Sumário: Introdução. 2. Dimensão relacional e avaliação pragmática do contrato. 3. Ética do Direito Privado e os valores contratuais. 4. Boa-fé objetiva e o princípio da confiança. 5. Boa-fé objetiva e deveres anexos. 6. Tolerância como dever relacional. 7. Limites e efeitos da tolerância. 8. Continuidade contratual e tolerância. Conclusão. Referências.
Resumo
O presente artigo analisa a tolerância na execução contratual sob a perspectiva da boa-fé objetiva, destacando sua natureza jurídica como dever relacional e instrumento de preservação do vínculo obrigacional. Superando concepções subjetivas e volitivas, a tolerância é aqui compreendida como imposição normativa derivada da convivência contratual, vinculada à proteção da confiança legítima, à continuidade funcional do contrato e à realização de seus fins. A pesquisa adota abordagem teórico-dogmática, com base na doutrina civilista contemporânea, enfatizando os valores da ética do direito privado, como lealdade, equilíbrio, cooperação e estabilidade. Examina-se a função integrativa dos deveres anexos, os limites jurídicos da tolerância e seus efeitos no controle de condutas contraditórias e no enfrentamento do inadimplemento pontual. Conclui-se que a tolerância, fundamentada na boa-fé objetiva, atua como critério de avaliação da execução contratual, impondo condutas compatíveis com a racionalidade relacional e a função social do contrato.
Palavras-chave: Contrato. Tolerância. Boa-fé objetiva. Confiança. Continuidade contratual.
Introdução
A noção de boa-fé objetiva assumiu centralidade no direito contratual contemporâneo, operando como princípio normativo estruturante das relações obrigacionais. Mais do que um princípio de interpretação ou uma cláusula geral de conteúdo vago, a boa-fé passou a representar um conjunto de deveres positivos de conduta, destinados a assegurar a confiança, a cooperação e a estabilidade na execução dos contratos.
Nesse cenário, a tolerância emerge como desdobramento relevante da boa-fé objetiva, embora muitas vezes subestimada pela doutrina. Longe de se restringir a manifestações ocasionais de renúncia tácita ou de comportamento passivo, a tolerância revela-se um elemento estruturante das obrigações contratuais em curso, impondo padrões de comportamento orientados pela convivência, pela função contratual e pela expectativa legítima entre as partes.
A pesquisa que ora se desenvolve parte do pressuposto de que a tolerância contratual não é faculdade subjetiva da parte, tampouco resultado de reiterados comportamentos indulgentes. Trata-se, antes, de um dever jurídico derivado da convivência obrigacional e da funcionalidade do contrato, cuja eficácia independe da vontade individual e pode ser juridicamente exigida em nome da boa-fé objetiva.
Para tanto, adota-se uma abordagem relacional e pragmática do contrato, segundo a qual a execução obrigacional deve ser examinada à luz dos fatos, das condutas e das interações concretas que compõem o cotidiano da relação jurídica. A literalidade do texto contratual cede espaço à interpretação fundada na confiança, na adaptação funcional e nos valores do Direito Privado.
Com esse propósito, o artigo percorre as seguintes etapas: (i) examina a dimensão relacional e a avaliação pragmática dos contratos; (ii) apresenta os valores éticos do direito contratual privado contemporâneo; (iii) reconstrói a boa-fé objetiva como princípio normativo e funcional; (iv) analisa a tolerância como dever relacional e seus limites jurídicos; e (v) defende sua relevância para a continuidade contratual e mitigação de perdas.
O estudo conclui pela necessidade de reconhecimento da tolerância como elemento normativo autônomo, capaz de restringir condutas contraditórias, preservar a confiança legitimamente constituída e assegurar a efetividade da boa-fé no plano da execução contratual.
2. Dimensão relacional e avaliação pragmática do contrato
A teoria contratual contemporânea passou a reconhecer que o contrato não é apenas um instrumento jurídico fundado em declarações formais de vontade, mas um fenômeno complexo, permeado por valores sociais, práticas reiteradas e padrões de comportamento dotados de significação jurídica. Tal visão desloca o centro da análise do contrato para a realidade de sua execução, superando os modelos formalistas e atomistas da teoria clássica. Como bem observa Macneil (2001), os contratos não podem ser compreendidos isoladamente das relações sociais que os permeiam, pois se desenvolvem ao longo do tempo, com ajustes, concessões e expectativas recíprocas.
