A decisão que absolveu Lucas Paquetá e os desafios do Direito Desportivo diante da era das apostas

03/08/2025 às 21:06

Resumo:


  • O jogador Lucas Paquetá foi acusado de manipulação de resultados em partidas da Premier League, mas foi absolvido pela Comissão Reguladora da FA por falta de provas de dolo.

  • A decisão reforça a importância da presunção de inocência e da garantia de direitos fundamentais no processo disciplinar esportivo.

  • No entanto, Paquetá foi condenado por obstrução à investigação da FA, destacando a necessidade de transparência e colaboração dos atletas em processos disciplinares.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O futebol contemporâneo vive sob a sombra dos algoritmos e da especulação digital. Com a consolidação das apostas esportivas como um mercado bilionário e globalizado, o risco de manipulação de resultados tornou-se uma das maiores ameaças à integridade esportiva. Nesse cenário, a acusação contra o jogador brasileiro Lucas Paquetá ganhou contornos dramáticos e provocou debates profundos sobre os limites do poder investigativo das entidades esportivas, os direitos fundamentais dos atletas e a própria estrutura do sistema sancionatório esportivo.

A acusação e a Regra E5.1 da Football Association

A Football Association (FA), entidade máxima do futebol inglês, imputou a Paquetá quatro infrações à Regra E5.1 de sua normativa disciplinar. A acusação alegava que o jogador, durante partidas oficiais da Premier League — contra Leicester City (12/11/2022), Aston Villa (12/03/2023), Leeds United (21/05/2023) e AFC Bournemouth (12/08/2023) — teria buscado, de forma deliberada, receber cartões amarelos com o intuito de beneficiar indevidamente apostas previamente realizadas por terceiros, configurando manipulação de resultado para fins econômicos.

Trata-se, evidentemente, de uma das acusações mais graves que podem recair sobre um atleta profissional, pois atinge diretamente o princípio da lealdade esportiva, protegido internacionalmente pela Convenção de Macolin (adotada pelo Conselho da Europa e ratificada por diversos países), bem como por diretrizes da FIFA e da UEFA.

No Brasil, o tema é igualmente sensível. A Lei nº 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte) estabelece, em seu art. 193, inciso III, como infração disciplinar a manipulação de resultados com propósito de obtenção de vantagens econômicas. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) também trata do assunto, especialmente no art. 243-C.

A absolvição e a importância da prova

Contudo, ao final da instrução do procedimento disciplinar, a Comissão Reguladora da FA concluiu que não restaram comprovadas as infrações à Regra E5.1, absolvendo Paquetá das acusações relacionadas à manipulação de resultado. O fundamento foi direto: não houve prova suficiente de que o jogador atuou com dolo, nem de que houve vínculo direto entre seus atos e eventuais apostas realizadas.

A decisão representa um marco importante na reafirmação de um princípio essencial ao Estado de Direito — inclusive no âmbito esportivo: a presunção de inocência. Embora o ambiente das competições esportivas muitas vezes adote regras próprias de tramitação mais célere e flexível, não se pode ignorar que qualquer sanção imposta a um atleta tem potencial de afetar sua honra, reputação, carreira e patrimônio.

Logo, exige-se que a instrução probatória respeite critérios mínimos de contraditório, ampla defesa e carga probatória suficiente para a imposição de sanções. O processo disciplinar esportivo, embora não se confunda com o processo penal, deve guardar fidelidade ao que o jurista argentino Héctor Mairal denomina de "garantismo esportivo": a proteção mínima de direitos fundamentais em procedimentos sancionatórios.

A condenação pela violação da Regra F3

Por outro lado, Paquetá não saiu ileso. A Comissão considerou procedente a acusação de violação da Regra F3 da FA, segundo a qual o atleta tem o dever de cooperar integralmente com as investigações conduzidas pela entidade. Segundo a decisão, o jogador deixou de responder adequadamente às perguntas e não forneceu todas as informações requeridas no curso do processo investigativo, incorrendo em conduta considerada "obstrutiva".

Essa parte da decisão revela outro aspecto importante e cada vez mais relevante nas relações entre atletas e entidades: o dever de transparência e colaboração nas investigações internas, que se aproxima do que, no Brasil, tem sido chamado de dever de boa-fé processual (art. 5º do CPC). No contexto desportivo, porém, esse dever é ainda mais rígido, pois a recusa ou resistência em colaborar pode ser sancionada mesmo que a infração principal (como a manipulação de resultado) não se comprove.

Tal leitura, entretanto, deve ser feita com parcimônia. O dever de colaboração não pode suprimir os direitos de defesa e o direito ao silêncio — ainda que tais direitos tenham contornos específicos em procedimentos desportivos. É fundamental que as comissões reguladoras interpretem essas normas em harmonia com princípios gerais do direito, evitando transformar a exigência de cooperação em um mecanismo de coação indevida.

Reflexões finais

O caso Paquetá mostra, de forma emblemática, os desafios do Direito Desportivo diante da crescente profissionalização e mercantilização do esporte. Em um ambiente onde o capital financeiro das apostas cresce em velocidade superior à capacidade regulatória dos sistemas jurídicos nacionais, é preciso firmeza das entidades, mas também compromisso com o devido processo legal.

A absolvição do jogador quanto à acusação de manipulação deve ser lida como um gesto de maturidade institucional da FA. Já a sua condenação por obstrução revela que a era da informalidade acabou — o atleta profissional precisa compreender que sua conduta extrapola as quatro linhas e repercute juridicamente.

Por fim, a decisão contribui para fortalecer a jurisprudência desportiva no cenário internacional, demonstrando que o combate à corrupção esportiva deve ser feito com rigor técnico, respeito às garantias fundamentais e vigilância constante das partes interessadas: clubes, atletas, entidades e, sobretudo, a sociedade civil.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos
Sobre o autor
Gustavo Lopes Pires de Souza

Doutor Honoris Causa pela Emil Brunner World University; Mestre em Direito Desportivo pela Universidade de Lérida (Espanha); MBA em Consultoria e Gestão Empresarial; Especialista em Gestão em Marketing Digital; Ouvidor pela Escola Nacional da Administração Pública; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo; Colunista; Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior; Professor em instituições de ensino nacionais e internacionais; Palestrante de eventos e conferências no Brasil, América Latina e Europa. - @gustavolpsouza

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos