Concorrência predatória na era digital: desafios contemporâneos e a atuação do CADE
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor da UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e em Compliance (FGV-SP)
Resumo
Este artigo analisa a intensificação da concorrência predatória no ambiente digital, com enfoque na atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) à luz da Lei nº 12.529/2011 e dos desafios regulatórios impostos pelos mercados digitais. Argumenta-se que a transformação estrutural da economia, impulsionada por plataformas escaláveis, capital de risco e efeitos de rede, ampliou as possibilidades de práticas excludentes baseadas na fixação artificial de preços abaixo do custo. A análise demonstra que, embora o ordenamento jurídico brasileiro disponha de instrumentos normativos adequados, a caracterização da concorrência predatória exige prova robusta da intenção excludente, capacidade financeira e expectativa de compensação futura. O texto também aponta a necessidade de aperfeiçoamento institucional e metodológico por parte do CADE, diante das assimetrias regulatórias e das novas formas de dano concorrencial. Conclui-se pela urgência de uma abordagem coordenada, tecnicamente qualificada e sensível à dinâmica digital, de modo a preservar a livre concorrência em um ambiente econômico em transformação.
Palavras-chave: concorrência predatória; economia digital; CADE; plataformas digitais; direito concorrencial.
Abstract
This article analyzes the intensification of predatory pricing in the digital environment, focusing on the role of the Brazilian Administrative Council for Economic Defense (CADE) in light of Law No. 12.529/2011 and the regulatory challenges posed by digital markets. It is argued that the structural transformation of the economy, driven by scalable platforms, venture capital, and network effects, has increased the likelihood of exclusionary practices based on artificial pricing below cost. The analysis demonstrates that, although Brazilian competition law provides adequate legal tools, the characterization of predatory conduct requires robust evidence of exclusionary intent, financial capacity, and a realistic expectation of future compensation. The article also highlights the need for institutional and methodological improvements at CADE, given regulatory asymmetries and new forms of competitive harm. It concludes by emphasizing the urgency of a coordinated, technically sound, and digitally aware approach to safeguarding free competition in a transforming economy.
Keywords: predatory pricing; digital economy; CADE; digital platforms; competition law.
Sumário: 1. Introdução. 2. Concorrência predatória: conceito jurídico e elementos caracterizadores. 3. A transformação digital e suas implicações concorrenciais. 4. 4. Fatores que potencializam a concorrência predatória no ambiente digital. 4.1. Redução das barreiras de entrada e guerra de preços online. 4.2. Capital de risco, escalabilidade e subsídios cruzados. 4.3. Assimetria regulatória e internacionalização imediata. 5. A atuação do CADE diante da concorrência predatória digital. 5.1 – Análise de casos emblemáticos. 6. Desafios regulatórios e perspectivas para o Direito Concorrencial. 7.Conclusão
1. Introdução
A digitalização da economia e a ascensão de modelos de negócios baseados em plataformas remodelaram profundamente a estrutura dos mercados contemporâneos. A atuação empresarial no ambiente digital tem se caracterizado por forte dinamicidade, elevada escalabilidade e acentuada concentração de dados e poder econômico em poucos agentes, especialmente aqueles capazes de explorar as vantagens competitivas proporcionadas pela tecnologia. Nesse contexto, observa-se o recrudescimento de práticas potencialmente lesivas à concorrência, com destaque para a concorrência predatória — entendida, em linhas gerais, como a prática de preços abaixo do custo com o objetivo de eliminar concorrentes e posteriormente recuperar a posição por meio de aumentos abusivos de preços ou controle do mercado.
Embora tal conduta já fosse objeto de preocupação das autoridades concorrenciais no ambiente tradicional, a transposição desses conflitos para o universo digital tem revelado desafios inéditos ao direito antitruste. A lógica das plataformas digitais, alimentada por capital de risco, economias de rede e efeitos de dominância, criou um cenário em que estratégias predatórias podem ser adotadas de forma mais sofisticada, disfarçada e duradoura. Empresas de grande porte podem operar com prejuízo deliberado por longos períodos, financiadas por investidores interessados na maximização do market share e na eliminação de competidores locais, sem necessariamente elevar preços após a exclusão do rival — o que desafia a lógica clássica de aferição da predatoriedade.
Neste ambiente, o papel do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) assume centralidade na repressão às práticas anticompetitivas, inclusive por meio da interpretação e aplicação da Lei nº 12.529/2011 à nova realidade digital. A atuação da autarquia exige, cada vez mais, uma abordagem analítica capaz de compatibilizar a preservação da livre concorrência com a dinâmica dos mercados digitais, sem sufocar a inovação, mas também sem permitir abusos travestidos de eficiência.
O presente artigo tem como objetivo analisar a intensificação da concorrência predatória no contexto digital, suas causas estruturais, os impactos para o mercado e os consumidores, e os instrumentos jurídicos à disposição do CADE para repressão dessas condutas. A partir de uma abordagem centrada em dispositivos legais, resoluções normativas e precedentes administrativos, busca-se compreender como o direito concorrencial brasileiro pode responder a esse novo fenômeno de forma tecnicamente eficaz, juridicamente consistente e economicamente equilibrada.
