mito para o contexto racial americano em que os brancos são os novos aristocratas, e o sangue que eles bebem é a cultura, a espiritualidade e a vitalidade da comunidade negra, especificamente manifestada no Blues.
Este artigo argumenta que “Pecadores” de Ryan Coogler é uma obra-prima do horror histórico que disseca o contrato racial americano através da construção de uma complexa tríade alegórica. Primeiramente, o filme enquadra a festa como uma Babilônia moderna, um espaço de idolatria e excesso onde os pecados capitais impulsionam a narrativa. Em segundo lugar, Coogler reconfigura a iconografia bíblica numa teologia da resistência negra, posicionando seu protagonista como um profeta relutante e os antagonistas como Faraós e falsos Messias. Finalmente, e de forma mais central, o filme articula o vampirismo como a metáfora definitiva para a apropriação cultural, demonstrando como o consumo do Blues pelos brancos na era Jim Crow não era um ato de homenagem, mas uma forma de violência extrativista que reforçava a própria lei da segregação - permitindo o acesso à alma enquanto se negava a humanidade.
Para substanciar esta tese, a análise a seguir procederá em quatro partes. Primeiro, traremos a arquitetura do filme totalmente baseado na segregação racial norte-americana nas décadas primárias do século passado e, para tanto será abordada a lei Jim Crow e os massacres nas décadas próximas ao cenário do filme. Seguiremos para o contexto do Blues que funciona como o “sangue” vital que os “vampiros” buscam consumir e será abordada a vida de Robert Leroy Johnson. Em seguida examinaremos a reinterpretação da narrativa bíblica, focando nas figuras centrais e no simbolismo da trama. Posteriormente, discutiremos como os pecados capitais trazidos na obra e que são apresentados como os motores da trama. Por fim, concluiremos como “Pecadores” utiliza o seu enquadramento histórico para lançar uma acusação poderosa sobre as formas contemporâneas de apropriação e consumo cultural, provando que os fantasmas de 1930 ainda assombram os palcos e as playlists do século XXI.
2. A ARQUITETURA DO ABISMO: A REALIDADE VIVIDA DA SEGREGAÇÃO E O PALCO DE “PECADORES”
Para compreender a profundidade do horror retratado em “Pecadores” de Ryan Coogler, é imperativo transcender a ficção e mergulhar no abismo histórico que a sustenta. A “Lei de Segregação” não é uma abstração ficcional; ela é a dramatização de doutrinas históricas de supremacia racial, especificamente aquelas aplicadas contra a população negra. O filme ecoa os princípios legais e sociais de sistemas como o regime Jim Crow nos Estados Unidos e o Apartheid na África do Sul, transpondo-os para o campo da cultura.
O ano de 1932 não é um pano de fundo pitoresco, mas um palco montado sobre as fundações de uma doutrina legal e social de supremacia branca, cuja violência e humilhação diária são o verdadeiro fantasma que assombra cada cena do filme. Este capítulo detalha a arquitetura legal e a experiência humana desta segregação, demonstrando que o horror da sede vampírica não é o medo do desconhecido, mas o conhecimento íntimo do que acontece fora da porta do salão.
2.1. A doutrina do “separados, mas iguais”: a ficção legal da supremacia
A base legal para a segregação racial nos Estados Unidos foi cimentada pela decisão da Suprema Corte no caso Plessy v. Ferguson em 1896. A doutrina resultante, “separados, mas iguais” (separate but equal), era uma das mais perversas ficções jurídicas da história moderna. Em teoria, ela permitia a separação de raças em instalações públicas, desde que essas instalações fossem de qualidade igual. Na prática, a doutrina foi um véu de legalidade para consubstanciar a inferioridade negra. O objetivo nunca foi a “igualdade”; foi a “separação” como mecanismo de controle social, dominação econômica e afirmação da supremacia branca.
Sob Jim Crow, a segregação era total e sistêmica. Ela ditava onde uma pessoa negra podia viver, trabalhar, comer, estudar e ser enterrada. Escolas para negros eram cronicamente subfinanciadas, com livros velhos, edifícios em ruínas e professores mal pagos. Hospitais recusavam pacientes negros ou relegavam-nos a alas precárias. Nos transportes públicos, negros eram forçados a sentar-se na parte de trás dos autocarros e em vagões de comboio separados, frequentemente em condições muito piores. Esta separação física era a manifestação visível de uma hierarquia racial que posicionava a negritude como contaminante, algo que precisava ser contido e mantido à distância para preservar a suposta “pureza” branca.
2.2. A vivência da humilhação: o cotidiano sob o olhar de Jim Crow
Além das leis escritas, Jim Crow era sustentado por um complexo código de etiqueta social não escrito, desenhado para reforçar a subjugação a cada interação. A violação deste código, por menor que fosse, podia resultar em humilhação pública, perda do emprego, espancamento ou morte. A experiência vivida em 1930, o mundo que os protagonistas Elias, Elijah e Sammi conhecem intimamente, era pautada por estas realidades: a segregação dos corpos, o ritual da submissão e as “Sunset Towns” (Cidades do Pôr do Sol).
