Autodiagnóstico não é diagnóstico

23/07/2025 às 17:03

Resumo:


  • O avanço das redes sociais e da cultura da hiperconectividade tem levado à banalização da linguagem médica, com autodeclarações de transtornos sem respaldo clínico.

  • A substituição do processo técnico de avaliação multidisciplinar por autodiagnósticos baseados em listas de sintomas e testes de triagem tem efeitos nocivos à credibilidade científica e às políticas públicas.

  • A prática do autodiagnóstico pode violar princípios jurídicos, como a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade, além de comprometer a eficácia das leis de proteção aos direitos das pessoas com deficiência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O avanço das redes sociais e da cultura da hiperconectividade trouxe consigo uma preocupante banalização da linguagem médica. Atualmente, é cada vez mais comum a autodeclaração de transtornos como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), sem qualquer respaldo clínico-formal. Fenômeno esse que ganha contornos preocupantes, pois se estrutura sobre discursos subjetivos, questionários de internet e vídeos de identificação, afastando-se das exigências técnico-científicas do diagnóstico médico-psicológico. A prevalência inflacionada de autodiagnósticos se torna um novo fenômeno de massa, onde o “reconhecimento de si” é convertido em uma espécie de verdade incontestável, fomentada por algoritmos e comunidades virtuais que reforçam percepções pessoais sem qualquer mediação profissional.

Não se pretende aqui negar a existência ou a gravidade desses transtornos, tampouco invisibilizar o sofrimento psíquico de indivíduos que se reconhecem como neurodivergentes. O ponto central é a crítica à substituição do processo técnico de avaliação multidisciplinar por uma autoatribuição baseada em listas de sintomas e testes de triagem. Esses instrumentos, muitas vezes mal compreendidos ou aplicados fora do contexto clínico, servem apenas como indicadores preliminares, e não como ferramentas definitivas. A apropriação de termos técnicos pelo senso comum, sem o devido cuidado, tem produzido efeitos nocivos à credibilidade científica e à eficácia das políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência.

Sob a perspectiva jurídica, a problemática adquire ainda maior densidade. A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu art. 1º, III, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual se vê vulnerado quando indivíduos se autodiagnosticam e passam a exigir, de maneira imediata, adaptações escolares, benefícios assistenciais e até mesmo medidas judiciais sem qualquer laudo técnico que justifique tais pedidos. O direito à igualdade (art. 5º, caput) exige tratamento isonômico, o que pressupõe a existência de critérios objetivos para a concessão de direitos, o que, evidentemente, não se compatibiliza com alegações subjetivas de diagnóstico não homologado por profissional habilitado.

Além disso, a Lei nº 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, bem como a Lei nº 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), estabelecem parâmetros claros para a caracterização da deficiência e o acesso a políticas públicas. Ignorar tais requisitos em nome de uma autodeclaração sem lastro técnico é esvaziar o próprio conteúdo normativo das leis protetivas. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, espaço para o reconhecimento de um “autodiagnóstico com força legal”, tampouco para a presunção de veracidade com base em convicções pessoais.

Outro aspecto delicado refere-se à responsabilidade profissional. Tanto o Conselho Federal de Psicologia quanto o Conselho Federal de Medicina exigem rigor metodológico para a emissão de diagnósticos. Psicólogos e médicos estão sujeitos às normas éticas e técnicas da profissão, e qualquer laudo que seja emitido sem os devidos critérios pode configurar infração ética, passível de responsabilização civil e administrativa. Isso inclui, inclusive, profissionais que atuam sob pressão de pacientes já convencidos de sua condição, influenciados por vídeos ou comunidades da internet que promovem identificação com sintomas de forma indiscriminada.

Há também um fenômeno perverso que se manifesta sob o manto da boa intenção: a patologização excessiva de traços da personalidade humana. Em nome da aceitação e da “neurodiversidade”, muitos traços comuns, como timidez, desatenção ou introversão, têm sido erroneamente confundidos com sintomas clínicos de transtornos mentais. A psiquiatrização da vida cotidiana, quando não filtrada por critérios técnicos, pode converter o discurso da inclusão em ferramenta de deslegitimação da dor real de quem efetivamente enfrenta tais transtornos. E, do ponto de vista do direito, essa banalização compromete a efetividade das garantias destinadas às pessoas realmente diagnosticadas.

Por fim, é preciso reconhecer que o autodiagnóstico também denuncia uma falha estrutural do Estado: o acesso precário a especialistas em saúde mental. O SUS, embora teoricamente universal e integral, ainda apresenta severas deficiências no atendimento psicológico e psiquiátrico. Essa lacuna tem sido preenchida por vídeos explicativos, influenciadores digitais e testes online, em uma lógica substitutiva que expõe o cidadão a riscos éticos, sociais e jurídicos. O problema, portanto, não é apenas individual, mas institucional: cabe ao Estado garantir atendimento qualificado e gratuito, para que os diagnósticos não sejam feitos no espelho, mas sim no consultório.

Criticar o autodiagnóstico não é desqualificar a experiência subjetiva do sofrimento. É, sim, uma exigência de seriedade na forma como tratamos a saúde mental, os direitos sociais e o próprio sistema de justiça. Sem isso, corremos o risco de transformar o discurso da inclusão em mais uma engrenagem da desinformação.

Sobre o autor
Gabryel Fraga Lima

Estagiário de Pós-Graduação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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