Essa mudança teórica se insere na chamada teoria relacional do contrato, que busca compreender o vínculo obrigacional como relação dinâmica, em contínua adaptação, caracterizada pela interdependência entre os contratantes e pela necessidade de cooperação para o cumprimento dos fins convencionados. Não se trata de negar a autonomia da vontade, mas de reconhecer que, em contextos de execução prolongada e complexa, essa autonomia deve ser reinterpretada à luz da convivência prática e das finalidades objetivas da relação obrigacional (FRAZÃO, 2018).
Ao adotar uma perspectiva relacional, o Direito passa a considerar que os fatos que ocorrem durante a execução do contrato possuem força normativa, influenciando a interpretação das cláusulas, a aferição da boa-fé e a definição do inadimplemento. A convivência cotidiana entre os contratantes passa a gerar expectativas legítimas de continuidade, de cooperação e de adequação mútua, que não podem ser ignoradas pela aplicação estrita e formal da letra contratual.
Judith Martins-Costa (2009) destaca que os contratos, ao serem inseridos em contextos concretos, assumem uma dimensão existencial que os afasta da abstração normativa clássica. A interpretação e a execução devem levar em conta os fins almejados pelas partes, bem como o comportamento que se espera reciprocamente em razão da natureza do vínculo. Nesse sentido, a leitura pragmática do contrato implica reconhecer que a norma jurídica que o rege se constrói na interação entre as partes, não apenas no texto firmado.
A dimensão relacional também se conecta à exigência de funcionalidade do contrato. A relação obrigacional deve ser analisada com base em sua utilidade recíproca, em sua capacidade de realizar os objetivos sociais e econômicos para os quais foi criada. A ruptura do vínculo, quando ocorre sem fundamento adequado ou em afronta às expectativas geradas pela convivência, configura inadimplemento relacional e viola os padrões normativos da boa-fé.
Por essa razão, a teoria relacional não admite uma abordagem exclusivamente normativista ou declarativa do contrato. Ao contrário, propõe uma avaliação dos efeitos do pacto com base no contexto concreto, nos comportamentos recíprocos e na função que o contrato exerce no plano real. O Direito passa, assim, a tutelar não apenas o consentimento inicial, mas a relação em sua inteireza, valorizando a confiança, a estabilidade e a coerência como pilares da normatividade obrigacional.
3. Ética do Direito Privado e os valores contratuais
A boa-fé objetiva, enquanto princípio estruturante do Direito das Obrigações, projeta-se não apenas como diretriz de comportamento intersubjetivo, mas também como expressão de valores éticos fundamentais que permeiam a ordem privada. Ela integra o núcleo normativo de um Direito Contratual que deixa de ser puramente volitivo para assumir feição relacional, finalística e substancial, comprometida com a justiça interna do vínculo obrigacional.
Nesse sentido, a boa-fé traduz um compromisso ético com a estabilidade, a cooperação, o cuidado e o equilíbrio material entre as partes. Tais valores operam como exigências objetivas impostas à conduta contratual, não derivando da vontade individual, mas do próprio sistema normativo. A ética contratual moderna demanda, portanto, que a liberdade de contratar seja exercida e executada de forma leal e funcional, respeitando não apenas os termos expressos do pacto, mas as expectativas legítimas que dele decorrem no curso da relação obrigacional (TAN, 2021).
O contrato deixa de ser apenas um acordo de vontades para se tornar, na concepção atual, uma instituição social dotada de função econômica e ética. Como assinala Cláudia Lima Marques (2019), o contrato deve ser instrumento de realização de interesses legítimos, mediado por critérios de utilidade, confiança e solidariedade, que conferem ao vínculo obrigacional densidade axiológica e operativa.
A legitimidade da expectativa contratual não se funda em comportamentos subjetivos ou históricos isolados, mas na inserção do contrato no universo normativo do Direito Privado, que exige dos contratantes uma postura proativa de preservação do equilíbrio da relação. Nesse contexto, o acolhimento normativo da expectativa significa o reconhecimento, pelo ordenamento, de situações concretas geradoras de confiança legítima, de modo que a surpresa e a ruptura injustificada da convivência contratual sejam juridicamente inadmissíveis (FRAZÃO, 2018).