A segregação dos corpos é o mais básico dos direitos humanos que era negado. Tudo era separado. Havia estabelecimentos voltados para cada etnia. Uma pessoa negra não podia estender a mão para cumprimentar uma pessoa branca, pois o contato físico era um tabu. Um homem negro não devia olhar diretamente nos olhos de uma mulher branca, um “crime” que custou a vida de incontáveis homens. A cena em “Pecadores” em que os irmãos chegam à cidade e percorrem uma rua reflete diretamente isso. Vislumbramos duas instalações que possuem como donos um casal de chineses, ambas vendem as mesmas coisas, mas uma destinada a brancos é ligeiramente mais luxuosa e a outra voltada aos negros é simples e escura, cada uma em um lado da rua e que demonstra a total separação da população.
O ritual da submissão é demonstrado por exemplos. Um negro era obrigado a sair da calçada para dar passagem a um branco. Devia sempre se dirigir a um branco com um título de respeito (Senhor, Senhora), enquanto era invariavelmente chamado pelo primeiro nome, “rapaz” (boy) ou epítetos raciais. Estas eram microagressões diárias que serviam como um lembrete constante do seu lugar na base da pirâmide social.
As “Sunset Towns” (Cidades do Pôr do Sol) representa as milhares de cidades em toda a América, principalmente no Norte e Oeste que eram comunidades exclusivamente brancas que, através de intimidação, violência e ordenanças locais, proibiam a permanência de afro-americanos após o pôr do sol. Inclusive os irmãos compram um celeiro de um branco que supostamente seria da Ku Klux Klam, mesmo o cidadão afirmando que a KKK não existiria mais mesmo assim Elijah o avisa que se os amigos dele aparecerem em uma visita surpresa ele os matariam. O que acontece no final do filme. Ponto de destaque é que ao entrar no local os irmãos constatam que o celeiro era utilizado como matadouro o que acontece no filme.
2.3. O espectro de capuz branco: a Ku Klux Klan e o terror como ferramenta de controle
Se as leis de Jim Crow representavam a estrutura legal da supremacia branca, a Ku Klux Klan (KKK) era o seu braço paramilitar e executor extrajudicial. O horror latente que pulsa sob a superfície polida da classe branca não pode ser plenamente compreendido sem reconhecer a presença onipresente da Klan como a expressão mais visceral do terror racial na América. A KKK não era uma organização marginal; na década de 1920, ela vivia o seu ápice de poder e influência, tornando-se uma força política e social dominante que assombrava a vida de cada afro-americano.
A “Segunda Klan”, que ressurgiu em 1915 e floresceu nos anos 20, era diferente da sua encarnação original da Reconstrução. Enquanto a primeira focava em aterrorizar os libertos no Sul, a segunda Klan se expandiu por todo o país, incluindo os estados do Norte e do Centro-Oeste. Em 1930, ano em que se passa o filme, a organização contava com milhões de membros, incluindo políticos, juízes, xerifes e proeminentes empresários. A sua ideologia ia além da supremacia branca, abraçando o nativismo, o anticatolicismo e o antissemitismo, mas o seu principal alvo permanecia a população negra. A KKK se apresentava como uma guardiã da “moralidade protestante” e da “civilização americana”, uma fachada que tornava a sua violência ainda mais insidiosa.
O método primário da Klan era o terrorismo doméstico, projetado para manter a ordem racial de Jim Crow através da intimidação e da violência extrema. Isso se manifestava de várias formas: As marchas e as cruzes em chamas: A imagem mais icônica da Klan é a da cruz de madeira em chamas, frequentemente queimada à noite no topo de uma colina ou no quintal de uma família negra ou de um simpatizante branco. Este ato não era apenas uma ameaça; era um ritual de terror psicológico, um espetáculo de poder que reivindicava o território em nome da supremacia branca e evocava as imagens do inferno para os seus alvos. Era um sinal de que a comunidade estava a ser vigiada e que a punição por qualquer transgressão seria severa; o linchamento como espetáculo público era a arma mais brutal da Klan. Entre o final do século XIX e meados do século XX, milhares de homens, mulheres e crianças negras foram linchados. Estes não eram assassinatos secretos; eram espetáculos públicos, muitas vezes anunciados previamente em jornais. Multidões de brancos, incluindo mulheres e crianças, reuniam-se para assistir, como se fosse um festival. As vítimas eram torturadas, mutiladas e depois enforcadas ou queimadas vivas. Fotógrafos tiravam fotos dos corpos, que eram transformadas em postais e vendidas como souvenirs. Este ato de barbárie servia a um duplo propósito: punir a suposta transgressão de um indivíduo e aterrorizar toda a comunidade negra, forçando-a à submissão; a conexão com o Poder Institucional era o que tornava a KKK tão assustadora na década de 1920 era a sua integração com as estruturas de poder. Em muitas cidades, o xerife local, o juiz e o prefeito eram membros da Klan. Isso significava que não havia a quem recorrer. Um negro que fosse vítima da violência da Klan não podia esperar proteção ou justiça da lei, pois os aplicadores da lei eram, muitas vezes, os próprios homens por baixo dos capuzes.
