O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A PRISÃO PREVENTIVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
George Saymon Silva de Freitas 1,
RESUMO
Este trabalho analisa a relação entre o princípio da presunção de inocência e a prisão preventiva no processo penal brasileiro. Tal problemática consiste em compreender como o sistema jurídico pode conciliar a garantia constitucional da presunção de inocência com a aplicação da prisão cautelar antes da condenação definitiva. Essa questão se impõe pelo fato de que o uso recorrente da prisão preventiva, muitas vezes de forma arbitrária e sem fundamentação concreta, pode representar uma antecipação da pena, contrariando os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. O objetivo central deste estudo é investigar a compatibilidade entre esses dois institutos jurídicos, avaliando os limites e possibilidades da prisão preventiva à luz das garantias processuais. Para isso, foram empregados os seguintes procedimentos metodológicos: levantamento e análise de obras doutrinárias, artigos científicos e jurisprudência atualizada, configurando uma pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo. Esse propósito foi fundamentado a partir de uma abordagem teórica e crítica do ordenamento jurídico vigente, observando o posicionamento da doutrina e dos tribunais superiores. A pesquisa evidenciou que, embora haja previsão legal e constitucional para a prisão preventiva, sua aplicação deve respeitar os critérios da excepcionalidade, proporcionalidade e necessidade, sob pena de violação à presunção de inocência. O estudo também destacou a importância das medidas cautelares diversas da prisão como mecanismos eficazes e menos gravosos, capazes de assegurar os fins do processo penal sem comprometer a liberdade do acusado.
PALAVRAS-CHAVE: Presunção De Inocência. Prisão Preventiva. Processo Penal. Garantias Fundamentais. Medidas Cautelares.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a complexa relação entre o princípio da presunção de inocência e a prisão preventiva no processo penal brasileiro, refletindo sobre os limites jurídicos e constitucionais impostos ao poder punitivo estatal. Em um cenário no qual se busca a consolidação de um Estado Democrático de Direito, torna-se imprescindível a observância rigorosa dos direitos fundamentais, em especial aquele que garante ao réu o tratamento como inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. No entanto, a persistente utilização de prisões cautelares antes da condenação definitiva tem gerado intensos debates acadêmicos e judiciais, colocando em xeque o real cumprimento das garantias constitucionais previstas no ordenamento jurídico nacional (Fachin, 2020).
A presunção de inocência, insculpida no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, não se trata apenas de uma norma simbólica, mas de um direito fundamental que permeia todo o sistema penal e processual penal. Esse princípio deve funcionar como uma barreira contra o arbítrio estatal, protegendo o indivíduo da antecipação da pena sem o devido processo legal. A prisão preventiva, por sua vez, embora prevista em lei como medida excepcional, tem sido frequentemente decretada de forma ampla e muitas vezes desvinculada de seus pressupostos legais, comprometendo a coerência e a efetividade das garantias processuais (Botelho e Souza, 2020).
Tal cenário revela a urgência de uma investigação aprofundada sobre os contornos dessa aparente contradição jurídica, em que se afirma a inocência presumida ao mesmo tempo em que se permite a privação de liberdade antes da decisão final. Essa tensão entre segurança pública e direitos individuais desafia os operadores do direito, especialmente juízes, promotores e defensores, a encontrarem um equilíbrio que respeite os fundamentos constitucionais sem desconsiderar a necessidade de contenção da criminalidade. É nesse contexto que se insere a presente pesquisa, cujo foco recai sobre a análise crítica da compatibilidade entre esses dois institutos à luz da doutrina contemporânea e da jurisprudência dos tribunais superiores (Giacomolli, 2016).
A importância do tema se revela não apenas no campo acadêmico, mas também na esfera social e política, uma vez que a prisão preventiva tem sido utilizada como resposta rápida a clamor público e a demandas midiáticas por justiça, frequentemente em detrimento das garantias constitucionais do acusado. Esse uso desmedido compromete não apenas o direito individual à liberdade, mas também a credibilidade das instituições judiciais, que devem se pautar por critérios técnicos e jurídicos. Por isso, torna-se essencial promover uma reflexão aprofundada sobre os fundamentos, limites e consequências da prisão cautelar à luz do princípio da presunção de inocência.