2. Concorrência predatória: conceito jurídico e elementos caracterizadores
A concorrência predatória, embora não definida expressamente na Lei nº 12.529/2011, é reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro como prática anticoncorrencial por meio de dispositivos que vedam condutas capazes de eliminar concorrentes ou dificultar sua atuação no mercado. Trata-se, na essência, de estratégia comercial agressiva que consiste na fixação de preços abaixo do custo de produção, com o objetivo de excluir rivais e, posteriormente, recuperar as perdas por meio do exercício de poder de mercado.
O artigo 36 da Lei nº 12.529/2011 dispõe que constitui infração da ordem econômica "qualquer ato sob qualquer forma manifestado, que tenha por objeto ou possa produzir os efeitos de limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa" (caput), sendo considerados exemplos, entre outros, os seguintes: "dominar mercado relevante de bens ou serviços" (inciso I), "eliminar do mercado concorrente, total ou parcialmente" (inciso II) e "aumentar arbitrariamente os lucros" (inciso III). A conduta predatória, por sua natureza, se insere no inciso II, ao buscar a eliminação de concorrentes não por mérito concorrencial, mas por prática abusiva e anticompetitiva.
Para fins de caracterização da concorrência predatória, o CADE tem exigido a comprovação de três elementos essenciais: (i) a prática de preços inferiores aos custos, sobretudo o custo marginal ou médio variável; (ii) a existência de capacidade econômica e estratégica para sustentar tais perdas por tempo suficiente; e (iii) a probabilidade de posterior compensação por meio de ganhos monopolísticos ou exclusão efetiva de rivais. Trata-se de análise complexa, que exige considerações não apenas jurídicas, mas também econômicas, sendo frequente a utilização de pareceres técnicos e coleta de dados financeiros.
A simples adoção de preços baixos, ainda que abaixo do custo, não é suficiente para caracterizar a prática como ilícita, sendo indispensável a demonstração de intencionalidade predatória e de potenciais efeitos anticompetitivos. Isto é não bastaria a constatação de preços abaixo do custo, sendo imprescindível demonstrar a existência de efeitos anticoncorrenciais duradouros e a eliminação de concorrência efetiva.
É bem de ver que a configuração da concorrência predatória exige “provas robustas” da adoção deliberada de preços insustentáveis com o propósito de excluir rivais e posterior compensação do prejuízo, o que nem sempre é facilmente comprovável em mercados digitais altamente voláteis.
Assim, a caracterização jurídica da concorrência predatória exige não apenas a apuração empírica da conduta e dos preços praticados, mas também a compreensão dos incentivos econômicos do agente, sua posição no mercado relevante e a estrutura competitiva do setor. Trata-se de avaliação necessariamente casuística, que deve considerar os impactos concretos sobre o processo competitivo e a liberdade de escolha do consumidor.
3. A transformação digital e suas implicações concorrenciais
A transformação digital tem promovido uma reconfiguração estrutural nos mercados, alterando profundamente os mecanismos tradicionais de concorrência e exigindo novas abordagens por parte das autoridades reguladoras. Com a ampliação do acesso à internet, a popularização do comércio eletrônico e a emergência de plataformas digitais multifacetadas, tornou-se possível operar modelos de negócio altamente escaláveis, com margens reduzidas e base de usuários potencialmente global, o que desafiou os parâmetros clássicos de análise concorrencial.
No plano jurídico, embora a Lei nº 12.529/2011 não contenha dispositivos específicos voltados à regulação de mercados digitais, sua principiologia permite aplicação ampla e adaptada às novas realidades econômicas, à luz da função preventiva, repressiva e corretiva atribuída ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). A atuação concorrencial, conforme o §1º do art. 36 da referida Lei, deve considerar, entre outros fatores, "a estrutura do mercado relevante", "a possibilidade de acesso de novos competidores", "a rivalidade entre os agentes já instalados", e "as condições dos consumidores" — critérios que adquirem novos contornos no cenário digital.
Um dos principais impactos da digitalização sobre a concorrência diz respeito à intensificação das externalidades de rede, fenômeno em que o valor de um produto ou serviço aumenta à medida que mais usuários o adotam. Esse efeito cria barreiras à entrada e favorece a concentração do mercado em torno de poucas plataformas dominantes, o que pode facilitar a adoção de estratégias predatórias ou de exclusão de concorrentes por meios indiretos, como o controle do acesso a dados, a manipulação de rankings algoritmos ou o lock-in de usuários e fornecedores.
Ademais, a digitalização tem ampliado a assimetria informacional entre agentes econômicos e consumidores, dificultando a detecção de práticas anticoncorrenciais e tornando mais complexa a atuação repressiva das autoridades. A opacidade algorítmica, a personalização dinâmica de preços e o uso intensivo de dados sensíveis criam obstáculos à transparência concorrencial, especialmente quando combinados a estruturas empresariais internacionais, com sedes em múltiplas jurisdições e fluxos financeiros opacos.
Nesse ambiente, empresas dotadas de grande capacidade tecnológica e acesso privilegiado a capital de risco têm adotado estratégias agressivas de crescimento, muitas vezes operando com prejuízo por longos períodos, com vistas à rápida expansão da base de usuários e à posterior captura de mercado. Esse modelo, embora inicialmente competitivo sob a ótica do preço, pode resultar na eliminação de rivais mais frágeis, com prejuízo à diversidade de oferta, à inovação e à autonomia do consumidor.