No contexto de “Pecadores”, a Klan funciona como uma sociedade paralela privada de senso comum. Que reúnem pessoas misóginas para em coletivo agirem sorrateiramente na tentativa de segregar e eliminar negros. Todavia, a KKK não contava que Elias iriam cumprir a promessa e matéria todos aqueles que foram covardemente atacar os irmãos pela manhã.
2.4. Os casos reais ambientados: o espectro da violência e do ressentimento
A ameaça que paira sobre os protagonistas não é abstrata. Naquela época, vários caíram pelas ondas de violência que definiram a relação conflituosa entre brancos e negros.
O Verão Vermelho (Red Summer) de 1919: os Estados Unidos foram varridos por uma onda de motins raciais de brancos contra negros em mais de três dezenas de cidades. Soldados negros que regressavam da Primeira Guerra Mundial, onde lutaram pela democracia, eram linchados por usarem seus uniformes em público, um ato percebido como uma afronta à hierarquia racial. Esta memória recente informaria a desconfiança e o medo de qualquer personagem negro ao interagir com grandes grupos de brancos.
O Massacre de Tulsa (1921): talvez o caso mais emblemático e relevante para “Pecadores”. A comunidade de Greenwood em Tulsa, Oklahoma, era um dos mais prósperos enclaves negros do país, conhecido como “Black Wall Street”. Em 1921, uma multidão branca, motivada por um falso relato de assédio e inflamada pelo ressentimento contra o sucesso econômico negro, invadiu Greenwood. Durante dois dias, saquearam, incendiaram e assassinaram, destruindo mais de 35 quarteirões e matando centenas de pessoas com a conivência das autoridades locais. O massacre de Tulsa é o arquétipo histórico da trama já que a elite branca que celebra e consome o sucesso negro (seja econômico ou artístico) e, ao mesmo tempo, reserva-se o direito de destruí-lo se este ameaçar a sua primazia.
O Caso Emmett Till (1955): embora tenha ocorrido décadas depois, o brutal assassinato de Emmett Till, um adolescente de 14 anos, por supostamente ter assobiado para uma mulher branca, cristaliza a lógica mortal que já vigorava nas décadas passadas. O seu caso demonstra a fragilidade da vida negra e como a mais trivial das transgressões percebidas do código social podia levar à tortura e à morte. Esta ameaça latente é o subtexto de cada nota que Sammie toca nos créditos finais. Ele não está apenas a atuar; ele está a navegar num campo minado social onde um passo em falso, um olhar mal interpretado ou uma nota demasiado desafiadora podem ser a sua sentença.
Em suma, a lei da segregação era muito mais do que sinais em portas. Era uma arquitetura psicológica e física de opressão, sustentada pela ameaça constante de violência extrema. O horror em “Pecadores” é eficaz precisamente porque Coogler entende que os monstros mais assustadores não são os que têm presas, mas os que sorriem educadamente enquanto aplicam as regras de um sistema desumano.
2.5. O Blues como crônica da dor e de furto cultural
Nenhuma forma de arte expressa à dialética entre a dor da segregação e a resiliência cultural de forma mais pungente que o Blues. Nascido no Delta do Mississippi, no coração da opressão pós-escravatura, o Blues é a trilha sonora da alma negra americana. Ele é, em si, uma teologia secular - uma crônica de sofrimento, perda, pecado e uma tênue esperança de redenção, muitas vezes fora do alcance da religião institucional. Era passado de pai para filho e com letras de sofrimento, da tristeza pela exploração ou da perda de um amor. E a ideia era manter o espírito africano.
O paralelo com “Pecadores” é dolorosamente preciso. As “canções sagradas” que os vampiros brancos desejam se apossar é o seu “Blues”. Elas são a expressão mais pura da identidade e da história daquela comunidade. O processo de apropriação do Blues serve como um roteiro histórico para o que acontece no filme.