A pesquisa propõe, portanto, como objetivo geral, examinar a compatibilidade entre a presunção de inocência e a decretação da prisão preventiva no processo penal brasileiro. De forma mais específica, busca-se compreender a origem e o desenvolvimento do princípio da inocência, identificar os requisitos e finalidades da prisão preventiva, discutir os conflitos jurídicos gerados por sua aplicação antecipada e analisar o posicionamento dos tribunais superiores quanto à sua legitimidade e aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade envolvidos.
Para alcançar tais objetivos, a metodologia adotada consistirá em uma revisão bibliográfica, com levantamento e análise crítica de livros, artigos científicos, periódicos especializados e jurisprudência recente. Essa abordagem permitirá o aprofundamento teórico e a contextualização prática do tema, favorecendo uma visão ampla e crítica sobre os desdobramentos jurídicos da aplicação da prisão preventiva em face do princípio da presunção de inocência, colaborando com o avanço dos estudos no campo do Direito Penal e do Processo Penal brasileiro.
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DESENVOLVIMENTO
O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO DIREITO PENAL
O princípio da presunção de inocência representa uma das garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito, assegurando ao acusado o direito de ser tratado como inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Tal princípio não é apenas uma regra de tratamento processual, mas reflete um valor essencial que impõe limites à atuação do poder punitivo estatal. Ele estabelece um marco civilizatório em que a dignidade da pessoa humana prevalece sobre o ímpeto repressivo do Estado. De acordo com Nardelli (2018), o respeito à presunção de inocência exige do juiz uma postura de máxima racionalidade e imparcialidade ao decidir sobre a liberdade do réu.
Historicamente, a consagração da presunção de inocência surge como resposta a regimes autoritários em que a culpa era presumida e a defesa, frequentemente, desconsiderada. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, essa garantia passou a integrar o rol dos direitos fundamentais, exigindo do sistema processual penal uma readequação de seus institutos. A lógica acusatória, em contraposição à inquisitiva, reforça a centralidade do contraditório e da ampla defesa. Fachin (2020) declara que a presunção de inocência deve conformar toda a persecução penal, desde a fase investigativa até o trânsito em julgado.
No plano internacional, o princípio também encontra respaldo em instrumentos como o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, conferindo-lhe estatura supralegal. Tal reconhecimento impõe aos tribunais nacionais o dever de interpretar normas processuais penais de forma compatível com os parâmetros internacionais de direitos humanos. Giacomolli (2016) destaca que qualquer restrição à liberdade deve ser criteriosamente fundamentada, sob pena de violação direta à legalidade e à proporcionalidade.
Embora seja amplamente reconhecido, o princípio da presunção de inocência encontra dificuldades práticas em sua aplicação. A frequente decretação da prisão preventiva, sem fundamentação adequada e desvinculada de elementos concretos, revela um cenário de fragilidade das garantias processuais. Botelho e Souza (2020) apontam que, muitas vezes, a prisão preventiva é utilizada como punição antecipada, contrariando frontalmente a lógica garantista da Constituição.
Não se pode ignorar a existência de um punitivismo difuso que contamina decisões judiciais, muitas vezes influenciadas por pressões sociais ou pela opinião pública. Esse fenômeno coloca em risco a imparcialidade dos julgadores e compromete o direito do réu a um processo justo. Gamboa Marques e Lourenço (2024) argumentam que, em diversos casos, a justificativa da "paz social" é usada para legitimar medidas autoritárias, disfarçando preconceitos e práticas discriminatórias.
A presunção de inocência, ao contrário do que se propaga, não impede a persecução penal nem favorece a impunidade. Ela apenas estabelece critérios rigorosos para a produção de provas e para a restrição de direitos fundamentais. Vasconcellos (2020) esclarece que a dúvida razoável deve beneficiar o acusado, sendo dever do Estado demonstrar, de forma inequívoca, a materialidade e a autoria delitivas.
Com efeito, a presunção de inocência se articula com a exigência de um padrão probatório elevado para a imposição de medidas cautelares e, principalmente, para a condenação penal. A relativização desse princípio mediante decisões genéricas e abstratas compromete a racionalidade do processo e enfraquece a legitimidade do sistema de justiça criminal. Massena (2021) observa que a ausência de critérios objetivos para a decretação da prisão preventiva contribui para decisões arbitrárias e inseguras.