A noção de justiça contratual, nesse panorama, não se realiza na simples correspondência entre cláusulas e prestações, mas na efetiva realização dos fins convencionados e na conformidade da conduta das partes com os valores do Direito Privado. A autonomia da vontade, portanto, não se exerce em vazio ético: ela cede diante da função social do contrato e da exigência de lealdade, de modo que a forma jurídica não se sobreponha ao conteúdo relacional do vínculo (MARTINS-COSTA, 2009).
Em síntese, a boa-fé objetiva projeta uma ética contratual fundada na confiança normativa, na funcionalidade da relação e na solidariedade jurídica. Essa ética exige que as partes mantenham condutas coerentes com o pacto assumido, e que contribuam, de forma recíproca, para a realização de seus objetivos comuns — mesmo em face de adversidades, inadimplementos pontuais ou necessidade de adaptação.
4. Boa-fé objetiva e o princípio da confiança
A boa-fé objetiva configura um princípio jurídico que transcende a intenção subjetiva dos contratantes, impondo padrões de comportamento ético, leal e coerente, fundados na confiança recíproca. Sua função é garantir a estabilidade das relações contratuais, mediante a proteção das legítimas expectativas geradas no curso da execução do pacto. Não se trata de um ideal moral vago, mas de um critério normativo concreto, cuja aplicação decorre da necessidade de garantir previsibilidade e continuidade no cumprimento das obrigações pactuadas (MARTINS-COSTA, 2009).
O princípio da confiança, que dela se irradia, funda-se na ideia de que o ordenamento jurídico protege não apenas o conteúdo explícito do contrato, mas também as legítimas expectativas que dele emanam. A proteção da confiança objetiva requer que os contratantes atuem com coerência ao longo do tempo, evitando surpresas ou mudanças bruscas de postura que frustrem a continuidade útil da relação contratual. Exigir de modo literal e repentino o cumprimento estrito de cláusulas antes flexibilizadas — mesmo que formalmente válidas — configura, nesse contexto, violação do dever de confiança e comportamento contraditório.
Conforme salienta Floris Tan (2021), o princípio da confiança contratual não pode estar atrelado a comportamentos anteriores tolerantes, mas sim a uma avaliação objetiva da execução como um todo. Trata-se de um imperativo de lealdade que exige da parte a consideração dos efeitos previsíveis de seus atos sobre o vínculo e sobre a outra parte. O critério não é a intenção, mas o efeito da conduta no plano da relação.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2020) observam que a confiança jurídica representa uma forma de contenção do poder privado no exercício dos direitos, especialmente quando há ruptura abrupta da previsibilidade contratual. Isso se manifesta em condutas contraditórias, como a exigência de prestações de forma súbita, contrariando o padrão de execução até então observado.
A confiança protegida pela boa-fé objetiva, portanto, é de natureza normativa e não se confunde com sentimentos pessoais de segurança. Ela impõe deveres jurídicos de cuidado, comunicação, esclarecimento e lealdade, os quais são exigíveis em qualquer etapa do contrato, independentemente da manifestação anterior de vontade das partes. A confiança é, assim, instrumento de estabilidade, adaptação e continuidade, projetando-se como fundamento da segurança jurídica relacional (FRAZÃO, 2018).
Nesse cenário, é a partir da boa-fé que se extraem critérios para a avaliação da coerência e previsibilidade das condutas contratuais. O que se protege é a expectativa legítima de que as partes atuem com racionalidade relacional, não surpreendendo a contraparte com exigências inesperadas, sobretudo quando a convivência contratual estabeleceu outro padrão funcional.
5. Boa-fé objetiva e deveres anexos
A incidência da boa-fé objetiva sobre a execução contratual não se limita à interpretação das cláusulas ou à repressão de comportamentos contraditórios. Ela fundamenta um conjunto de deveres autônomos, também denominados deveres anexos ou laterais, que operam como exigências éticas e funcionais de conduta durante todas as fases do contrato. Esses deveres não decorrem expressamente do texto contratual, mas são imputados às partes em razão da própria estrutura relacional do vínculo obrigacional.
