Limites ao Poder Normativo dos Conselhos Profissionais: Legalidade, Proporcionalidade e o Risco da Regulação de Viés Corporativo

03/08/2025 às 17:34

Resumo:


  • Os conselhos profissionais exercem poder normativo, porém, este poder deve respeitar princípios como legalidade, proporcionalidade e liberdade profissional.

  • A atuação normativa dos conselhos profissionais deve ser submetida a controles jurídicos e institucionais rigorosos para proteger direitos fundamentais e a integridade do ordenamento jurídico.

  • Resoluções que impõem limites assistenciais, como a Resolução COFFITO nº 444/2014 e a Resolução COFEN nº 661/2021, levantam questões sobre sua compatibilidade com a legalidade, proporcionalidade e razoabilidade, além de evidenciar riscos de regulação corporativa.

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Limites ao Poder Normativo dos Conselhos Profissionais: Legalidade, Proporcionalidade e o Risco da Regulação de Viés Corporativo

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor da UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-SP

Resumo

Este artigo analisa os limites jurídicos do poder normativo exercido por conselhos profissionais à luz da Constituição Federal, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). A partir da análise de resoluções que impõem parâmetros assistenciais obrigatórios — como a Resolução COFFITO nº 444/2014 e a Resolução COFEN nº 661/2021 —, discute-se a compatibilidade dessas normas com os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da razoabilidade e da liberdade profissional. O estudo também distingue o regime jurídico dos conselhos profissionais do das agências reguladoras e evidencia os riscos da regulação de viés corporativo. Conclui-se que a atuação normativa desses órgãos deve submeter-se a controles jurídicos e institucionais mais rigorosos, a fim de resguardar direitos fundamentais e a integridade do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Conselhos profissionais. Poder normativo. Legalidade. Proporcionalidade. Regulação corporativa.

Abstract

This article examines the legal limits of the regulatory powers exercised by professional councils under the Brazilian Federal Constitution, the Law of Introduction to the Rules of National Law (LINDB). By analyzing resolutions that impose mandatory service parameters—such as COFFITO Resolution No. 444/2014 and COFEN Resolution No. 661/2021—the study assesses the compatibility of such norms with the principles of legality, proportionality, reasonableness, and professional freedom. It also distinguishes the legal framework of professional councils from that of regulatory agencies and highlights the risks of corporatist regulation. The article concludes that the normative actions of these entities must be subject to stricter legal and institutional oversight to safeguard fundamental rights and uphold the rule of law.

Keywords: Professional councils. Regulatory power. Legality. Proportionality. Corporatist regulation.

Sumário: 1. Introdução: o poder normativo dos conselhos e sua crescente expansão. 2. O papel jurídico dos conselhos de classe no Estado brasileiro. 3. Legalidade administrativa e reserva de lei: limites constitucionais à atuação normativa. 4. O princípio da liberdade profissional e os riscos de restrição por normas infralegais. 5. Resoluções que impõem limites assistenciais: panorama comparado (COFFITO, COFEN etc.). 6. A LINDB e o dever de motivação, proporcionalidade e análise de consequências normativas. 7. A responsabilidade desproporcional do profissional e o risco de captura regulatória. 8. A distinção entre conselhos de classe e agências reguladoras: regimes jurídicos distintos. 9. Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre os limites do poder normativo. 10. A sindicabilidade judicial e o controle externo das resoluções dos conselhos. 11. Conclusão: em defesa de um modelo de regulação técnica democrático, legal e proporcional. Referências

1. Introdução: o poder normativo dos conselhos e sua crescente expansão

A Constituição Federal brasileira estabeleceu, em seu art. 5º, inciso XIII, a liberdade profissional como direito fundamental, ao mesmo tempo em que previu, no art. 5º, inciso II, e no art. 37, caput, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, impondo à Administração Pública o dever de atuação conforme os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Nesse contexto, os conselhos profissionais ocupam posição singular na estrutura administrativa brasileira: são autarquias corporativas criadas por lei, incumbidas de fiscalizar o exercício de profissões regulamentadas e de zelar pela ética profissional. Não obstante, observa-se uma expansão significativa do poder normativo desses órgãos nas últimas décadas, com a edição de resoluções que impõem obrigações, restrições e parâmetros vinculantes ao exercício profissional — muitas vezes sem respaldo em lei formal, nem análise pública de impacto regulatório.