A jurisprudência brasileira, embora reconheça formalmente a importância da presunção de inocência, tem oscilado em sua aplicação concreta, principalmente nas instâncias inferiores. Há decisões que banalizam a prisão preventiva e tratam a liberdade como exceção, invertendo a lógica constitucional. Borges de Sousa Filho (2022) ressalta que, para preservar a presunção de inocência, o julgador deve adotar o standard da prova além da dúvida razoável, como verdadeiro filtro de racionalidade.
A cultura jurídica brasileira ainda convive com resquícios do modelo inquisitório, em que a liberdade do acusado é vista com desconfiança, e a prisão preventiva é considerada uma ferramenta de contenção social. Esse paradigma se distancia da concepção moderna do processo penal, pautado pela proteção de direitos fundamentais. É necessário reeducar os operadores jurídicos para que compreendam a presunção de inocência como um princípio estruturante, e não como obstáculo à efetividade da justiça (ARAUJO, 2023 p.02).
Ao se permitir que a prisão cautelar substitua a investigação eficiente ou a apresentação de provas consistentes, esvazia-se o processo de sua função garantidora. A instrumentalização da prisão preventiva como resposta à ineficiência investigativa compromete não apenas a presunção de inocência, mas também a credibilidade do sistema de justiça. Postal e Silveira (2024) alertam para a ausência de prazos definidos na prisão preventiva, o que abre brechas para a perpetuação de detenções ilegais e injustificadas.
É indispensável, portanto, resgatar o verdadeiro significado do princípio da presunção de inocência, conferindo-lhe aplicação plena e efetiva. Isso implica reformular práticas judiciais, adotar critérios claros para a limitação de direitos e fortalecer a atuação das defensorias públicas e demais instituições garantidoras. Segundo Botelho e Souza (2020), o respeito à presunção de inocência é essencial para a preservação da democracia e para o combate a desigualdades estruturais no sistema penal.
A compreensão aprofundada desse princípio exige uma abordagem que vá além da literalidade da norma, alcançando sua dimensão axiológica e estrutural. Deve-se reconhecer que a presunção de inocência é mais que uma regra processual: trata-se de uma cláusula de contenção do poder punitivo e de preservação da dignidade humana. Araujo (2023) afirma que qualquer mitigação desse princípio, sem fundamentação constitucional, representa uma ameaça direta à estabilidade do Estado de Direito.
PRISÃO PREVENTIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A prisão preventiva configura-se como medida cautelar extrema no âmbito do processo penal, cuja finalidade principal reside na proteção da ordem pública, da instrução criminal e na garantia da aplicação da lei penal. Diferentemente da prisão decorrente de sentença condenatória definitiva, esta modalidade tem caráter provisório e deve estar amparada por requisitos estritos, sob pena de configurar abuso de poder. Para Giacomolli (2016), essa medida deve respeitar os princípios constitucionais do devido processo legal, da presunção de inocência e da proporcionalidade, exigindo do julgador cautela e fundamentação rigorosa.
O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 312, as hipóteses legais em que a prisão preventiva poderá ser decretada. Ainda que haja previsão normativa, a interpretação e aplicação desses dispositivos têm gerado controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, principalmente quanto ao uso excessivo dessa medida em detrimento de alternativas menos gravosas. Araujo (2023) afirma que a prisão preventiva tem sido aplicada com frequência como forma antecipada de punição, revelando uma distorção do seu real objetivo cautelar.
Na prática forense, observa-se que a fundamentação das decisões de prisão preventiva, por vezes, se dá de forma genérica e desvinculada de elementos concretos do caso. Isso compromete a lógica garantista do processo penal e evidencia um déficit democrático na atuação jurisdicional. De acordo com Botelho e Souza (2020), decisões baseadas em fórmulas padronizadas desrespeitam o direito à liberdade e à individualização da medida cautelar, tornando-se instrumentos de repressão indevida.
Um dos pontos mais sensíveis da discussão diz respeito à duração indeterminada da prisão preventiva, o que pode conduzir à sua transformação em verdadeira pena sem sentença condenatória. A ausência de um prazo legal máximo para essa modalidade de custódia cautelar é frequentemente criticada, tanto por estudiosos quanto por órgãos internacionais de direitos humanos. Postal e Silveira (2024) denunciam que essa lacuna legal facilita o arbítrio judicial, comprometendo a legalidade estrita exigida para restrições de liberdade.
