Muitos aposentados e pensionistas se deparam com um desconto mensal em seu benefício identificado como "Empréstimo sobre a RMC" ou "Cartão RMC" e não compreendem sua origem. Trata-se de uma das práticas mais danosas e enganosas do mercado de crédito, que transforma o que parece ser um empréstimo consignado comum em uma dívida praticamente impagável. Para entender a ilegalidade, primeiro é preciso entender o mecanismo.
O que é a RMC (Reserva de Margem Consignável)?
Por lei, todo aposentado e pensionista do INSS possui uma "margem consignável", um percentual do seu benefício que pode ser comprometido com parcelas de empréstimos. Dentro dessa margem, há uma pequena fatia, de 5%, chamada Reserva de Margem Consignável (RMC). Essa reserva foi criada com um propósito específico: ser usada exclusivamente para o pagamento da fatura de um cartão de crédito consignado. Ou seja, se o aposentado optar por ter esse tipo de cartão, o valor mínimo da fatura pode ser descontado diretamente do seu benefício, limitado a esses 5%.
A Prática Abusiva: O Falso Empréstimo
A ilegalidade começa quando instituições financeiras se aproveitam dessa reserva para vender um produto completamente diferente do que o consumidor acredita estar contratando. O banco aborda o cliente, geralmente uma pessoa idosa e vulnerável, oferecendo um "empréstimo consignado" com liberação rápida de dinheiro. O que o consumidor não sabe é que ele não está assinando um contrato de empréstimo comum, com parcelas fixas e prazo para acabar.
Na realidade, o banco está:
Emitindo um Cartão de Crédito Consignado: Sem que o cliente peça ou, muitas vezes, sem que ele sequer receba o plástico do cartão, o banco emite um cartão em seu nome.
Lançando o "Empréstimo" como um Saque: O valor que o cliente recebe em sua conta não é um empréstimo, mas sim um saque (retirada) feito contra o limite total desse novo cartão de crédito.
Transformando as Parcelas em Pagamento Mínimo: O desconto mensal que aparece no benefício como "Empréstimo sobre a RMC" nada mais é do que o pagamento mínimo da fatura desse cartão de crédito.
Exemplo Prático: A Dívida que Nunca Acaba
Imagine a Sra. Maria, que recebe um benefício de R$ 2.000,00. Sua RMC (5%) é de R$ 100,00. Ela precisa de R$ 1.800,00 e aceita a oferta de um "empréstimo" do banco.
O que ela pensa que contratou: Um empréstimo de R$ 1.800,00, que será pago em cerca de 20 ou 24 parcelas de R$ 100,00, com juros baixos de consignado.
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O que o banco realmente fez: Emitiu um cartão de crédito com limite de, por exemplo, R$ 2.500,00. Lançou um saque de R$ 1.800,00 nesse cartão. Agora, a Sra. Maria tem uma dívida de R$ 1.800,00 no rotativo do cartão de crédito, cujos juros são absurdamente mais altos que os de um empréstimo consignado.
A Consequência: Os R$ 100,00 descontados mensalmente do benefício da Sra. Maria servem apenas para pagar os juros do rotativo e uma parte ínfima do valor principal. A dívida de R$ 1.800,00 mal diminui e, com o passar dos meses e anos, ela acaba pagando várias vezes o valor que pegou emprestado, sem nunca quitar o débito. É uma dívida perpétua.
Por que a Prática é Ilegal e Abusiva?
A ilegalidade dessa operação reside em diversos pontos, todos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC):
Violação do Dever de Informação (Art. 6º, III, do CDC): O consumidor é levado a erro, acreditando contratar um produto (empréstimo consignado) quando, na verdade, está aderindo a outro muito mais caro e complexo (cartão de crédito com saque). As informações não são claras, precisas e ostensivas.
Vantagem Manifestamente Excessiva (Art. 39, V, do CDC): A estrutura do negócio é montada para gerar um lucro desproporcional para o banco às custas do endividamento contínuo do consumidor, especialmente de pessoas vulneráveis que não possuem conhecimento financeiro para entender a armadilha.
Falta de Consentimento Válido: O cliente nunca consentiu em ter um cartão de crédito e uma dívida no rotativo. Seu consentimento foi para um empréstimo com condições completamente diferentes, o que vicia o negócio jurídico.
Essa prática se torna ainda mais grave por mirar, deliberadamente, em um público hipervulnerável: idosos, aposentados e pensionistas. Essas pessoas, muitas vezes com necessidades financeiras urgentes e menor familiaridade com produtos bancários complexos, confiam na instituição e são facilmente induzidas a erro. O resultado é a corrosão de uma parte significativa de sua renda, que deveria garantir seu sustento, para alimentar uma dívida que, na prática, foi desenhada para nunca ter fim. Por todas essas razões, o Poder Judiciário tem, reiteradamente, reconhecido a abusividade dessa prática, determinando a anulação do contrato de cartão e a readequação da dívida para as condições de um empréstimo consignado comum, com a devida reparação por danos morais.
Nesse sentido, decisão acertada do TJRJ:
"Apelação. Ação de revisão de contrato c.c. repetição de indébito, obrigação de fazer e indenizatória. Relação de consumo. Responsabilidade objetiva do banco réu. Empréstimo consignado na modalidade cartão de crédito.
Consumidor que pretende empréstimo pessoal é induzido a contratar serviço de cartão de crédito, com o valor mínimo fixo da fatura descontado diretamente em seu benefício previdenciário e juros superiores à média do mercado para empréstimo consignado, com taxas de anuidade e encargos rotativos, que fazem o saldo devedor aumentar, visto que não há termo final para quitação do débito.
Violação clara ao dever de informação. Onerosidade excessiva do consumidor. Violação da boa-fé objetiva e do disposto no art. 6º, incisos III e IV, e no art. 39, incisos IV e V, ambos do CDC. Prática abusiva.
Autora que jamais utilizou ou recebeu o cartão de crédito, o que demonstra a ausência de interesse na contratação de um empréstimo na modalidade cartão de crédito consignado.
Devolução dos valores eventualmente pagos a maior. Dano moral in re ipsa caracterizado. Ausência de comprovação de excludentes de nexo de causalidade pelo banco réu, nos termos do art. 14, § 3º, do CDC. Dever de indenizar caracterizado. Valor da indenização fixado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Provimento do recurso."
TJRJ. 08005139120238190205. J. em: 12/08/2024.