Entre essas normas, destacam-se aquelas que limitam numericamente a quantidade de pacientes que um profissional pode atender por turno de trabalho, sob a justificativa de proteção da qualidade assistencial e da saúde do trabalhador. É o caso da Resolução COFFITO nº 444/2014, que impõe parâmetros máximos para fisioterapeutas, e da Resolução COFEN nº 661/2021, que estabelece limite de classificações de risco por hora para enfermeiros.

Essas resoluções suscitam questões jurídicas relevantes: podem conselhos profissionais, por meio de resolução infralegal, impor deveres funcionais e limites quantitativos ao exercício de atividades profissionais? Tais normas respeitam os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade? Há fundamento legal suficiente para tais restrições? Qual o papel da LINDB e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) diante desse cenário?

Este artigo se propõe a responder essas perguntas, examinando os fundamentos jurídicos que limitam a função normativa dos conselhos profissionais e analisando criticamente os efeitos dessas resoluções sobre a liberdade profissional, a segurança jurídica, o equilíbrio institucional e a racionalidade da Administração Pública. Parte-se da premissa de que a técnica, por mais especializada que seja, não está imune ao controle jurídico — e que a regulação infralegal deve respeitar os fundamentos constitucionais e legais do Estado de Direito, sob pena de se converter em instrumento de autoritarismo normativo e favorecimento corporativo.

2. O papel jurídico dos conselhos de classe no Estado brasileiro

Os conselhos profissionais, também denominados conselhos de classe, são entidades singulares na estrutura da Administração Pública brasileira. Instituídos por lei específica, organizam-se como autarquias corporativas, dotadas de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e competência legal para fiscalizar o exercício de profissões regulamentadas.

Não se pode perder de vista que conselhos profissionais são entidades públicas de natureza autárquica, e não associações privadas representativas de categorias. O papel institucional dos conselhos, segundo a Corte, é zelar pela proteção da sociedade e pela fiscalização da atividade profissional, e não defender os interesses corporativos da classe.

Essa distinção é crucial: o conselho profissional não é sindicato, nem agência reguladora. Sua legitimidade normativa decorre estritamente da função legal de disciplinar o exercício de determinada profissão e de coibir práticas lesivas à ética profissional e à coletividade. Qualquer atuação que extrapole esses limites configura desvio de finalidade administrativa, o que atrai a sindicância do Poder Judiciário e o controle dos órgãos externos de fiscalização.

Apesar disso, verifica-se na prática a ampliação do escopo normativo desses órgãos, que passaram a editar resoluções com pretensão de disciplinar não apenas condutas éticas, mas também parâmetros técnicos assistenciais, regras de conduta funcional, metas quantitativas e diretrizes operacionais, inclusive com caráter coercitivo. Trata-se de um processo de hipertrofia da função normativa infralegal, que, embora revestido de linguagem técnica, afeta diretamente direitos fundamentais, o mercado de trabalho, a organização de serviços públicos e privados e a autonomia profissional.

Essa tendência enseja o questionamento: qual é o limite jurídico do poder normativo dos conselhos de classe? A resposta, como se demonstrará nos tópicos seguintes, encontra-se nos princípios constitucionais da legalidade e da reserva de lei, bem como na jurisprudência consolidada dos tribunais superiores e nos comandos imperativos da LINDB.

3. Legalidade administrativa e reserva de lei: limites constitucionais à atuação normativa

A Constituição da República estabelece, em seu art. 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Trata-se da cláusula geral de legalidade, que vincula não apenas o particular, mas também o Poder Público, especialmente quando este atua na imposição de deveres ou restrições à liberdade individual.

No âmbito da Administração Pública, o art. 37, caput, reforça a exigência de que toda ação estatal seja pautada pela legalidade estrita, ou seja, só é lícito ao agente público fazer aquilo que a lei expressamente autoriza. Assim, ao contrário dos particulares, que podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração está limitada ao que a lei permite.

No caso dos conselhos profissionais, essa exigência se torna ainda mais intensa. Por se tratarem de autarquias dotadas de poder disciplinar e normativo, qualquer inovação jurídica que restrinja ou condicione o exercício profissional somente pode decorrer de lei formal, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República.

Aplicando esse entendimento ao caso das resoluções que impõem limites de atendimentos por turno, como a Resolução COFFITO nº 444/2014 ou a Resolução COFEN nº 661/2021, observa-se que tais normas, ao estabelecerem obrigações funcionais com caráter impositivo, criam deveres novos no ordenamento jurídico, afetando diretamente o livre exercício profissional e sujeitando o descumprimento a sanções éticas.

Ora, se a Constituição exige lei formal para condicionar o exercício profissional, e se o STF reconhece que resolução de conselho não pode inovar em matéria restritiva, conclui-se que as referidas normas são materialmente ilegais e formalmente inconstitucionais.

Não basta, portanto, que a norma seja técnica, nem que tenha sido editada por órgão com suposta competência disciplinar. A legitimidade da regulação administrativa exige base legal prévia, clara e específica — condição que não se verifica nas resoluções analisadas. A ausência de lei que ampare a imposição de limites quantitativos transforma essas resoluções em atos administrativos normativos inválidos, vulneráveis ao controle judicial e administrativo.

4. O princípio da liberdade profissional e os riscos de restrição por normas infralegais

A liberdade profissional é consagrada pela Constituição Federal como direito fundamental, nos termos do art. 5º, inciso XIII:

“É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.”

Esse dispositivo consagra um regime jurídico de liberdade qualificada: o Estado pode restringir o exercício de determinadas profissões, mas somente por meio de lei e apenas para proteção de interesse público relevante, como a segurança, a saúde ou a ordem pública.

É bem de ver que as restrições ao exercício profissional devem sempre decorrer de previsão legal formal e que normas infralegais não podem, por si sós, condicionar o acesso ou o exercício de uma profissão regulamentada. Nesse julgado, discutiu-se a exigência de formação superior para o exercício da atividade de jornalista — e o STF entendeu que, mesmo quando presente um suposto interesse público, a restrição só poderia ser legítima se fundada em lei.

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O princípio da liberdade profissional, portanto, impõe limites ao poder regulatório dos conselhos de classe, especialmente quando este se exerce por meio de resoluções que criam, ampliam ou restringem o conteúdo do dever funcional do profissional regulamentado. E esse é exatamente o caso de normas como a Resolução COFFITO nº 444/2014 e a Resolução COFEN nº 661/2021.

Essas normas, embora se apresentem sob a roupagem de “parâmetros assistenciais”, estabelecem limites máximos de pacientes que podem ser atendidos por turno, transformando-se, na prática, em limitações normativas à prestação do serviço. Mais do que recomendar boas práticas clínicas, as resoluções impõem obrigações coercitivas cuja inobservância pode acarretar sanções éticas e administrativas.

Ora, ao fixar quantidades máximas de atendimentos, independentemente das condições reais de cada serviço de saúde, essas normas atuam como restrições genéricas à autonomia profissional. Em vez de proteger o profissional, acabam por enquadrá-lo em limites arbitrários, sem qualquer respaldo legal específico, e em muitos casos, sem que ele tenha controle sobre as variáveis organizacionais que determinam sua agenda de atendimentos.

Essa situação afeta o núcleo essencial da liberdade profissional, pois impõe dever funcional sem base legal e condiciona o exercício da atividade a fatores alheios à vontade ou à responsabilidade do profissional. Além disso, ao penalizar o indivíduo — e não a instituição que organiza a assistência —, a norma inverte a lógica da responsabilidade organizacional, criando uma assimetria jurídica injustificável, como será analisado adiante.

Em síntese, normas infralegais que fixam limites obrigatórios à atuação do profissional, sem previsão legal formal e sem ponderação proporcional com os demais princípios constitucionais, restringem indevidamente a liberdade profissional, sendo, portanto, inconstitucionais por vício material e formal.

5. Resoluções que impõem limites assistenciais: panorama comparado (COFFITO, COFEN etc.)

Embora o caso da Resolução COFFITO nº 444/2014 seja um dos mais emblemáticos, ele não constitui fato isolado. Outros conselhos profissionais também vêm editando normas infralegais que impõem limitações assistenciais numéricas, sob pretexto de proteção à qualidade do atendimento ou da saúde do trabalhador. Tais normas possuem efeitos jurídicos relevantes e geram preocupações semelhantes quanto à sua constitucionalidade e legalidade.