Outro aspecto preocupante diz respeito ao impacto da prisão preventiva na formação de juízo condenatório antecipado, especialmente em contextos de vulnerabilidade social. A seletividade do sistema penal tende a incidir sobre grupos marginalizados, o que evidencia um viés estrutural que precisa ser enfrentado. Gamboa Marques e Lourenço (2024) ressaltam que a justificativa da “defesa da paz social” é frequentemente utilizada para legitimar prisões arbitrárias que reforçam padrões racistas e discriminatórios.
A aplicação da prisão preventiva deve se submeter a um rigoroso exame de necessidade, adequação e proporcionalidade, considerando sempre a possibilidade de medidas cautelares diversas, como o monitoramento eletrônico, recolhimento domiciliar ou proibição de contato com vítimas e testemunhas. A adoção de standards probatórios mais claros para a decretação da prisão preventiva, de modo a evitar decisões baseadas apenas em suposições ou conjecturas (MASSENA, 2021 p.05).
A exigência de motivação idônea e individualizada para a prisão preventiva representa um dos pilares da proteção dos direitos fundamentais no processo penal. Isso significa que o juiz deve demonstrar, com base em elementos concretos dos autos, que a medida é imprescindível para os fins cautelares propostos. Fachin (2020) sustenta que a atuação judicial deve estar vinculada à Constituição, sendo incompatível com decisões que relativizam garantias fundamentais com base em interesses difusos.
Além disso, a prisão preventiva não pode ser utilizada como forma de antecipar os efeitos da pena, nem como meio de obtenção de confissões ou cooperação por parte do investigado. A instrumentalização da custódia cautelar compromete o equilíbrio processual e fere diretamente a dignidade da pessoa humana. Vasconcellos (2020) enfatiza que o direito penal moderno deve se orientar pela racionalidade das provas e pelo respeito à liberdade como regra geral.
No contexto da persecução penal, a prisão preventiva deve ser compreendida como uma exceção, e não como um recurso ordinário ou reflexo de clamor público. A cultura de encarceramento preventivo compromete a legitimidade das instituições jurídicas e contribui para o agravamento do já superlotado sistema penitenciário brasileiro. Segundo Nardelli (2018), o papel do juiz é garantir que a prisão cautelar seja realmente necessária e proporcional aos riscos efetivamente apresentados.
Cabe observar que a jurisprudência dos tribunais superiores tem buscado, embora com oscilações, impor limites à prisão preventiva, exigindo fundamentações robustas e alertando para sua utilização como mecanismo de punição antecipada. Borges de Sousa Filho (2022) argumenta que a adoção de um padrão probatório elevado para decisões cautelares pode minimizar os riscos de arbitrariedade e reforçar o compromisso com o devido processo legal.
Embora a legislação ofereça um arcabouço teórico para aplicação da prisão preventiva, sua efetiva operacionalização depende de uma mudança cultural entre os operadores do direito. Juízes, promotores e defensores devem compreender essa medida como excepcional, adotando-a apenas quando não houver outra alternativa eficaz. Para Araujo (2023), a prisão preventiva deve ser um instrumento de proteção processual e não um reflexo de práticas inquisitórias ou de conveniências institucionais.
A construção de um processo penal democrático exige a superação de práticas autoritárias e a consolidação de uma mentalidade voltada à tutela dos direitos fundamentais. A prisão preventiva, embora legítima em certos contextos, deve ser permanentemente revista à luz de sua legalidade, necessidade e proporcionalidade. Giacomolli (2016) assevera que somente com a estrita observância dessas premissas será possível compatibilizar o uso da prisão cautelar com os princípios que sustentam o Estado Constitucional de Direito.
CONFLITO ENTRE A PRISÃO PREVENTIVA E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
O conflito entre a prisão preventiva e o princípio da presunção de inocência representa uma das tensões mais emblemáticas do processo penal contemporâneo. De um lado, está a necessidade de assegurar a ordem pública e a eficácia da persecução penal; de outro, o imperativo constitucional de tratar o réu como inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Para Giacomolli (2016), essa tensão só pode ser resolvida por meio da ponderação rigorosa de valores constitucionais, que deve sempre privilegiar a liberdade como regra e a restrição como exceção.