A atuação do CADE diante dessa nova realidade tem se dado com crescente sofisticação, buscando adaptar seus métodos analíticos às peculiaridades dos mercados digitais. Em diversos pronunciamentos públicos e decisões administrativas, a autarquia tem destacado a importância de compreender os efeitos dinâmicos da concorrência em plataformas digitais, sem desconsiderar os riscos de abuso de posição dominante sob a aparência de práticas legítimas de expansão comercial.
O CADE lançou o estudo técnico intitulado “Mercados de Plataformas Digitais” (2023), no qual reconheceu expressamente que os mercados digitais desafiam a aplicação tradicional das ferramentas antitruste e demandam metodologias específicas para análise de poder de mercado, definição de mercados relevantes e verificação de condutas excludentes. O documento destaca que a aplicação da legislação concorrencial em ambientes digitais requer novas ferramentas de análise, além de diálogo constante com outras autoridades reguladoras.
Assim, a transformação digital impõe uma profunda revisão dos parâmetros normativos e analíticos da política antitruste, exigindo não apenas vigilância constante, mas também flexibilidade institucional para reconhecer novas formas de dano concorrencial, mesmo quando travestidas de inovações tecnológicas ou estratégias de precificação vantajosas ao consumidor em curto prazo.
4. Fatores que potencializam a concorrência predatória no ambiente digital
A intensificação da concorrência predatória no contexto digital não decorre apenas de condutas pontuais de empresas dominantes, mas de um conjunto de características estruturais que tornam os mercados online particularmente propensos à adoção de estratégias excludentes. Ao contrário dos mercados tradicionais, nos quais a sustentabilidade de preços predatórios é geralmente limitada, o ambiente digital permite sua utilização por períodos mais extensos e com menores riscos de detecção ou responsabilização.
Nesse sentido, destacam-se os seguintes fatores como catalisadores das práticas predatórias: a redução das barreiras de entrada e a guerra de preços nos ambientes online (4.1); o uso intensivo de capital de risco, modelos escaláveis e subsídios cruzados (4.2); e a presença de assimetrias regulatórias e internacionalização imediata das operações (4.3), todos os quais serão analisados a seguir.
4.1. Redução das barreiras de entrada e guerra de preços online
A digitalização promoveu uma democratização formal do acesso ao mercado, reduzindo barreiras tradicionais à entrada, como a necessidade de estrutura física, capital intensivo ou mão de obra local. Em tese, essa facilidade representaria um avanço para a concorrência. Contudo, essa abertura também favoreceu a multiplicação de entrantes operando com margens ínfimas e em muitos casos praticando preços abaixo do custo para conquistar consumidores em um cenário de competição imediata e visível — cenário típico das plataformas digitais.
No comércio eletrônico e nos marketplaces, a exposição simultânea de múltiplos ofertantes, muitas vezes sem diferenciação clara de qualidade ou origem, gera uma competição centrada quase exclusivamente no preço. A ordenação dos resultados com base em algoritmos que privilegiam menor valor ou maior volume de vendas estimula condutas agressivas, gerando uma espécie de “guerra de preços automatizada”, na qual sobrevivem apenas aqueles capazes de sustentar prejuízos temporários.
Esse ambiente se torna particularmente favorável à adoção de estratégias predatórias por empresas dotadas de maior robustez financeira e presença consolidada no ambiente digital. O resultado é a exclusão progressiva de concorrentes locais ou de menor escala, que não conseguem acompanhar a pressão por descontos nem investir na otimização de presença digital, marketing de performance ou estrutura logística equivalente.
Do ponto de vista jurídico, tais condutas podem configurar infrações à ordem econômica, sobretudo quando praticadas por agentes com posição dominante no mercado relevante. Como dispõe o inciso I do §3º do art. 36 da Lei nº 12.529/2011, a imposição de “condições desvantajosas” ou “preços excessivamente baixos” a consumidores ou concorrentes pode ser considerada prática anticoncorrencial quando resultar na eliminação da concorrência ou no abuso de poder econômico.
A jurisprudência do CADE reconhece que, ainda que a livre concorrência admita certa margem de agressividade comercial, a prática de preços abaixo do custo com objetivo excludente ultrapassa os limites da legalidade. Em casos anteriores envolvendo mercados convencionais, como o setor farmacêutico e de telecomunicações, o órgão já afirmou que a sustentação de prejuízos de forma artificial com finalidade anticoncorrencial é indício relevante da intenção predatória.
No ambiente digital, contudo, o desafio se acentua: é mais difícil calcular custos marginais em tempo real, e os mecanismos de precificação são muitas vezes dinâmicos e opacos, dificultando a identificação de comportamento antijurídico com os parâmetros tradicionais. A própria noção de “preço abaixo do custo” perde nitidez em setores de custo marginal quase nulo, como serviços baseados em software, redes sociais ou plataformas de intermediação.