5.1. Resolução COFFITO nº 444/2014

A Resolução COFFITO nº 444/2014 fixa parâmetros máximos de atendimentos por turno de seis horas, como forma de garantir qualidade, ética e segurança ao trabalho fisioterapêutico. Entretanto, não há na Lei nº 6.316/1975 — que disciplina o exercício da profissão de fisioterapeuta e cria o COFFITO — qualquer previsão legal de que o conselho possa limitar o número de atendimentos por norma infralegal.

Além disso, a norma transfere a obrigação de cumprir os parâmetros exclusivamente ao profissional, sem considerar a organização do serviço de saúde em que ele atua, seja este público ou privado. A responsabilização disciplinar decorre, portanto, de uma estrutura que frequentemente escapa ao controle do fisioterapeuta, o que evidencia uma profunda disfunção normativa.

5.2. Resolução COFEN nº 661/2021

Editada pelo Conselho Regional de Enfermagem de Rondônia, essa resolução estabelece que o enfermeiro responsável pela classificação de risco em unidades de urgência e emergência deve realizar no máximo 15 classificações por hora, o que equivale a um tempo médio de quatro minutos por paciente.

Tal norma, embora justificada por razões de segurança do paciente e proteção do trabalhador, impõe um limite rígido e abstrato, que ignora as variações clínicas, estruturais e operacionais dos diferentes contextos de atendimento. Novamente, a norma é editada sem base legal formal e pretende obrigar o profissional a cumprir um parâmetro técnico sem garantia de que o serviço lhe oferecerá os meios para tanto.

5.4. Padrões comuns e riscos estruturais

Apesar das diferenças formais, essas resoluções apresentam padrões comuns que justificam um alerta jurídico:

  • Ausência de previsão legal específica para impor limites obrigatórios de atendimentos;

  • Criação de dever funcional com sanção ética, por ato infralegal;

  • Desconsideração das realidades clínicas, regionais e organizacionais dos serviços de saúde;

  • Transferência de responsabilidade ao profissional, sem considerar os limites institucionais de sua atuação;

  • Risco de captura regulatória, com expansão do mercado de trabalho por vias indiretas.

Esses fatores revelam um modelo regulatório que extrapola o papel institucional dos conselhos profissionais, criando normas com pretensão de obrigatoriedade sem o devido processo legislativo e sem controle técnico e jurídico adequado.

Na próxima seção, examinaremos como a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) exige motivação técnica e análise das consequências jurídicas e práticas desses atos normativos, e como sua inobservância compromete a validade jurídica dessas resoluções.

6. A LINDB e o dever de motivação, proporcionalidade e análise de consequências normativas

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), especialmente após as alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018, consolidou um microssistema jurídico de responsabilização institucional e racionalidade decisória da Administração Pública, com aplicação direta a atos normativos infralegais de alcance geral, como as resoluções de conselhos profissionais.

Dentre os dispositivos relevantes, destacam-se os arts. 20, 21 e 22 da LINDB, que inauguram um novo paradigma de controle jurídico da normatização administrativa, baseado em critérios de motivação, racionalidade prática, transparência e responsabilidade regulatória.

6.1. O art. 20 da LINDB e o dever de motivação com base em consequências práticas

O art. 20 da LINDB dispõe:

“Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”

Esse dispositivo exige que o agente público, ao editar normas infralegais, explicite os efeitos concretos esperados, considerando o impacto da medida sobre os sujeitos regulados, a viabilidade de sua implementação e as condições reais do ambiente institucional em que a norma será aplicada.

No caso das resoluções que impõem limites quantitativos de atendimento por turno — como a Resolução COFFITO nº 444/2014 e a Resolução COFEN nº 661/2021 — não há qualquer exposição ou mensuração das consequências práticas da imposição normativa, tampouco evidência de que os profissionais disporão dos meios necessários para atender aos padrões fixados.

Não há, por exemplo, análise de impacto regulatório (AIR), estudo técnico de viabilidade, consulta pública ou documentação que comprove que a norma foi concebida a partir de dados empíricos e análise de custo-benefício institucional. A ausência desses elementos viola frontalmente o art. 20 da LINDB, tornando a resolução vulnerável ao controle de legalidade e à invalidação judicial.

6.2. O art. 21 da LINDB e a exigência de responsabilidade regulatória

O art. 21 estabelece:

“A edição de atos normativos por órgãos da administração pública deverá ser acompanhada de exposição explícita de motivos que justifiquem a adoção da medida e demonstrem a conformidade do ato com as normas legais e regulatórias aplicáveis.”