O Blues foi criado por músicos negros anônimos, em campos de algodão e bares improvisados, como uma forma de dar voz a uma existência marcada pela violência e pela pobreza. Os salões de dança negros ao longo do tempo foram objeto de curiosidade branca que passa a tentar ouvir aquele estranho canto e depois de certo tempo acontece a “descoberta vampírica” em que etnomusicólogos e produtores musicais brancos que “descobriram” essa música, registrando-a. E após isso ocorre à extração e o branqueamento musical em que artistas brancos - de Elvis Presley aos Rolling Stones - pegaram as estruturas, as melodias e as letras do Blues, higienizaram a sua dor crua e as vendem para um público branco massivo, acumulando fama e fortuna que foram sistematicamente negadas aos criadores originais como Robert Johnson ou Muddy Waters. Esse é o ato vampírico por excelência: sugar a essência vital (o som, a alma) e deixar o corpo original (o músico negro) exangue e empobrecido.
Desde já esclareço que a afirmação não diz respeito a que Elvis e os Rolling Stones são vampiros brutos que não se importavam com a essência do Blues. Pelo contrário, os músicos normalmente são fãs do gênero, como em várias oportunidades demonstraram, mas ser fã não modifica a extração e a reinterpretação acaba por modificar, seja pelo lado bom ou pelo lado ruim, a ideia original. É um furto/roubo da origem e a adequação para um mercado que deseja ao máximo consumir não o bruto, mas o adaptado. Outro ponto na mesma esfera é a modificação do Blues e do Jazz pelos rappers e djs que também estão presentes no salão do bar quando da magia.
3. A vida de Robert Johnson
Robert Leroy Johnson nasceu em Hazlehurst no Mississippi em 08 de maio de 1911 (a data de nascimento não é precisa e possui diversas versões) e faleceu em Greenwood também no Mississippi em 16 de agosto de 1938 e foi um cantor, compositor e guitarrista norte-americano de blues.
Johnson é um dos músicos mais influentes do Mississippi Delta Blues e é uma importante referência para a padronização do consagrado formato de doze compassos para o blues. Influenciou grandes artistas durante anos como Muddy Waters, que considerava Johnson “o mais importante cantor de blues que já viveu”. Em 2011, foi eleito o 71º melhor guitarrista da história, em uma enquete de eleitores e colaboradores da revista norte-americana Rolling Stone. Chegando a gravar 29 músicas em um total de 40 faixas. As suas músicas continuam sendo interpretadas e adaptadas por diversos artistas e bandas, como Led Zeppelin, Bob Dylan, Eric Clapton, The Rolling Stones, The Blues Brothers, Red Hot Chili Peppers e The White Stripes.
Após uma breve narrativa de sua importância vem à pergunta: e o que Robert Johnson tem haver com a obra? Devemos mencionar dois fatos. Uma que o próprio Ryan Coogler admitiu a referência em uma entrevista. Outra um mito. Robert era tido como um péssimo músico e teria vendido a sua alma ao diabo na encruzilhada das rodovias 61 e 49 em Clarksdale, Mississippi (mesma cidade em que a trama se passa) para que fosse reconhecido como bom músico. Assim, na encruzilhada com o seu violão e uma garrafa de whisky adulterado teria aguardado quando teria ouvido um bend escandaloso de uma gaita cromada - assim teria se manifestado o diabo. A entendida teria pegado o violão e afinado em um tom abaixo. Depois o devolveu para Johnson que começou a tocar como mais ninguém conseguia.
Este mito foi difundido principalmente por Son House e ganhou força devido às letras de algumas de suas músicas, como “Crossroads Blues”, “Me And The Devil Blues” e “Hellhound On My Trail”. O mito também é descrito no filme Crossroads de 1986, no episódio 8 da segunda temporada da série Supernatural, na música Sinfonia do Inferno de Kamaitachi e no episódio 14 da terceira temporada de Legends of Tomorrow, além da faixa bônus da página 101 do livro Encruzilhada (Literata, 2011), do autor brasileiro Ademir Pascale. O mito ainda explica detalhes sobre ele ter saído desesperadamente do bar Tree Forks, sendo perseguido por cães pretos e foi encontrado com marcas de mordidas profundas, cortes em forma de cruz no rosto e seu violão intacto ao lado do corpo ensanguentado. Robert morreu de olhos abertos e uma expressão tranquila no rosto.
Enfim, saindo do mito e retornando a história, Robert Johnson é frequentemente citado como “o maior cantor de blues de todos os tempos”, e até mesmo como o mais importante músico do século XX, já que o estilo de blues criado por Johnson influenciou seus contemporâneos e músicos mesmo após mais de 20 anos desde sua morte. Eric Clapton é um dos guitarristas influenciados por Johnson nos anos 60. Antes disso, nos anos 50, tivemos Elmore James, outro mestre da guitarra. Praticamente todo o blues que veio depois de Robert Johnson tinha seu estilo de compasso, padrão de letra e melodia, afinações abertas para uso de slide e técnicas para tocar solo, ou seja, sem qualquer outro instrumento para acompanhar.