Ainda assim, o risco concorrencial é concreto: mesmo que os preços baixos sejam, no curto prazo, benéficos ao consumidor, sua manutenção de forma artificial, sem sustentabilidade econômica, pode gerar efeitos deletérios no médio e longo prazo, com eliminação da diversidade de fornecedores, concentração de mercado e, eventualmente, elevação de preços após a exclusão dos rivais.
4.2. Capital de risco, escalabilidade e subsídios cruzados
Outro vetor relevante para a intensificação da concorrência predatória no contexto digital é a atuação de empresas altamente capitalizadas, frequentemente financiadas por fundos de investimento, venture capital ou conglomerados multinacionais, cuja estratégia deliberada de crescimento envolve a prática de prejuízos recorrentes e sustentados por longos períodos, com vistas à rápida obtenção de market share e posterior consolidação do domínio de mercado.
Esse modelo de crescimento acelerado, viabilizado por aportes financeiros contínuos e projeções de lucros futuros, não se enquadra na lógica tradicional de viabilidade empresarial, mas tornou-se comum em mercados digitais, especialmente naqueles baseados em plataformas de intermediação, aplicativos de mobilidade, fintechs e serviços de streaming. Nessas estruturas, o desequilíbrio entre receita e despesa não é encarado como falha, mas como etapa programada de um ciclo de expansão.
Do ponto de vista concorrencial, esse comportamento gera riscos significativos. Empresas fortemente financiadas por capital de risco podem operar com preços inferiores ao custo de forma prolongada, não por razões de eficiência, mas por estratégia de eliminação de concorrentes. Tal conduta dificulta sobremaneira a atuação de agentes menores, que não dispõem da mesma margem de sustentação de prejuízos, ainda que sejam mais eficientes ou inovadores.
Ademais, modelos de negócios escaláveis permitem ganhos de eficiência que, embora legítimos em si, podem ser combinados a práticas excludentes quando utilizados de forma predatória. A possibilidade de atender milhões de usuários sem incremento proporcional de custos permite que empresas em posição dominante operem com preços progressivamente mais baixos, sustentando perdas marginais para eliminar a concorrência, com expectativa de lucros futuros decorrentes da captura do mercado ou do controle de dados e comportamento dos consumidores.
Em muitos casos, o financiamento cruzado entre diferentes linhas de produtos ou serviços também contribui para a prática de preços predatórios. É o que ocorre, por exemplo, quando uma empresa utiliza receitas geradas em segmento A (por exemplo, publicidade ou vendas de dados) para subsidiar artificialmente os preços de um produto no segmento B (como transporte, alimentação ou serviços financeiros), tornando impossível a competição em condições de isonomia por agentes especializados no setor afetado.
A jurisprudência do CADE já identificou a prática de subsídios cruzados como um dos elementos indiciários de condutas anticoncorrenciais, especialmente quando associados a estratégias de exclusão de rivais. Em casos envolvendo mercados de transporte por aplicativo, o órgão ponderou que a capacidade de uma empresa de operar com prejuízo constante, financiada por capital externo, exige atenção redobrada das autoridades, uma vez que os efeitos nocivos da conduta podem não ser imediatos, mas se consolidar com o tempo.
Ainda que o simples recebimento de aportes financeiros ou a prática de preços baixos não configurem, por si só, infrações à ordem econômica, sua conjugação com a eliminação de concorrência efetiva, a indução ao lock-in de usuários ou o fechamento de canais de distribuição pode configurar abuso de posição dominante. Nesses casos, a conduta deve ser examinada à luz do art. 36 da Lei nº 12.529/2011, com especial atenção à sua repercussão no processo concorrencial e no equilíbrio do mercado relevante.
Por fim, a ausência de retorno financeiro imediato também dificulta a aferição de efeitos anticompetitivos com base nos parâmetros clássicos de elevação posterior de preços — critério tradicionalmente utilizado para comprovar a segunda fase do ciclo predatório. Em muitos modelos digitais, a compensação não ocorre necessariamente por aumento direto no preço final ao consumidor, mas por meio da monetização de dados, venda de serviços auxiliares ou exploração de posições exclusivas de intermediação — formas sutis, porém economicamente relevantes, de obtenção de rentabilidade após a exclusão da concorrência.
4.3. Assimetria regulatória e internacionalização imediata
O ambiente digital apresenta um desafio adicional à aplicação uniforme e eficaz das normas concorrenciais: a assimetria regulatória entre empresas locais e agentes globais. Enquanto empresas estabelecidas em território nacional estão submetidas integralmente às exigências legais, fiscais, trabalhistas e setoriais previstas no ordenamento jurídico brasileiro, agentes estrangeiros ou digitais, muitas vezes sem presença física no país, operam com significativa liberdade e menor grau de responsabilização, o que distorce o equilíbrio competitivo e favorece estratégias predatórias.
A ausência de sede formal no Brasil, somada à possibilidade de ofertar produtos ou serviços de forma remota e automatizada, permite que empresas multinacionais ingressem em mercados locais sem se sujeitar imediatamente às mesmas obrigações impostas aos concorrentes nacionais. Esse fenômeno é acentuado quando tais empresas utilizam estruturas societárias complexas ou sediadas em paraísos fiscais, o que dificulta a fiscalização, a tributação e a responsabilização por práticas anticoncorrenciais.