Conforme observa Judith Martins-Costa (2009), os deveres anexos são projeções concretas da boa-fé objetiva e expressam o compromisso normativo com a lealdade, o cuidado, a cooperação e a preservação do equilíbrio material. São exigíveis independentemente de cláusula específica, e sua violação configura inadimplemento contratual, ainda que a obrigação principal tenha sido formalmente cumprida. Trata-se de uma dimensão normativa que reforça o conteúdo ético do contrato e amplia sua função social.
Entre os deveres anexos mais reconhecidos na doutrina estão: o dever de informação, o dever de cooperação, o dever de proteção do interesse alheio e o dever de não contradição. Tais deveres têm natureza objetiva e funcional, pois visam assegurar que o contrato atinja seus fins de maneira útil e harmônica, mesmo diante de adversidades ou alterações de contexto. A omissão em informar riscos relevantes, a recusa em colaborar para a continuidade do vínculo ou a adoção de posturas abruptas e imprevisíveis violam esses deveres, frustrando a confiança normativa entre as partes (FRAZÃO, 2018).
Ana Frazão salienta que os deveres anexos se fundamentam em uma concepção relacional do contrato, na qual a execução não é vista como simples cumprimento técnico de prestações, mas como processo interativo, exigente de condutas compatíveis com a confiança recíproca e a boa administração da relação obrigacional. A inobservância dessas exigências revela não apenas descumprimento do contrato, mas desprezo pelas finalidades institucionais do Direito Privado contemporâneo.
De acordo com Floris Tan (2021), os deveres anexos não são exceções nem extrapolações interpretativas, mas verdadeiras obrigações normativas impostas a todos os contratantes. Eles operam como mecanismos de equilíbrio e como critérios de avaliação da conduta, independentemente da vontade das partes, e são fundamentais para mitigar perdas, adaptar a relação e evitar abusos.
O reconhecimento dos deveres anexos reforça a noção de que o contrato não se esgota no seu conteúdo literal. A convivência jurídica exige mais do que o cumprimento formal: exige comportamento coerente, funcional e ético, de modo a preservar a confiança, assegurar o resultado útil e evitar a frustração do pacto. A boa-fé objetiva, portanto, transforma-se em núcleo de deveres positivos que informam a conduta contratual e integram a própria obrigação.
6. Tolerância como dever relacional
A tolerância contratual, tradicionalmente compreendida como um comportamento subjetivo de renúncia tácita ou aceitação reiterada de desvios, deve ser ressignificada à luz da boa-fé objetiva. Mais do que um fenômeno psicológico ou de fato, ela revela-se como dever relacional, imposto normativamente a partir da convivência obrigacional e da função integrativa do vínculo contratual. Sua base não está na vontade da parte que tolera, mas na preservação da estabilidade, da confiança e da continuidade funcional da relação.
Conforme salienta Floris Tan (2021), a tolerância não se constitui apenas como reflexo de um comportamento anterior, mas como uma projeção normativa da boa-fé que exige posturas compatíveis com a convivência estabelecida entre os contratantes. Não se trata de liberalidade, mas de um dever ético-jurídico que impõe o respeito a expectativas legítimas, construídas no dia a dia da execução contratual, mesmo que não estejam positivadas.
Nesse sentido, Ana Frazão (2018) sustenta que a boa-fé objetiva requer a preservação da coerência e da lealdade entre as partes, de forma que mudanças unilaterais, súbitas e formais, destoantes da realidade relacional construída, sejam vedadas por violarem o princípio da confiança e a racionalidade relacional. A tolerância, portanto, impõe-se não como concessão, mas como exigência de conduta conforme os fins contratuais e a convivência funcional.
A exigência rigorosa e literal de cláusulas previamente flexibilizadas — sem que se demonstre alteração objetiva da relação ou má-fé da contraparte — configura, nesse quadro, comportamento contraditório, juridicamente reprovável. Como esclarece Cristiano Chaves de Farias (2020), a confiança não está vinculada ao subjetivismo da parte tolerada, mas à normatividade que estrutura a relação e impõe o dever de continuidade funcional do contrato, mesmo diante de pequenas falhas ou inexecuções pontuais.
Judith Martins-Costa (2009) reforça que o comportamento exigido pela boa-fé não é aquele que reflete a vontade unilateral, mas sim o que é social e juridicamente esperado diante das circunstâncias. A tolerância assume, assim, função de salvaguarda da convivência contratual, evitando rupturas injustificadas, exigências formais e condutas que contradigam a utilidade material da relação. É um mecanismo normativo que atua para mitigar perdas, preservar a função do pacto e promover a realização equilibrada dos interesses das partes.