E sim, a obra é uma homenagem ao grande músico, especialmente no momento em que o experiente músico Delta Slim (vivido pelo ator e músico Delroy Lindo) no bar fala ao mais jovem (Sammie) que a música “(Blues) não foi imposto pra gente como aquela religião. Não, filho. A gente trouxe isso de casa. É magia o que agente faz. É sagrado... e é grandioso”. Em outra parte, a música de Sammie transcende o tempo e várias épocas da música interagem no salão sendo possível ver um Jimmie Hendrix, DJs, Rappers etc..
Importante frisar que no filme a subversão acontece. Ao invés do músico ir atrás do diabo para firmar o pacto, é o mal (vampiro) que fascinado procura o blues referenciando como uma obra mágica e fonte de obsessão e este desejo o faz querer se apossar dessa “mágica”.
4. A ANATOMIA DA ALMA CORROMPIDA: OS ASPECTOS BÍBLICOS E OS SETE PECADOS CAPITAIS NA TRAMA
4.1. As referências bíblicas
O filme de Ryan Coogler, “Pecadores” (Sinners) gerou grandes discussões sobre as suas profundas camadas temáticas, incluindo notáveis referências bíblicas. O thriller sobrenatural é rico em simbolismo e narrativas que ecoam as escrituras sagradas.
Ambientada no sul dos Estados Unidos durante a era Jim Crow na década de 1930, acompanha os irmãos gêmeos Elijah e Elias Moore. A escolha dos nomes dos protagonistas é a primeira e mais direta alusão bíblica. Elias é a forma grega do nome hebraico Eliyahu, um dos profetas mais proeminentes do Antigo Testamento, conhecido por seus confrontos com falsos profetas e a sua ascensão aos céus. A dualidade dos irmãos com nomes que são essencialmente o mesmo pode sugerir um conflito interno ou duas facetas de uma mesma luta espiritual. Exatamente o que o personagem do filme realiza. Defesa da comunidade afro-americana e ousadia em desafiar o status quo vigente.
O personagem central Sammie (Samuel) Moore também possui relação biblíca. Samuel foi um importante profeta, sacerdote e juiz em Israel na Bíblia. Ele é conhecido por seu papel na transição de Israel de uma confederação de tribos para uma monarquia, ungindo os dois primeiros reis, Saul e Davi. Samuel também é lembrado por sua fidelidade a Deus e por sua liderança espiritual sobre o povo de Israel. Importante mencionar que ele foi dedicado ao serviço do Senhor ainda criança e Deus chamou Samuel pela primeira vez durante a noite, tornou-se um profeta e juiz em Israel, liderando o povo e guiando-o na adoração ao Senhor. O personagem Sammie conclui o filme sendo um “sacerdote” do Blues, tendo vivido da música e incentivado a sua cultura afro-americana. E o seu grande chamamento foi na noite.
Os gêmeos se relacionam com Annie (Ana) e Mary (Maria), ambos os nomes femininos extremamente conhecidos e constantes da bíblia. Na Bíblia, existem duas mulheres chamadas Ana, a primeira é a mãe do profeta Samuel e a segunda é a profetisa, mencionada no Evangelho de Lucas. A mais conhecida é Ana, mãe de Samuel, que era estéril e clamou a Deus por um filho, prometendo dedicá-lo ao Senhor. Deus ouviu sua oração e concedeu-lhe Samuel, a quem ela cumpriu sua promessa, entregando-o ao serviço do Senhor. Já Maria é a mãe do Salvador.
Um ponto central sobre a personagem Annie diz respeito a ser a guia espiritual (grande mãe) e também é desejada pelo vampiro Remmick. Observe-se que quando Annie morre Remmick sofre jpa que ele deseja o conhecimento ancestral espiritual de Annie e o Blues de Jammie.
Retornando a temática proposta, o próprio título do filme, “Pecadores”, estabelece um forte tom religioso, sugerindo temas de transgressão, culpa e a busca por redenção, conceitos centrais na teologia cristã. A sinopse revela que os irmãos retornam à sua cidade natal para recomeçar, mas são confrontados por um “mal sobrenatural”. Esta premissa de enfrentar demônios do passado, tanto literais quanto figurativos, é uma jornada arquetípica encontrada em muitas narrativas bíblicas.
O filme explora o horror como uma metáfora para a opressão e a luta pela sobrevivência, onde os monstros reais e os metafóricos se confundem. A ambientação no Mississippi e a trilha sonora de blues também podem carregar conotações espirituais, já que o blues historicamente aborda temas de sofrimento, esperança e espiritualidade.
No longo também a servente, símbolo do mal e da mudança. Ela aparece na cena em que os irmãos chegam ao caminhão de bebidas roubadas que eles escondem. Além da serpente os corvos também estão presentes simbolizando que a morte sempre está pairando.
Outro ponto bíblico importante se encontra logo na cena inicial em que Sammie chega a Igreja em que seu pai prega para a comunidade e a imagem foca em três crucifixos o que é claramente é uma alusão a trindade. Pai, Filho e Espírito Santo. Além do que o numeral três possuem grande relevância ao Cristianismo já que Jesus faleceu aos trinta e três anos e renasceu depois de três dias.