5. A atuação do CADE diante da concorrência predatória digital
A repressão à concorrência predatória no Brasil está inserida no conjunto de competências atribuídas ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), nos termos do art. 13, inciso I, da Lei nº 12.529/2011, que lhe confere a incumbência de "zelar pela livre concorrência" e "reprimir as infrações à ordem econômica". No ambiente digital, a atuação do CADE tem exigido o aprimoramento de instrumentos analíticos e metodologias probatórias compatíveis com as novas formas de estruturação e funcionamento dos mercados.
A complexidade da economia digital desafia a aplicação dos critérios tradicionais de detecção de práticas predatórias, exigindo análise técnica mais refinada para aferição da ilicitude da conduta. Nesse sentido, o órgão tem se mostrado cauteloso, evitando intervenções que possam inibir a inovação, mas mantendo vigilância sobre indícios de exclusão de concorrentes por meio de estratégias artificiais de preço ou alocação predatória de recursos.
Para que uma prática seja reconhecida como concorrência predatória pelo CADE, é necessário que se demonstre, de forma consistente, a presença de três elementos cumulativos: (i) a fixação de preços abaixo do custo por agente com poder de mercado; (ii) a capacidade financeira e estratégica de sustentar perdas por período suficiente para excluir concorrentes; e (iii) a expectativa realista de posterior compensação econômica após a saída dos rivais. Essa tríade compõe o chamado teste predatório, amplamente utilizado pela autarquia em sua análise técnica.
O primeiro requisito — preços abaixo do custo — não se refere a qualquer preço reduzido, mas àqueles inferiores ao custo marginal ou, em certos casos, ao custo médio variável, conforme critérios econômicos aplicáveis ao caso concreto. A apuração exige, portanto, acesso a dados internos da empresa investigada, incluindo estrutura de custos, fluxos de receita e parâmetros de precificação. Em mercados digitais, essa tarefa é particularmente difícil, dada a natureza intangível de muitos serviços, a variabilidade de custos marginais e a presença de subsídios cruzados entre diferentes produtos da mesma plataforma.
O segundo requisito — capacidade de sustentar prejuízos — está relacionado à estrutura financeira e à posição de mercado do agente. Empresas com acesso intensivo a capital de risco, fontes alternativas de receita ou portfólio diversificado podem absorver prejuízos recorrentes sem comprometer sua operação, o que as torna aptas a adotar estratégias excludentes com menores riscos. Para o CADE, essa capacidade é indício de que a prática não decorre de mera ineficiência ou erro de gestão, mas de uma escolha deliberada e estratégica.
O terceiro requisito — expectativa de compensação futura — exige que se demonstre a racionalidade econômica da conduta predatória. Trata-se de verificar se, uma vez eliminados os concorrentes, a empresa investigada poderá recuperar as perdas por meio do aumento de preços, da extração de rendas por controle de mercado ou da exploração de efeitos de rede. Ainda que o aumento de preços não seja imediato ou perceptível ao consumidor, o CADE admite que a compensação pode ocorrer de outras formas, como a exclusividade de acesso a dados, a verticalização de serviços ou a imposição de cláusulas restritivas a parceiros comerciais.
Em diversos pareceres técnicos, a Superintendência-Geral do CADE tem enfatizado que a apuração da concorrência predatória deve se basear em "provas robustas", capazes de distinguir práticas legítimas de preços agressivos — comuns em mercados disputados — daquelas que visam à eliminação de rivais de forma anticompetitiva. A atuação repressiva, portanto, depende de instrução probatória densa, com documentos contábeis, estudos de viabilidade econômica, análises de elasticidade da demanda e posicionamento competitivo dos agentes.
Em complemento, o CADE vem demonstrando preocupação crescente com a dificuldade probatória nos mercados digitais. A natureza fluida das plataformas, o uso de algoritmos opacos e a constante mudança nos modelos de negócio tornam a detecção da conduta predatória mais desafiadora. Isso tem levado o órgão a buscar cooperação técnica com outras autoridades, inclusive internacionais, e a aprimorar sua estrutura analítica, com investimentos em estudos setoriais, núcleos especializados e consultas públicas.
Diante desses desafios, a atuação do CADE tem se pautado pelo princípio da razoabilidade e da intervenção mínima, mas com atenção permanente a indícios de abuso de poder de mercado. A repressão à concorrência predatória, especialmente no ambiente digital, exige uma atuação tecnicamente qualificada, baseada em evidências empíricas sólidas e capaz de distinguir inovação legítima de práticas excludentes sob aparência de eficiência.
No plano concorrencial, essa disparidade normativa pode gerar incentivos à adoção de comportamentos predatórios, sobretudo quando aliados a estruturas de precificação que escapam ao escrutínio das autoridades nacionais. A atuação descentralizada, a coleta de dados em escala global e o uso de algoritmos proprietários reforçam o caráter assimétrico da competição, criando um ambiente em que pequenos agentes locais enfrentam desvantagens não apenas econômicas, mas também jurídicas.