Embora a Constituição brasileira seja clara ao estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a realidade judiciária mostra que, muitas vezes, a prisão preventiva é utilizada como resposta antecipada à suposta prática delitiva. Segundo Botelho e Souza (2020), tal prática revela uma distorção dos objetivos da medida cautelar, transformando-a, na prática, em punição antecipada e negando a efetividade do princípio da presunção de inocência.
Esse conflito se intensifica diante do uso recorrente de fundamentos genéricos para justificar a prisão preventiva, como a necessidade de manutenção da ordem pública ou o risco abstrato de reiteração criminosa. Para Massena (2021), decisões fundamentadas em critérios subjetivos e imprecisos demonstram uma fragilidade argumentativa que afronta diretamente os direitos fundamentais do acusado e subverte a lógica do processo penal democrático.
Ao se permitir que um indivíduo seja privado de liberdade com base em elementos indiciários frágeis e sem a observância do devido processo legal, abre-se caminho para arbitrariedades. Fachin (2020) declara que o Supremo Tribunal Federal tem a responsabilidade de estabelecer parâmetros claros para evitar que a prisão preventiva seja decretada de forma indiscriminada, sobretudo quando há outras medidas cautelares disponíveis e menos gravosas.
Além disso, o conflito entre esses dois institutos revela um paradoxo jurídico: o réu, presumidamente inocente, encontra-se preso por tempo indefinido, muitas vezes sem sequer ter sido formalmente acusado. Borges de Sousa Filho (2022) sustenta que a ausência de um standard probatório elevado para a imposição da prisão preventiva agrava esse problema e gera insegurança jurídica no processo penal brasileiro.
As justificativas utilizadas para sustentar a prisão preventiva, em muitos casos, não resistem a uma análise crítica, especialmente quando se observam os impactos sociais dessas decisões. Gamboa Marques e Lourenço (2024) analisam como fatores como raça, classe e gênero influenciam a decretação da prisão cautelar, escancarando o caráter seletivo do sistema penal e o uso instrumental da prisão em contextos de exclusão social.
Outro ponto que agrava esse conflito é a indefinição legal quanto ao tempo máximo de duração da prisão preventiva. A falta de limites objetivos transforma essa medida em um cárcere prolongado, que desvirtua a função cautelar e passa a exercer efeito punitivo. Postal e Silveira (2024) denunciam que essa indeterminação favorece o arbítrio judicial e compromete seriamente o respeito às garantias constitucionais do acusado.
Na tentativa de mitigar o embate entre a prisão preventiva e a presunção de inocência, tem-se defendido a adoção de medidas alternativas mais eficazes e menos invasivas. O sistema deve buscar a racionalidade e a proporcionalidade na imposição de restrições, adotando critérios técnicos e objetivos que justifiquem de forma consistente a privação de liberdade (NARDELLI, 2018 p.04).
Cabe destacar que o princípio da presunção de inocência não é um obstáculo à persecução penal, mas sim um critério de contenção do poder punitivo, assegurando que as garantias individuais não sejam atropeladas por juízos precipitados. Para Vasconcellos (2020), é necessário um padrão probatório robusto, que leve em conta a dúvida razoável, de modo a evitar decisões arbitrárias que comprometam a imparcialidade do processo.
O uso da prisão preventiva como resposta imediata a crimes de grande repercussão ou de impacto social também alimenta esse conflito, pois o Judiciário, muitas vezes, cede a pressões externas em detrimento do respeito ao ordenamento jurídico. Araujo (2023) enfatiza que o clamor público não pode ser fundamento para a prisão cautelar, devendo prevalecer a legalidade e o controle jurisdicional sobre qualquer influência midiática.
Mesmo diante das reformas processuais, observa-se que a prática judicial ainda encontra dificuldades em conciliar as exigências constitucionais com a aplicação concreta das medidas cautelares. Isso exige um esforço de reeducação dos operadores do direito, que devem adotar uma postura crítica e garantista diante das decisões que afetam diretamente a liberdade do acusado. De acordo com Botelho e Souza (2020), o respeito ao princípio da presunção de inocência é condição essencial para um processo penal democrático e justo.