Trata-se de uma norma de conteúdo ético-administrativo e técnico, que impõe ao órgão regulador o dever de demonstrar o nexo entre a norma e seu fundamento legal, bem como as razões pelas quais determinada medida foi considerada a mais adequada à finalidade pública.

Ao criar regras vinculantes, conselhos de classe devem explicitar a base jurídica da restrição e indicar por que a imposição de limites quantitativos seria a única ou a melhor forma de garantir qualidade assistencial. Nenhuma das resoluções examinadas atende a esse requisito. Não há justificativa baseada em estudo técnico, análise epidemiológica, parâmetros comparativos ou pareceres de impacto operacional. O conteúdo normativo é apresentado como imperativo técnico-descritivo, sem base legal formal e sem demonstração de necessidade ou adequação.

6.3. O art. 22 da LINDB e a consideração das dificuldades reais dos profissionais

Por fim, o art. 22 da LINDB impõe:

“Na aplicação de sanções, os agentes públicos devem considerar os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas sob sua responsabilidade.”

Embora originalmente concebido para orientar a aplicação de sanções a gestores públicos, esse preceito também é aplicável à atividade sancionatória de conselhos profissionais, quando se voltam contra os próprios profissionais da categoria.

Aplicar sanção disciplinar a um fisioterapeuta ou enfermeiro que ultrapassa o limite de atendimentos, sem considerar que ele não detinha controle sobre a agenda, nem autonomia para se opor à imposição institucional, viola o dever de ponderação imposto pela LINDB. Trata-se de responsabilização desproporcional, que ignora os condicionantes operacionais do exercício profissional — e, portanto, macula o processo administrativo disciplinar com vício de legalidade material.

7. A responsabilidade desproporcional do profissional e o risco de captura regulatória

Um dos efeitos mais graves das resoluções analisadas é a inversão da lógica da responsabilidade administrativa, com a transferência do ônus da conformidade regulatória ao profissional, e não à instituição que estrutura o serviço de saúde. Ao fazê-lo, a norma penaliza o elo mais fraco da cadeia prestacional, criando um modelo de responsabilização injusto, desproporcional e ineficaz.

Fisioterapeutas, enfermeiros e outros profissionais da saúde frequentemente não possuem poder diretivo, autonomia organizacional ou autoridade para recusar atendimentos em excesso, sobretudo quando inseridos em sistemas hierarquizados, como o SUS, clínicas privadas, cooperativas ou hospitais.

Contudo, são eles os alvos de sanções ético-disciplinares por supostamente descumprirem as resoluções que impõem limites quantitativos. As instituições — públicas ou privadas — permanecem imunes à responsabilização, mesmo sendo as verdadeiras organizadoras da jornada de trabalho e da agenda assistencial.

Esse modelo de responsabilização assimétrica contraria o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CF), pois trata de forma igual agentes que estão em posições materiais e funcionais desiguais. Também viola o art. 22 da LINDB, que exige a consideração das condições reais do exercício da função.

Mais do que isso, essa dinâmica normativo-disciplinar pode revelar um viés de captura regulatória, no qual a norma não atua em favor do interesse público, mas sim como instrumento de proteção mercadológica da categoria profissional — ainda que à custa de seus próprios membros mais vulneráveis. A imposição de limites de atendimentos, ao tornar economicamente inviável a manutenção de estruturas enxutas, pode gerar indiretamente demanda por mais profissionais, promovendo, por vias transversas, a expansão do mercado de trabalho da categoria — ainda que sob o custo de insegurança jurídica, sanções injustas e encarecimento dos serviços.

Nesse contexto, a regulação não é neutra: ela produz efeitos distributivos, impõe custos e transfere riscos. Por isso, sua conformidade com os princípios da proporcionalidade e da legalidade não é apenas requisito técnico, mas condição ética e constitucional de validade normativa.

8. A distinção entre conselhos de classe e agências reguladoras: regimes jurídicos distintos

Um argumento frequentemente invocado para legitimar o poder normativo dos conselhos profissionais é a analogia com as agências reguladoras, que também editam resoluções técnicas com eficácia cogente. Contudo, essa comparação é equivocada do ponto de vista jurídico e institucional.