A internacionalização imediata, viabilizada pela própria natureza transfronteiriça da internet, agrava esse cenário. Empresas digitais com operação global podem explorar arbitragens regulatórias, oferecendo produtos ou serviços em múltiplas jurisdições, mas sob regulação mínima ou fragmentada. Essa fragmentação dificulta a atuação coordenada entre autoridades antitruste de diferentes países, sobretudo quando se exige acesso a dados sigilosos, cooperação técnica ou execução de medidas corretivas com efeitos extraterritoriais.
Embora o Brasil disponha de instrumentos jurídicos para atuação internacional, como tratados de cooperação e acordos bilaterais, a efetividade prática dessas medidas é limitada, especialmente em casos que envolvem tecnologias de ponta ou empresas sediadas em jurisdições pouco colaborativas. A atuação do CADE, nesses casos, enfrenta dificuldades operacionais relevantes, inclusive no que diz respeito à obtenção de provas e à execução de sanções.
Destaca-se ainda a importância de considerar as vantagens competitivas injustificadas derivadas da ausência de regulação incidente sobre agentes digitais estrangeiros, sobretudo quando essa ausência gera condições desiguais de competição em relação a empresas sujeitas à regulação nacional.
Além disso, a assimetria regulatória pode contribuir para a perpetuação de estruturas de mercado concentradas, na medida em que o controle de dados, infraestrutura e canais de acesso digital se torna privilégio de poucos agentes globais. A dependência de soluções estrangeiras e a fragilidade de ecossistemas locais limitam o potencial de entrada de novos concorrentes e tornam mais arriscada a manutenção de negócios genuinamente nacionais em setores estratégicos.
Portanto, a atuação repressiva do CADE e de outras autoridades reguladoras deve ser acompanhada de uma reflexão institucional mais ampla, que considere a necessidade de harmonização normativa, fortalecimento da cooperação internacional e, sobretudo, de medidas regulatórias que corrijam as distorções competitivas causadas por essa assimetria estrutural. A proteção da livre concorrência exige tratamento isonômico entre os agentes e condições mínimas de paridade regulatória, sob pena de inviabilizar a atuação legítima de empresas nacionais e comprometer a pluralidade de modelos de negócios em território brasileiro.
5.1 – Análise de casos emblemáticos
O próprio CADE reconheceu, no Caderno de Plataformas, que a dificuldade probatória nos mercados digitais decorre, em parte, da opacidade das estruturas de governança algorítmica, da multiplicidade de estratégias de subsídio cruzado e da ausência de regulamentação ex-ante para limitar condutas discriminatórias em ambiente digital. A autarquia aponta que, em muitos casos, há necessidade de se adotar uma abordagem proativa para garantir a pluralidade de agentes e modelos de negócios.
Um exemplo relevante de atuação do CADE sobre práticas excludentes no ambiente digital foi a celebração de Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) com as empresas Booking.com, Decolar.com e Expedia, em 27 de março de 2018. A investigação apurava o uso de cláusulas de paridade ampla, por meio das quais as plataformas exigiam que os hotéis parceiros não oferecessem preços ou condições melhores nem mesmo em seus próprios canais diretos ou em sites concorrentes.
Segundo a Superintendência-Geral, essa conduta restringia a competição entre as agências on-line e dificultava a entrada de novos players, uma vez que eventuais estratégias de diferenciação por preço ou comissão reduzida não repercutiam no preço final percebido pelo consumidor.
Os TCCs firmados previram o fim da exigência de paridade ampla, permitindo aos estabelecimentos hoteleiros oferecerem condições melhores em seus canais offline e em outras agências online. No entanto, foi mantida a possibilidade de paridade em relação ao site do próprio hotel, com o objetivo de evitar o chamado “efeito carona”, em que os usuários utilizam a plataforma apenas para busca, mas concluem a reserva em outro canal.
A decisão do CADE segue tendência internacional — como nos casos analisados pelas autoridades concorrenciais da França, Itália e Suécia — e demonstra sensibilidade à complexidade dos mercados digitais e ao poder de barganha que plataformas dominantes exercem sobre seus parceiros comerciais. Embora o caso não trate diretamente de concorrência predatória via preços, ilustra como estratégias contratuais podem ser utilizadas para restringir a competição em plataformas digitais, com efeitos semelhantes de exclusão e redução da contestabilidade do mercado.
Em outro precedente relevante, o CADE arquivou o Processo Administrativo nº 08700.006964/2015-71, que investigava a prática de condutas anticompetitivas por representantes da categoria de táxis contra a empresa Uber, no mercado de transporte individual de passageiros. A denúncia envolvia alegações de litigância abusiva (sham litigation) e uso de violência ou ameaça para excluir a plataforma concorrente.
Embora tenha reconhecido que, em tese, tais práticas poderiam comprometer a concorrência, o Tribunal considerou que não havia provas suficientes da materialidade ou da autoria das condutas, especialmente pela descentralização dos atos e pela dificuldade de individualizar responsabilidades no plano concorrencial.
O caso é emblemático por ilustrar os limites institucionais e probatórios da repressão a condutas excludentes, sobretudo em mercados disruptivos, marcados por forte resistência dos agentes tradicionais. Também reforça a importância da racionalidade decisória do CADE, que evita condenações baseadas apenas em percepções ou conjecturas, sem elementos empíricos e jurídicos sólidos.