Somente com a adoção de uma cultura jurídica voltada para a proteção de direitos fundamentais será possível superar esse conflito histórico entre a prisão preventiva e a presunção de inocência. É imprescindível que o Judiciário atue com responsabilidade e fundamentação rigorosa, evitando abusos e garantindo a integridade do processo penal. Giacomolli (2016) defende que o controle das medidas cautelares deve ser constante, técnico e vinculado a princípios constitucionais, sob pena de o processo transformar-se em instrumento de opressão institucionalizada.
ALTERNATIVAS À PRISÃO PREVENTIVA: MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS
O ordenamento jurídico brasileiro, em consonância com o princípio da presunção de inocência, passou a prever um conjunto de medidas cautelares alternativas à prisão preventiva, como forma de preservar a liberdade do acusado sem comprometer os fins do processo penal. Essas medidas, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, oferecem opções menos gravosas que a reclusão, permitindo a compatibilização entre a proteção do processo e o respeito aos direitos fundamentais. Para Giacomolli (2016), essa previsão legal é um avanço democrático que exige aplicação criteriosa e individualizada por parte do juiz.
Entre as alternativas, destacam-se o comparecimento periódico em juízo, a proibição de acesso a determinados lugares, a proibição de manter contato com pessoas envolvidas no processo, o recolhimento domiciliar e o uso de monitoramento eletrônico. A adoção dessas medidas deve ser precedida de análise rigorosa quanto à sua adequação e suficiência diante do caso concreto. Botelho e Souza (2020) salientam que o uso dessas alternativas representa uma evolução do sistema cautelar, na medida em que evita o encarceramento desnecessário e reforça o compromisso com a proporcionalidade.
A aplicação das medidas cautelares diversas da prisão impõe ao Judiciário a responsabilidade de justificar sua escolha com base em dados objetivos, respeitando o devido processo legal. É necessário que o magistrado demonstre por que determinada medida é adequada para garantir o bom andamento do processo, evitando a adoção automática da prisão preventiva. Massena (2021) observa que, apesar da previsão legal, a cultura punitivista ainda leva muitos juízes a optarem pela prisão como primeira resposta, o que contraria os fundamentos da nova sistemática cautelar.
O uso de tornozeleiras eletrônicas, por exemplo, tem se mostrado eficaz em diversos contextos, oferecendo ao Estado um meio de fiscalizar o cumprimento das restrições impostas ao acusado sem privá-lo completamente de sua liberdade. Essa medida permite a manutenção dos vínculos familiares e laborais do investigado, favorecendo sua reintegração social. De acordo com Fachin (2020), medidas alternativas bem aplicadas contribuem significativamente para o equilíbrio entre segurança pública e direitos fundamentais.
Apesar das previsões normativas, ainda há uma resistência prática à utilização dessas medidas, motivada, muitas vezes, por desconfiança institucional ou pressão social por punição imediata. Esse comportamento compromete a credibilidade do sistema de justiça e agrava a superlotação carcerária. Araujo (2023) afirma que o encarceramento em massa é reflexo da negligência no uso de instrumentos legais disponíveis, especialmente quando as alternativas são ignoradas sem justificativa plausível.
O debate sobre a efetividade das medidas cautelares diversas da prisão também perpassa a necessidade de fortalecimento das estruturas institucionais responsáveis por sua fiscalização. A insuficiência de recursos humanos e materiais pode comprometer o sucesso da medida, gerando descrédito quanto à sua capacidade de atingir os fins propostos. É essencial que o Estado invista em mecanismos de controle e acompanhamento das medidas para evitar reincidência e garantir a eficácia da cautelar (POSTAL e SILVEIRA, 2024 p.03).
Não se pode ignorar que o uso dessas medidas representa, também, uma forma de combater as desigualdades do sistema penal, uma vez que a prisão preventiva atinge, de forma desproporcional, indivíduos em situação de vulnerabilidade. Gamboa Marques e Lourenço (2024) destacam que as decisões judiciais tendem a ser mais severas com réus negros, pobres e periféricos, o que revela um viés estrutural que pode ser mitigado pela adoção de medidas menos invasivas.