As agências reguladoras — como ANVISA, ANATEL, ANS, ANEEL, entre outras — são autarquias sob regime especial, criadas por lei específica, com competência explícita para editar normas técnicas de caráter vinculante, nos termos do art. 174 da Constituição Federal e da legislação setorial que lhes confere poder regulatório. Sua atuação é precedida, em regra, por processos formais de análise de impacto regulatório (AIR), consulta pública, participação social e controle de legalidade por tribunais de contas e pelo Congresso Nacional.

Já os conselhos profissionais não gozam do mesmo regime jurídico. Embora também sejam autarquias, sua função principal é fiscalizatória e disciplinar, e não regulatória. É cediço que conselhos não são agências reguladoras e não podem atuar como defensores corporativos da categoria profissional. Sua atuação deve estar voltada à proteção da sociedade e ao zelo pela ética no exercício profissional — e não à regulação de mercado, à estruturação da assistência ou à imposição de parâmetros técnicos abstratos.

Assim, os conselhos não detêm autorização legal para substituir a função legislativa, nem para exercer competência normativa plena. Suas resoluções devem limitar-se à execução da lei, jamais à sua complementação substancial. Qualquer extrapolação desse limite sujeita o ato normativo ao controle judicial por inconstitucionalidade ou ilegalidade, conforme reiterada jurisprudência dos tribunais superiores.

9. Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre os limites do poder normativo

A jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça impõe freios claros à atuação normativa de conselhos e órgãos administrativos, especialmente quanto à vedação à inovação jurídica por ato infralegal.

No julgamento da ADI 1717/DF, o STF declarou inconstitucional resolução do COFECI que criava obrigações não previstas na lei de regência. A Corte reafirmou que resolução de conselho profissional não pode criar dever jurídico novo. Apenas leis podem inovar na ordem jurídica. O STF destacou que:

“O exercício de poder regulamentar se limita à fiel execução da lei, sem possibilidade de inovação.”

A decisão aplica-se por analogia direta às resoluções do COFFITO e do COFEN que impõem limites de atendimentos, pois não se baseiam em qualquer comando legal específico e vinculam de modo coercitivo o exercício profissional.

No REsp 1.969.812/MG, o STJ anulou norma infralegal da CNRM por impor deveres não previstos na Lei nº 6.932/81. A Min. Nancy Andrighi afirmou:

“Ato normativo não pode inovar no ordenamento jurídico. Isto é, não pode, por exemplo, impor obrigações ou penalidades não previstas em lei, sob pena de violação ao art. 5º, II e 37, caput, da CF.”

Tal precedente reforça o entendimento de que a mera competência técnica do órgão regulador não substitui o dever de agir dentro dos limites legais formais, sob pena de usurpação da função legislativa.

Esses julgados revelam a seguinte linha jurisprudencial:

  • Resoluções de conselhos não podem criar obrigações autônomas;

  • A legalidade e a reserva de lei são princípios inafastáveis;

  • A tecnicidade da norma não afasta sua sindicabilidade judicial;

  • A ausência de amparo legal formal torna o ato normativo inválido.

Com base nessa jurisprudência, constata-se que as resoluções que impõem limites de atendimentos obrigatórios a fisioterapeutas, enfermeiros e demais profissionais extrapolam sua função regulamentar e devem ser invalidadas judicialmente.

10. A sindicabilidade judicial e o controle externo das resoluções dos conselhos

O exercício do poder normativo por conselhos profissionais, ainda que em matéria técnica, não escapa ao controle judicial. Essa é uma premissa essencial do Estado Democrático de Direito: todo ato administrativo, inclusive normativo, está sujeito à sindicabilidade jurisdicional. Não há zonas de exclusão da legalidade sob o pretexto de tecnicidade.

Não se pode deixar de concluir que que resoluções de conselhos profissionais que inovam no ordenamento jurídico sem amparo em lei são inconstitucionais, mesmo que se apresentem como medidas de proteção ética ou técnica. Não cabe à Administração Pública — nem mesmo a órgãos especializados — criar obrigações, deveres ou restrições sem previsão legal formal.

A resolução é espécie de ato administrativo normativo que complementa e explicita a norma legal, expressando o mandamento abstrato da lei, sem poder contrariá-la, restringi-la, ampliá-la ou inová-la, pois o ordenamento pátrio não permite que atos normativos infralegais inovem originalmente o sistema jurídico

Em suma, resolução de conselho profissional não pode impor obrigação inexistente na legislação de regência, sendo passível de nulidade ato normativo de conselho que fixava dever funcional sem amparo legal, reforçando-se, por conseguinte, a assertiva de que o poder regulamentar não autoriza inovação legislativa.

