O futebol contemporâneo vive sob a sombra dos algoritmos e da especulação digital. Com a consolidação das apostas esportivas como um mercado bilionário e globalizado, o risco de manipulação de resultados tornou-se uma das maiores ameaças à integridade esportiva. Nesse cenário, a acusação contra o jogador brasileiro Lucas Paquetá ganhou contornos dramáticos e provocou debates profundos sobre os limites do poder investigativo das entidades esportivas, os direitos fundamentais dos atletas e a própria estrutura do sistema sancionatório esportivo.
A acusação e a Regra E5.1 da Football Association
A Football Association (FA), entidade máxima do futebol inglês, imputou a Paquetá quatro infrações à Regra E5.1 de sua normativa disciplinar. A acusação alegava que o jogador, durante partidas oficiais da Premier League — contra Leicester City (12/11/2022), Aston Villa (12/03/2023), Leeds United (21/05/2023) e AFC Bournemouth (12/08/2023) — teria buscado, de forma deliberada, receber cartões amarelos com o intuito de beneficiar indevidamente apostas previamente realizadas por terceiros, configurando manipulação de resultado para fins econômicos.
Trata-se, evidentemente, de uma das acusações mais graves que podem recair sobre um atleta profissional, pois atinge diretamente o princípio da lealdade esportiva, protegido internacionalmente pela Convenção de Macolin (adotada pelo Conselho da Europa e ratificada por diversos países), bem como por diretrizes da FIFA e da UEFA.
No Brasil, o tema é igualmente sensível. A Lei nº 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte) estabelece, em seu art. 193, inciso III, como infração disciplinar a manipulação de resultados com propósito de obtenção de vantagens econômicas. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) também trata do assunto, especialmente no art. 243-C.
A absolvição e a importância da prova
Contudo, ao final da instrução do procedimento disciplinar, a Comissão Reguladora da FA concluiu que não restaram comprovadas as infrações à Regra E5.1, absolvendo Paquetá das acusações relacionadas à manipulação de resultado. O fundamento foi direto: não houve prova suficiente de que o jogador atuou com dolo, nem de que houve vínculo direto entre seus atos e eventuais apostas realizadas.
A decisão representa um marco importante na reafirmação de um princípio essencial ao Estado de Direito — inclusive no âmbito esportivo: a presunção de inocência. Embora o ambiente das competições esportivas muitas vezes adote regras próprias de tramitação mais célere e flexível, não se pode ignorar que qualquer sanção imposta a um atleta tem potencial de afetar sua honra, reputação, carreira e patrimônio.
Logo, exige-se que a instrução probatória respeite critérios mínimos de contraditório, ampla defesa e carga probatória suficiente para a imposição de sanções. O processo disciplinar esportivo, embora não se confunda com o processo penal, deve guardar fidelidade ao que o jurista argentino Héctor Mairal denomina de "garantismo esportivo": a proteção mínima de direitos fundamentais em procedimentos sancionatórios.
A condenação pela violação da Regra F3
Por outro lado, Paquetá não saiu ileso. A Comissão considerou procedente a acusação de violação da Regra F3 da FA, segundo a qual o atleta tem o dever de cooperar integralmente com as investigações conduzidas pela entidade. Segundo a decisão, o jogador deixou de responder adequadamente às perguntas e não forneceu todas as informações requeridas no curso do processo investigativo, incorrendo em conduta considerada "obstrutiva".
Essa parte da decisão revela outro aspecto importante e cada vez mais relevante nas relações entre atletas e entidades: o dever de transparência e colaboração nas investigações internas, que se aproxima do que, no Brasil, tem sido chamado de dever de boa-fé processual (art. 5º do CPC). No contexto desportivo, porém, esse dever é ainda mais rígido, pois a recusa ou resistência em colaborar pode ser sancionada mesmo que a infração principal (como a manipulação de resultado) não se comprove.
Tal leitura, entretanto, deve ser feita com parcimônia. O dever de colaboração não pode suprimir os direitos de defesa e o direito ao silêncio — ainda que tais direitos tenham contornos específicos em procedimentos desportivos. É fundamental que as comissões reguladoras interpretem essas normas em harmonia com princípios gerais do direito, evitando transformar a exigência de cooperação em um mecanismo de coação indevida.
Reflexões finais
O caso Paquetá mostra, de forma emblemática, os desafios do Direito Desportivo diante da crescente profissionalização e mercantilização do esporte. Em um ambiente onde o capital financeiro das apostas cresce em velocidade superior à capacidade regulatória dos sistemas jurídicos nacionais, é preciso firmeza das entidades, mas também compromisso com o devido processo legal.
A absolvição do jogador quanto à acusação de manipulação deve ser lida como um gesto de maturidade institucional da FA. Já a sua condenação por obstrução revela que a era da informalidade acabou — o atleta profissional precisa compreender que sua conduta extrapola as quatro linhas e repercute juridicamente.
Por fim, a decisão contribui para fortalecer a jurisprudência desportiva no cenário internacional, demonstrando que o combate à corrupção esportiva deve ser feito com rigor técnico, respeito às garantias fundamentais e vigilância constante das partes interessadas: clubes, atletas, entidades e, sobretudo, a sociedade civil.