Para que as medidas cautelares diversas cumpram sua função de maneira eficiente, é imprescindível a capacitação contínua dos magistrados, promotores e defensores, com enfoque em práticas garantistas e respeito aos direitos humanos. O simples conhecimento das normas não é suficiente; é necessário compreender sua finalidade e aplicá-las com responsabilidade. Nardelli (2018) argumenta que a racionalidade decisional no processo penal depende da formação técnica e ética dos operadores do direito.
A utilização de medidas cautelares diversas deve ser acompanhada por um processo de monitoramento rigoroso, que assegure sua efetividade sem desrespeitar a dignidade do acusado. O desafio está em equilibrar os interesses da persecução penal com a necessidade de proteção à liberdade individual. Para Vasconcellos (2020), a adoção de critérios probatórios adequados na imposição de medidas é fundamental para evitar decisões baseadas apenas em percepções subjetivas.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem contribuído, ainda que timidamente, para a consolidação da aplicação dessas medidas, reafirmando a excepcionalidade da prisão preventiva e a obrigatoriedade da motivação fundamentada. Borges de Sousa Filho (2022) aponta que a doutrina da dúvida razoável deve ser observada tanto na condenação quanto na imposição de restrições cautelares, garantindo a coerência do sistema jurídico.
Mesmo diante das resistências institucionais, a previsão das medidas cautelares diversas representa um marco importante na humanização do processo penal brasileiro. A adoção dessas medidas, quando bem fundamentada e fiscalizada, reduz os danos sociais do encarceramento e fortalece o princípio da presunção de inocência. De acordo com Botelho e Souza (2020), o uso responsável dessas alternativas é indispensável para a construção de uma justiça penal mais justa e proporcional.
A efetividade dessas medidas depende, portanto, de uma atuação comprometida dos atores jurídicos e da construção de uma cultura jurídica que valorize a liberdade e reconheça o papel do Estado como garantidor de direitos, e não como mero executor de penas. Giacomolli (2016) declara que o sucesso das medidas alternativas está diretamente relacionado à capacidade do Judiciário de compreender a função cautelar como instrumento de equilíbrio e não como antecipação da pena, respeitando, assim, os fundamentos do Estado de Direito.
CONCLUSÃO
A análise desenvolvida ao longo do trabalho permitiu compreender com profundidade a tensão existente entre o princípio da presunção de inocência e a aplicação da prisão preventiva no processo penal brasileiro. A investigação teórica revelou que, embora a Constituição assegure o direito de todo acusado ser considerado inocente até decisão definitiva, a prática forense frequentemente relativiza esse preceito por meio da decretação desmedida da prisão cautelar. A pesquisa alcançou seu objetivo central ao demonstrar a necessidade de compatibilização entre esses institutos, preservando as garantias fundamentais sem comprometer a efetividade da justiça penal.
No decorrer do estudo, identificou-se que a utilização da prisão preventiva, em muitos casos, ocorre de forma genérica, desprovida de fundamentação concreta, o que resulta em evidente violação aos direitos do acusado. Esse cenário foi agravado pela ausência de critérios rígidos para a duração da custódia cautelar, além de uma cultura punitivista que ainda influencia boa parte das decisões judiciais. Tais constatações evidenciam que o problema de pesquisa é atual e relevante, justificando a urgência de reflexões e reformas institucionais mais eficazes.
Apesar das limitações inerentes a uma pesquisa bibliográfica, como a impossibilidade de coleta empírica de dados, o trabalho contribui significativamente para o debate acadêmico e jurídico, fornecendo fundamentos para a crítica à utilização abusiva da prisão preventiva. A investigação reafirma a importância da adoção de medidas cautelares alternativas como mecanismos mais adequados e proporcionais, especialmente quando bem fundamentadas e acompanhadas por controle judicial efetivo.
Sugere-se que futuras pesquisas explorem, de maneira empírica, a aplicação concreta das medidas cautelares diversas nos tribunais, bem como a atuação do sistema de justiça frente aos desafios de garantir uma persecução penal equilibrada e respeitosa das garantias constitucionais. O presente estudo, ao cumprir seus objetivos, contribui para o fortalecimento do Estado de Direito e para a construção de uma prática penal mais racional, equitativa e alinhada aos princípios democráticos.
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