Além do controle judicial, essas resoluções estão sujeitas a fiscalização administrativa e financeira pelos Tribunais de Contas, ao controle social por meio de audiências públicas e consultas regulatórias, e à atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública, especialmente quando os efeitos da norma atingem coletividades vulneráveis.

No campo da saúde, as resoluções que impõem padrões assistenciais rígidos e abstratos — sem considerar a realidade estrutural dos serviços, nem a autonomia do profissional — podem gerar responsabilização por omissão de impacto regulatório, por lesão a direitos fundamentais ou por violação a princípios constitucionais da Administração Pública. A tecnicidade do conteúdo normativo não blinda o ato contra a invalidação judicial, sobretudo quando ele compromete garantias fundamentais como a liberdade profissional, a isonomia e a legalidade estrita.

Por essa razão, a atuação normativa dos conselhos deve ser objeto de maior vigilância institucional, com exigência de motivação clara, estudo técnico fundamentado, participação social e conformidade legal — sob pena de conversão do poder disciplinar em instrumento de controle autoritário e captura corporativa.

11. Conclusão: em defesa de um modelo de regulação técnica democrático, legal e proporcional

O poder normativo dos conselhos profissionais cumpre papel relevante no ordenamento jurídico, especialmente no que toca à organização ética e disciplinar do exercício das profissões regulamentadas. No entanto, como demonstrado ao longo deste estudo, esse poder não é absoluto, tampouco ilimitado: ele deve ser estritamente vinculado à lei, proporcional em seus efeitos e compatível com os direitos fundamentais.

Resoluções como a do COFFITO nº 444/2014 e do COFEN nº 661/2021 revelam uma tendência preocupante de expansão da função normativa infralegal, com imposição de parâmetros assistenciais coercitivos, restrição à liberdade profissional e transferência injusta de responsabilidades aos profissionais da base da cadeia prestacional.

Tais normas não encontram amparo em lei formal, não apresentam justificativa técnica transparente nem análise de impacto regulatório, e violam os preceitos estabelecidos pela LINDB quanto à motivação e às consequências práticas das decisões administrativas.

O risco é que, sob o pretexto de garantir qualidade assistencial, tais resoluções sirvam à proteção de interesses corporativos, contribuindo para a expansão artificial do mercado de trabalho, a penalização de profissionais vulneráveis e o encarecimento dos serviços de saúde. Trata-se de um modelo de regulação que, em vez de servir ao interesse público, opera de forma autorreferente e potencialmente arbitrária.

Por essas razões, impõe-se uma revisão crítica da atuação normativa dos conselhos profissionais, com reforço dos mecanismos de controle externo, transparência institucional e responsabilização por eventuais abusos normativos. O compromisso com a técnica não pode servir de álibi para o afastamento do Direito. A racionalidade administrativa, no Estado Constitucional, exige legalidade, proporcionalidade e respeito à liberdade profissional como pilares inegociáveis de qualquer regulação legítima.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.

BRASIL. Lei nº 6.316, de 17 de dezembro de 1975. Dispõe sobre a criação dos Conselhos Federal e Regionais de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 dez. 1975.

BRASIL. Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. Acrescenta dispositivos à LINDB sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 abr. 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717-6/DF. Relator: Ministro Sydney Sanches. Julgado em 07 nov. 2002. Publicado no DJ de 28 mar. 2003.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 704.292/PR. Relator: Ministro Dias Toffoli. Julgado em 30 jun. 2016. Publicado no DJe de 19 out. 2016.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.969.812/MG. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 15 mar. 2022. Publicado no DJe de 21 mar. 2022.

CONSELHO FEDERAL DE FISIOTERAPIA E TERAPIA OCUPACIONAL – COFFITO. Resolução nº 444, de 20 de maio de 2014. Estabelece parâmetros assistenciais na Fisioterapia. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 maio 2014.

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM – COFEN. Resolução nº 661, de 2021. Estabelece parâmetros para classificação de risco por enfermeiros. Disponível em: https://www.cofen.org.br. Acesso em: 2 ago. 2025.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

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