Ryan Coogler utiliza a doutrina dos sete pecados capitais não como um sermão dogmático, mas como uma ferramenta analítica para expor a corrupção fundamental que sustenta a ordem social da trama.
4.2. A dança dos pecados: uma análise aprofundada das transgressões em “Pecadores” de Ryan Coogler
O filme “Pecadores” (Sinners) de Ryan Coogler, ambientado no Mississippi da década de 1930, transcende o gênero de terror ao tecer uma complexa tapeçaria de temas sociais e espirituais, utilizando os sete pecados capital como uma poderosa lente para examinar a condição humana em meio à opressão racial e ao sobrenatural. A narrativa, que acompanha os irmãos gêmeos em seu retorno para casa e a abertura de um bar de blues, torna-se um palco para a manifestação visceral de cada um desses pecados.
4.2.1. A Ira: o fogo latente da supremacia branca
A Ira é encarnada de forma explícita e aterrorizante na Ku Klux Klan. O filme estabelece desde o início a tensão racial, com os irmãos tendo que comprar o terreno para seu bar de um líder local da KKK. Esta Ira não é a raiva justificada dos artistas negros, que encontram no blues uma forma de sublimar o seu sofrimento e expressar sua resiliência. Pelo contrário, a Ira pecaminosa é a fúria da supremacia branca quando sua hierarquia é desafiada.
Vemos essa Ira em lampejos de violência e ameaças veladas, como quando o ex-dono do celeiro, Hogwood, interage com os irmãos. A tensão deriva do conhecimento de que essa fúria está sempre à espreita, pronta para explodir em violência a qualquer momento. O clímax sangrento, com o ataque planejado da KKK ao bar, independentemente da presença dos vampiros, demonstra que a casa de show estava condenada desde o início pela Ira racial. No final, Elias, em um último ato de retribuição, elimina Hogwood e seus homens, mas sucumbe aos ferimentos.
4.2.2. A Ganância: o custo do sonho americano
A Ganância se manifesta na ambição dos irmãos Elias “Stack” e Elijah “Smoke” Moore. Elias é um veterano da Primeira Guerra Mundial e os dois são ex-associados do crime em Chicago, eles retornam com dinheiro e bebidas alcoólicas roubadas para construir um espaço de liberdade para a comunidade negra. Embora seu desejo de proporcionar um refúgio de alegria seja genuíno, a engrenagem do sonho é movida pela busca de lucro e autonomia. A busca por esse sonho, no entanto, os coloca em um caminho de confronto, não apenas com o racismo local, mas também com um mal sobrenatural atraído por sua empreitada.
A Ganância também é o pecado central dos vampiros. Liderados pelo irlandês Remmick, eles não desejam apenas o sangue para se alimentar, mas buscam se apropriar da cultura, da música e da alma da comunidade negra. É uma forma de consumo predatório, um desejo de possuir a vitalidade e a criatividade que eles próprios não possuem. A ironia trágica de sua ganância é que ela os cega para o perigo iminente do nascer do sol, que acaba por destruí-los.
4.2.3. A Gula: o consumo voraz da Cultura Negra
A Gula se revela na forma como a cultura negra é consumida de maneira voraz e insaciável pelos vampiros. Eles não apenas bebem o sangue, mas, ao fazê-lo, devoram a essência da expressão artística negra - a música, a dança, a performance - em um banquete cultural interminável. Essa representação serve como uma poderosa alegoria para a apropriação cultural, onde a arte negra é reduzida a um produto a ser consumido para gratificação imediata, despojada de seu contexto de dor e resistência. O massacre no bar é o ápice dessa Gula cultural, um ato de consumo que aniquila os criadores enquanto se apropria de sua criação.
4.2.4. A Luxúria: a fetichização e o desejo perverso
A Luxúria permeia a atmosfera sensual e vibrante do bar de blues, em que o som e a dança despertam o desejo. No entanto, o filme explora a faceta mais sombria da Luxúria através da fetichização dos corpos e da cultura negra. Os dançarinos são observados com um fascínio que mistura desejo e exotismo, seus movimentos interpretados como uma expressão de uma sexualidade “primitiva” e “desinibida”.
Essa Luxúria é perversa porque deseja o objeto - o corpo que dança, a música que ecoa - enquanto nega a humanidade e a história do sujeito. É o pecado que permite aos vampiros consumir a estética negra sem qualquer empatia pela experiência negra. Literalmente, a embriaguez do momento, impulsionada por um som lascivo, cria um ambiente onde as linhas entre admiração e desejo predatório se confundem.