Outro caso emblemático no qual o CADE enfrentou conduta potencialmente excludente em ambiente digital foi o do Inquérito Administrativo nº 08700.004588/2020-47, no qual se investigava a atuação da empresa iFood no mercado nacional de marketplaces de delivery de comida.
O procedimento apurava indícios de que o iFood estaria abusando de sua posição dominante por meio da exigência de exclusividades contratuais com restaurantes parceiros, especialmente grandes redes, o que restringiria o acesso de concorrentes ao portfólio de estabelecimentos estratégicos para a operação em certas localidades.
Em fevereiro de 2023, foi celebrado Termo de Compromisso de Cessação (TCC) com cláusulas inovadoras: vedação de exclusividades com redes que congreguem 30 ou mais restaurantes; limitação do volume bruto de mercadorias (GMV) exclusivo a 25% do total da plataforma; e restrição, em nível local, a no máximo 8% de estabelecimentos exclusivos em municípios com mais de 500 mil habitantes.
O TCC também proibiu a utilização de cláusulas de paridade (Most Favoured Nation – MFN), de obrigações de promoção exclusiva e de incentivos condicionados à centralização do volume de negócios no iFood. Além disso, estabeleceu que os contratos de exclusividade com redes menores teriam duração limitada a dois anos, com um período de “quarentena de exclusividade” subsequente, no qual o restaurante não poderia renovar o vínculo imediatamente.
A medida foi considerada relevante por impedir a cristalização de estruturas de mercado com barreiras artificiais à entrada e permitir maior contestabilidade, sem, contudo, sufocar a inovação. O caso ilustra o uso do TCC como ferramenta eficaz e flexível de correção concorrencial, especialmente em setores em que a rápida deterioração da competição poderia tornar inócuo o resultado final de uma eventual condenação.
Em junho de 2025, a Superintendência-Geral do CADE recomendou a condenação da Apple Inc. por condutas anticompetitivas no ecossistema do sistema operacional iOS, no Inquérito Administrativo iniciado em 2022. A investigação foi motivada por denúncia do Mercado Livre e da Ebazar.com.br Ltda., que apontaram restrições abusivas à livre concorrência no mercado de distribuição de aplicativos e serviços digitais para dispositivos da Apple.
A SG concluiu que a Apple, ao impor o uso exclusivo de seu sistema de pagamento e ao restringir a distribuição de serviços de terceiros fora da App Store, criou barreiras artificiais à entrada, dificultando a atuação de concorrentes e reduzindo as opções disponíveis para desenvolvedores e consumidores. Tais condutas, segundo a SG, preservam de forma ilegítima sua posição dominante.
A recomendação incluiu a cessação das práticas, imposição de remédios comportamentais e aplicação de multa com base na Lei nº 12.529/2011. O processo foi encaminhado ao Tribunal do CADE e está pendente de julgamento pelo conselheiro relator Victor Fernandes.
O caso reforça a compreensão de que, no ambiente digital, o controle de infraestrutura essencial e de canais exclusivos de acesso ao consumidor pode ser explorado de forma anticompetitiva, ainda que sob aparência de política de segurança ou padronização tecnológica.
6. Desafios regulatórios e perspectivas para o Direito Concorrencial
A repressão à concorrência predatória no contexto digital impõe ao Direito Concorrencial brasileiro desafios significativos de natureza normativa, institucional e metodológica. A velocidade das inovações tecnológicas, a crescente complexidade dos modelos de negócios baseados em plataformas e a assimetria estrutural entre agentes locais e globais demandam do Estado respostas mais ágeis, técnicas e coordenadas, capazes de garantir a efetividade da livre concorrência sem comprometer a inovação.
O primeiro grande desafio é normativo. A Lei nº 12.529/2011, embora abrangente e principiológica, foi concebida em um contexto anterior à consolidação da economia digital. Ainda que seus dispositivos permitam interpretação extensiva para abarcar condutas praticadas em meios digitais, a ausência de regulamentação específica sobre práticas de mercado típicas de plataformas — como auto-preferência, subsídios cruzados, exclusividades contratuais, ou uso abusivo de dados — cria lacunas interpretativas que dificultam a atuação tempestiva do CADE.
Nesse sentido, o debate sobre a necessidade de atualização legislativa vem ganhando força. Diversos países já adotaram ou propuseram leis específicas para regular plataformas digitais com poder de mercado, a exemplo do Digital Markets Act (DMA) da União Europeia. Ainda que o modelo brasileiro não dependa, necessariamente, de uma nova lei para tratar da matéria, é evidente que a produção de diretrizes interpretativas, guias técnicos ou resoluções normativas poderia conferir maior previsibilidade e segurança jurídica à atuação concorrencial no setor digital.
O segundo desafio é institucional. O enfrentamento da concorrência predatória em mercados digitais exige atuação articulada entre múltiplas autoridades, como o CADE, o Banco Central, a ANPD, a SENACON e a Receita Federal. A natureza transversal da economia digital — que mistura elementos de proteção concorrencial, defesa do consumidor, regulação financeira e proteção de dados — impõe a superação de modelos fragmentados de regulação e a adoção de estratégias integradas de fiscalização e compartilhamento de informações.