Em suma, a tolerância contratual, quando fundamentada na boa-fé objetiva, transforma-se em dever jurídico que transcende o comportamento anterior da parte. Ela impõe uma postura de prudência, cuidado e consideração pelas expectativas normativamente legítimas, tornando-se critério de avaliação da conduta contratual em todas as suas fases.
7. Limites e efeitos da tolerância
A tolerância, compreendida como dever relacional oriundo da boa-fé objetiva, não possui caráter absoluto. Sua eficácia encontra limites jurídicos que visam preservar a funcionalidade do contrato, a reciprocidade das obrigações e a integridade da confiança normativa. A concepção moderna do Direito Contratual exige que a tolerância seja interpretada à luz da utilidade da relação, da continuidade justificada do vínculo e da concretização dos fins convencionados pelas partes.
A função primordial da tolerância é assegurar a estabilidade da execução contratual e mitigar rupturas fundadas em formalismos ou surpresas. Entretanto, essa atuação não pode conduzir à completa descaracterização da obrigação ou à negação da estrutura jurídica pactuada. Como observa Judith Martins-Costa (2009), a boa-fé impõe limites que evitam a degeneração da confiança em permissividade ou conivência com o inadimplemento substancial. Contudo, quando se trata de falhas pontuais ou inexecuções marginais, a postura tolerante imposta pela boa-fé não apenas se legitima, como se impõe.
A admissibilidade da tolerância jurídica deve ser avaliada em perspectiva relacional. Floris Tan (2021) argumenta que o critério não é a frequência do comportamento tolerado, mas a legitimidade da expectativa fundada na execução concreta do contrato. Logo, a reiteração não é um requisito necessário: o que importa é a coerência entre os atos praticados e a confiança que deles se extrai sob a ótica da funcionalidade contratual. Exigir repentinamente a execução literal de uma cláusula flexibilizada durante a convivência obrigacional — mesmo que por única vez — pode constituir violação à boa-fé, caso represente contradição grave em relação ao curso da execução.
Ana Frazão (2018) complementa que os efeitos jurídicos da tolerância não decorrem da vontade subjetiva das partes, mas de sua valoração normativa à luz dos valores do Direito Privado. A tolerância é, pois, oponível à parte que rompe a continuidade funcional do pacto sem fundamento razoável, servindo como parâmetro de invalidade de condutas arbitrárias e abruptas. Nessa linha, sua aplicação pode impedir a resolução unilateral do contrato, a imposição de penalidades desproporcionais e o afastamento da continuidade útil da relação.
Além disso, a tolerância projetada pela boa-fé objetiva tem efeito integrativo e adaptativo. Como enfatiza Cristiano Chaves de Farias (2020), ela atua para reequilibrar a execução contratual em face de fatos supervenientes ou circunstâncias imprevistas, sem necessidade de revisão judicial formal, funcionando como instrumento espontâneo de modulação da relação obrigacional.
Conclui-se, portanto, que os limites da tolerância não residem em sua frequência ou aceitação tácita, mas na análise global da convivência contratual, do padrão de confiança estabelecido e dos fins visados pelas partes. Seus efeitos jurídicos decorrem diretamente da boa-fé objetiva e da racionalidade relacional, impondo comportamentos compatíveis com a manutenção da utilidade e da função do contrato.
8. Continuidade contratual e tolerância
A preservação do contrato, enquanto relação jurídica útil e funcional, representa valor central do direito privado contemporâneo. A continuidade contratual é expressão do compromisso com a estabilidade das relações obrigacionais, a segurança jurídica e a realização dos fins convencionados pelas partes. Nesse contexto, a tolerância adquire função instrumental, atuando como mecanismo normativo de sustentação do vínculo diante de inexecuções pontuais, oscilações práticas e eventos adversos previsíveis.
A boa-fé objetiva impõe a preservação do contrato sempre que a ruptura imediata e unilateral não se mostre razoável ou proporcional. Como afirma Cláudia Lima Marques (2019), o direito contratual moderno não tolera a dissolução do vínculo por mera inobservância formal, quando ainda subsiste utilidade prática e possibilidade de continuidade relacional. A função social do contrato impõe o dever de manutenção do pacto, desde que os objetivos essenciais possam ser atingidos por meio da cooperação e da adaptação.