4.2.5. A Soberba: A Arrogância da Superioridade
A Soberba é o pecado fundamental que alimenta tanto a ideologia da Ku Klux Klan quanto à dos vampiros. Manifesta-se na crença arrogante e inabalável na superioridade da raça branca e na sua cultura, no caso da Klan, e na certeza dos vampiros de que têm o direito de consumir tudo o que desejam. Personagens como Hogwood e o vampiro Remmick são a personificação desse pecado, vendo os negros como seres inferiores, fontes de uma vitalidade primitiva a ser explorada ou eliminada.
Outra figura que encarna a Soberba é o pastor Jedidiah, pai de Sammie. Sua recusa em aceitar a paixão do filho pelo blues, que ele considera profano, e sua pressão para que Sammie siga seus passos, ignorando os verdadeiros desejos do filho, revelam um orgulho que o impede de ver o valor e a espiritualidade na arte de seu próprio povo. Uma frase marcante do personagem é: “Se continuar dançando com o diabo, um dia ele vai te seguir até em casa’.
4.2.6. A Inveja: o desejo corrosivo pela alma alheia
A Inveja é um pecado sutil, mas corrosivo, presente na obra. Ela se esconde sob a fachada do vampiro Remmick, que, ao testemunhar o talento, a união e a alegria da comunidade no bar, sente uma inveja profunda. O seu rosto na primeira conversa com os irmãos revela um desejo por aquilo que ele não pode criar: a vitalidade, a resiliência e a profundidade emocional expressas na arte negra. Essa inveja, no entanto, não leva à admiração, mas a um desejo de posse e destruição, culminando no massacre que serve como uma analogia a eventos históricos de violência racial.
4.2.7. A Preguiça (Acídia): a indiferença diante do mal
Talvez o pecado mais condenatório retratado no filme seja a Preguiça, no sentido teológico de acídia: uma apatia espiritual e uma indiferença perante o mal. É a preguiça moral tanto dos brancos que testemunham a exploração e a humilhação do sistema Jim Crow e escolhem a inação, quanto dos vampiros que, em vez de criarem sua própria cultura, optam pelo caminho mais fácil de copiar e consumir a dos outros. Esta acídia é o que permite a perpetuação de sistemas opressores. O filme argumenta que não é apenas o ódio ativo dos fanáticos que sustenta a injustiça, mas também a indiferença conveniente da maioria “respeitável”.
5. O Roubo da Alma: apropriação cultural e a lógica mercantil em “Pecadores”
“Pecadores” de Ryan Coogler mergulha fundo em uma das feridas mais persistentes da história americana: a apropriação da cultura negra. O filme utiliza a aterrorizante metáfora do vampirismo para dissecar a mecânica predatória pela qual a arte, a música e a própria alma da comunidade negra foram historicamente consumidas e comercializadas por uma estrutura de poder branca. Esta relação não é de admiração, mas de extração, um parasitismo cultural movido por uma lógica mercantil que valoriza o produto enquanto desumaniza o produtor.
A manifestação mais literal e horripilante dessa apropriação está nos vampiros. Liderados por Remmick, eles não são apenas monstros sedentos por sangue; são os consumidores culturais supremos. Ao se alimentarem dos artistas negros, eles não apenas tiram suas vidas, mas roubam a sua essência, sua música, seu talento. Eles são estéreis de criatividade e vitalidade, e veem na comunidade negra uma fonte inesgotável para se apropriarem. O desejo de Remmick não é apenas ouvir o blues, é possuí-lo, replicá-lo e, em última instância, controlá-lo. Ele personifica a inveja e a ganância do consumidor branco que, incapaz de gerar a mesma profundidade cultural nascida da dor e da resiliência, opta por roubá-la. É a colonização levada à sua conclusão sobrenatural: a absorção completa do colonizado.
Não devemos esquecer o simbolismo da necessidade do vampiro só poder acessar um recinto se convidado. Essa ironia é sutil se analisarmos que os negros não foram convidados a ir a América, eles foram raptados e utilizados como mecanismo de mão de obra sem maiores questionamento. Além do que, “falsos” amigos normalmente tentam se aliar para aprender e depois alterar o que foi aprendido se dizendo inovador. Do Blues e do Jazz advém o Pop e o Rock. Uma “nova” roupagem “branca” de algo aprendido na cultura afro-americana. É a busca da raiz, da origem que importa.
Paralelamente ao horror sobrenatural, o filme expõe a lógica mercantil do mundo real que impulsiona essa apropriação. A figura do produtor musical branco que aborda os músicos de blues representa a indústria do entretenimento que historicamente explorou artistas negros. Ele vê a música não como uma expressão de vida, dor e alegria, mas como uma mercadoria exótica a ser embalada e vendida. Oferece contratos exploratórios e reconhecimento superficial em troca da matéria-prima – a alma da música. Este produtor e os vampiros são duas faces da mesma moeda: ambos buscam extrair valor da cultura negra para seu próprio lucro e deleite, esvaziando a arte de seu contexto e de seu poder de resistência.