Para tanto, o CADE tem buscado aprimorar sua capacidade institucional, por meio da criação de núcleos especializados em mercados digitais, do fomento à capacitação técnica e da intensificação do diálogo com autoridades internacionais. Tais medidas são positivas, mas insuficientes se não vierem acompanhadas de maior autonomia orçamentária, estabilidade de pessoal técnico e reforço de instrumentos legais para atuação coordenada com outros órgãos reguladores.
O terceiro desafio é metodológico. A aferição de práticas predatórias em ambientes digitais exige o desenvolvimento de novas ferramentas analíticas, aptas a captar formas atípicas de dano concorrencial. Os métodos tradicionais de definição de mercado relevante, aferição de poder de mercado e cálculo de prejuízo ao consumidor nem sempre se aplicam de forma adequada a modelos baseados em dados, publicidade ou efeitos de rede.
O próprio CADE reconheceu esse problema no estudo técnico “Caderno de Plataformas Digitais” (2023), em que apontou a necessidade de adaptação das ferramentas antitruste à realidade das plataformas digitais. A autarquia vem promovendo consultas públicas e incentivando a elaboração de estudos empíricos que permitam mensurar efeitos de práticas digitais sobre o bem-estar do consumidor e a estrutura dos mercados — iniciativa que merece continuidade e aprofundamento.
Por fim, há um desafio estratégico: o de equilibrar a proteção da concorrência com a preservação da liberdade econômica e da inovação. A repressão precipitada ou mal calibrada a modelos de negócios disruptivos pode inibir o desenvolvimento de soluções tecnológicas locais e favorecer a consolidação de estruturas de mercado ainda mais concentradas, por meio da retirada prematura de agentes menores. Por outro lado, a omissão estatal diante de práticas predatórias pode comprometer irremediavelmente o ambiente concorrencial, com impactos duradouros sobre a diversidade de oferta, a competitividade e os direitos dos consumidores.
Nesse cenário, as perspectivas para o Direito Concorrencial brasileiro passam pela construção de um modelo regulatório híbrido, que una repressão qualificada a condutas ilícitas com incentivos à conformidade concorrencial, transparência de mercado e redução das barreiras informacionais. A regulação baseada em dados, a interoperabilidade de plataformas, a portabilidade de informações e a responsabilização dos agentes dominantes pela integridade do ambiente competitivo despontam como instrumentos viáveis para esse novo modelo.
O fortalecimento do CADE como órgão central da política antitruste e a consolidação de uma jurisprudência sensível à realidade digital são elementos essenciais para que o sistema brasileiro de defesa da concorrência esteja à altura dos desafios impostos pela nova economia. Mais do que reprimir condutas individuais, será necessário construir uma arquitetura institucional capaz de preservar os fundamentos da concorrência em um ambiente marcado por disrupções permanentes.
7. Conclusão
A intensificação da concorrência predatória no contexto digital representa um dos mais relevantes desafios contemporâneos para o Direito Concorrencial brasileiro. A ascensão das plataformas digitais, a estrutura altamente escalável dos modelos de negócio, o uso intensivo de capital de risco e as práticas comerciais potencializadas por algoritmos e efeitos de rede remodelaram as formas de disputa mercadológica, exigindo das autoridades reguladoras uma resposta igualmente sofisticada, técnica e tempestiva.
Ao longo deste artigo, demonstrou-se que a prática de preços abaixo do custo, quando sustentada por agentes com significativa capacidade financeira e intencionalidade excludente, pode comprometer a dinâmica concorrencial e resultar na eliminação de rivais, ainda que travestida de inovação ou de benefício imediato ao consumidor. Nos mercados digitais, essa prática adquire contornos mais complexos, em razão da dificuldade de mensuração dos custos marginais, da opacidade nos modelos de precificação e da presença de estruturas multinacionais com forte assimetria regulatória.
A jurisprudência do CADE, embora ainda em formação quanto aos mercados digitais, já reconhece a relevância do tema e vem buscando aperfeiçoar seus parâmetros analíticos. Casos emblemáticos, como os que envolvem plataformas de mobilidade urbana e marketplaces, revelam tanto o esforço da autarquia em adaptar suas ferramentas, quanto os limites impostos pela dificuldade probatória e pela falta de marcos normativos específicos.
Nesse cenário, torna-se indispensável o fortalecimento da capacidade institucional do CADE, bem como a aproximação com outras autoridades reguladoras, nacionais e estrangeiras, de modo a promover uma abordagem coordenada e multidisciplinar. A construção de diretrizes técnicas, a realização de estudos setoriais e o aprimoramento dos métodos de coleta e tratamento de dados são medidas que devem ser aprofundadas com vistas à proteção efetiva da livre concorrência.
Por fim, a resposta do Direito Concorrencial à concorrência predatória digital não pode prescindir de equilíbrio. A repressão a condutas ilícitas deve ser firme, mas pautada por evidências robustas, evitando interferências indevidas na livre iniciativa. A preservação de um ambiente concorrencial saudável depende não apenas da punição de práticas abusivas, mas também da criação de condições regulatórias que assegurem a diversidade de agentes, a inovação tecnológica e o respeito aos direitos dos consumidores. Trata-se, em última instância, de garantir que a competição no século XXI se dê em bases legítimas, transparentes e justas.
Referências:
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