Nesse horizonte, a tolerância aparece como manifestação concreta da função conservadora do direito contratual. Segundo Ana Frazão (2018), o dever de tolerar certas falhas ou comportamentos não ideais — desde que pontuais e não dolosos — decorre da necessidade de garantir a perenidade da relação e proteger as legítimas expectativas da contraparte. Não se trata de condescendência, mas de uma exigência normativa fundada nos princípios da confiança, da utilidade mútua e da racionalidade prática.
Judith Martins-Costa (2009) sustenta que a continuidade contratual é exigível quando a prestação ainda realiza, ao menos em parte, os fins do contrato, sendo a resolução medida extrema e subsidiária. A tolerância, nesse sentido, torna-se instrumento de recomposição e estabilidade, possibilitando ajustes que preservem o equilíbrio material sem que se comprometa a base funcional da relação.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2020) destacam que o contrato deve ser compreendido como processo, e não como ato isolado. A execução não é estática, e a sua adaptação em razão de acontecimentos supervenientes — inclusive mediante o dever de tolerância — é manifestação legítima da boa-fé objetiva. O inadimplemento, nesse prisma, não é fato imprevisível ou desmoralizante, mas elemento integrante da vida contratual, passível de superação pela via da continuidade.
Assim, a tolerância contribui para a realização dos objetivos contratuais ao permitir o enfrentamento cooperativo de dificuldades sem dissolução precoce do vínculo. Essa racionalidade relacional exige que o direito se ocupe menos da punição do erro e mais da reconstrução da confiança e da funcionalidade da relação jurídica, desde que não haja má-fé ou inadimplemento essencial.
Conclusão
O estudo da tolerância à luz da boa-fé objetiva revela que o contrato, na ordem jurídica contemporânea, é mais do que um acordo de vontades — é uma relação jurídica viva, fundada em confiança normativa, funcionalidade e cooperação mútua. A boa-fé, compreendida como princípio normativo, projeta uma ética relacional que orienta o comportamento das partes em todas as fases do vínculo obrigacional, exigindo condutas pautadas por estabilidade, cuidado, adaptação e lealdade.
Nesse cenário, a tolerância não se apresenta como liberalidade subjetiva nem como renúncia tácita condicionada a comportamentos reiterados. Ela constitui, ao contrário, um dever jurídico derivado da convivência obrigacional, vinculado à expectativa legítima de continuidade, coerência e preservação do contrato. Seu fundamento não está na repetição do comportamento tolerado, mas na normatividade da confiança e na necessidade de proteger o equilíbrio material da relação.
A análise relacional do contrato, com ênfase na pragmática da execução e na função institucional do pacto, permite compreender a tolerância como instrumento legítimo de adaptação funcional e de mitigação de perdas. A ruptura imotivada ou a exigência repentina de cláusulas formalmente válidas, mas já flexibilizadas na convivência, revelam-se incompatíveis com a racionalidade relacional exigida pela boa-fé objetiva.
Além disso, a tolerância atua como vetor de continuidade contratual, promovendo a preservação do vínculo sempre que o inadimplemento for pontual, superável ou funcionalmente irrelevante. O contrato não é regido pela rigidez, mas pela utilidade. E a superação de falhas eventuais, mediante colaboração e ajustamento, constitui exigência de justiça contratual compatível com os valores do direito privado contemporâneo.
Portanto, a tolerância deve ser reconhecida como instrumento normativo eficaz na execução dos contratos, com potencial para promover equilíbrio, estabilidade, reciprocidade e realização dos fins convencionados. Sua função jurídica transcende o subjetivismo, estruturando-se na objetividade da confiança e na responsabilidade relacional das partes.
Referências
CHAVES DE FARIAS, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: contratos. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
FRAZÃO, Ana. Contratos, boa-fé e função social: por uma releitura do papel do direito contratual no Estado Constitucional. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2018.
LIMA MARQUES, Cláudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
MACNEIL, Ian R. The relational theory of contract: selected works of Ian Macneil. London: Sweet & Maxwell, 2001.
MARTINS-COSTA, Judith. Boa-fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
TAN, Floris. Boa-fé objetiva e teoria relacional dos contratos: fundamentos para uma dogmática relacional no Direito Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2021.