O bar dos irmãos Elias e Elijah, concebido como um santuário de expressão e alegria negra se torna ironicamente o palco para essa dupla forma de consumo. Para a comunidade, é um espaço de catarse e liberdade. Para os “consumidores” externos – tanto os vampiros quanto a lógica de mercado que eles representam –, o bar é um catálogo, um cardápio de talentos a serem provados e descartados. A dança, a música e a energia vibrante do local são vistas como um espetáculo a ser consumida, uma forma de entretenimento que permite ao espectador branco (ou vampiro) experimentar a “autenticidade” negra sem ter que arcar com o peso da experiência negra. E conforme o filme demonstra o sangue jora.
Dessa forma, “Pecadores” argumenta que a apropriação cultural é um ato de violência. É uma recusa em reconhecer a humanidade e a história por trás da arte. Ao transformar a cultura em produto, a lógica mercantil e a predação vampírica cometem o mesmo pecado: o roubo da alma. O filme demonstra que essa forma de consumo, que deseja a estética negra sem a empatia pela vida negra, é um ato monstruoso por si só, uma forma de apagamento tão devastadora quanto a violência física explícita da Ku Klux Klan. É a transformação da expressão mais profunda de um povo em um eco oco para o entretenimento de seus opressores.
6. CONCLUSÃO
“Pecadores” de Ryan Coogler se consagra não apenas como um marco no gênero de horror social, mas como um ato de exorcismo cinematográfico. Ao mergulhar na escuridão do Mississippi de 1932, Coogler não realiza um mero exercício de reconstituição histórica; ele invoca os espectros de Jim Crow para confrontar a América com os pecados originais que continuam a manchar sua alma. O filme é um testamento à potência do cinema como ferramenta de arqueologia psíquica, escavando as fundações de uma nação para revelar os monstros que ali residem – tanto os de capuz branco quanto os de presas afiadas.
A genialidade da obra reside na sua complexa arquitetura alegórica. A arquitetura do abismo da segregação, a crônica de dor do Blues e a mitologia de Robert Johnson não são meros panos de fundo; são os pilares que sustentam a narrativa, tornando o horror palpável e historicamente fundamentado. O terror em “Pecadores” não emana do sobrenatural, mas da realidade sufocante da supremacia branca, onde a violência da Ku Klux Klan e a ameaça constante de aniquilação são mais aterrorizantes do que qualquer vampiro. Os monstros, neste caso, servem como uma metáfora devastadora para a mecânica predatória da apropriação cultural - o ato de “Comer o Outro”, de consumir a alma de uma cultura enquanto se despreza o corpo que a produz.
Ao entrelaçar essa crítica social com uma rica tapeçaria de simbolismo bíblico e uma análise visceral através dos sete pecados capitais, Coogler eleva a narrativa a uma parábola teológica. Os nomes dos profetas, as figuras maternas de Ana e Maria, e a jornada de um jovem "sacerdote" do Blues criam uma nova escritura de resistência. Nesta teologia, a redenção não é encontrada na submissão, mas na afirmação cultural, e o pecado mais mortal não é a transgressão individual, mas a acídia coletiva – a indiferença moral que permite a perpetuação do mal.
Em última análise, "Pecadores" transcende seu cenário histórico para lançar uma acusação poderosa sobre o presente. A lógica mercantil que transforma a arte negra em mercadoria, a fetichização da estética negra desprovida de empatia, e a inveja que impulsiona o desejo de consumir a autenticidade alheia não desapareceram com as leis de Jim Crow. Elas apenas mudaram de forma, persistindo nos algoritmos das plataformas de streaming, nas tendências da moda e nos debates sobre apropriação que dominam o século XXI.
O filme de Ryan Coogler é, portanto, um espelho sombrio. Ele nos força a reconhecer que os fantasmas de 1932 nunca foram verdadeiramente exorcizados. Eles ainda assombram os palcos, as galerias e as playlists, lembrando-nos que a batalha pela alma da cultura é uma luta contínua. “Pecadores” nos deixa com uma verdade incômoda e ressonante: o eco dos pecados do passado continua a ser a trilha sonora não reconhecida do nosso tempo, e a verdadeira assombração é a nossa recusa em ouvi-lo.
REFERÊNCIAS:
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COOGLER, Ryan. (Diretor). (2025). Pecadores [Filme]. Proximity Media.
DAVIS, Angela Y. . Blues legacies and black feminism: Gertrude "Ma" Rainey, Bessie Smith, and Billie Holiday. Philadelphia: Temple University Press, 1998.
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Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Pós-Graduado em Direito Político e Prática Eleitoral pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva Ltda - CERS (2020); Pós-Graduado em Direito Médico pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva Ltda - CERS (2023); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/ANCHIETA; Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable; Ex-Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE; Advogado; Autor de livros jurídicos; Coordenador e coautor de livros jurídicos; Professor de Direito.︎