Título: O Enriquecimento Ilícito na Administração Pública e a Evolução da Lei de Improbidade: Análise Crítica da Necessidade do Nexo de Causalidade
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor da UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e em Compliance (FGV-SP)
Resumo
O presente artigo analisa a evolução do conceito de enriquecimento ilícito na Administração Pública brasileira, com foco nas alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (LIA). O estudo debate a necessidade de comprovação do nexo de causalidade entre o aumento patrimonial e o exercício do cargo público, em contraposição à antiga jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que permitia a presunção de ilicitude.
A análise da nova redação da lei e dos princípios constitucionais, como a presunção de inocência, evidencia um movimento legislativo e doutrinário em favor de uma abordagem mais garantista. Argumenta-se que a comprovação do nexo de causalidade é um requisito indispensável, e não uma mera formalidade. A expectativa é que o julgamento do Tema 1199 de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF) consolide esse entendimento, estabelecendo um novo padrão probatório que equilibre o combate à corrupção com as garantias processuais do agente público.
Palavras-chave: Enriquecimento Ilícito; Lei de Improbidade Administrativa; Nexo de Causalidade; Presunção de Inocência; Tema 1199.
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico Legislativo do Combate ao Enriquecimento Ilícito no Brasil. 3. A Necessidade do Nexo de Causalidade: Uma Análise da Nova Lei e do Debate Doutrinário. 3.1 A divergência entre a jurisprudência antiga do STJ e a doutrina. 4. A LIA Pós-2021 e a Consolidação de Garantias Processuais. 4.1 A Nulidade de Algibeira e a Boa-Fé Processual. 4.2 O Princípio da Não Surpresa e a Exigência de Provas. 4.3 A Inversão do Ônus da Prova e o Artigo 17, § 19, II, da LIA. 5. A Jurisprudência Pós-Lei nº 14.230/2021: A Nova Abordagem dos Tribunais. 5.1. A Aplicação do Princípio da Especialidade pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS). 5.2. O Ônus da Prova do Nexo Causal e a Posição do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). 5.3. A Superação da Presunção de Ilicitude pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). 6. O Tema 1199 do STF: Evolução Patrimonial a Descoberto e o Limite da Presunção. 7. Considerações Finais. 8. Referências
1. Introdução
O combate ao enriquecimento ilícito de agentes públicos é uma questão que permeia a história da civilização, sendo um dos maiores desafios à integridade e à legitimidade das instituições governamentais. No Brasil, essa luta ganhou contornos mais definidos com a promulgação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992), um marco no ordenamento jurídico destinado a coibir desvios de conduta na gestão pública.
Embora a lei tenha sido um avanço, sua aplicação e interpretação geraram controvérsias significativas, especialmente no que tange à necessidade de se comprovar o vínculo entre o aumento patrimonial do agente e o exercício de sua função.
Por um longo período, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que o enriquecimento ilícito poderia ser presumido a partir da simples constatação de uma evolução patrimonial "a descoberto", ou seja, uma incompatibilidade com a renda lícita declarada.
Essa abordagem, contudo, foi amplamente questionada por doutrinadores, que a consideravam uma violação direta a princípios constitucionais fundamentais, como a presunção de inocência e a necessidade de prova do elemento subjetivo (dolo) e do nexo de causalidade para a configuração do ato ímprobo.
Diante desse cenário de incertezas e da necessidade de aprimorar a legislação, a Lei nº 14.230/2021 promoveu alterações substanciais na LIA, introduzindo a expressão "em razão de" no artigo 9º.
Tal modificação representa um ponto de inflexão na interpretação jurídica do tema, ao exigir explicitamente a demonstração de que o acréscimo patrimonial foi obtido em decorrência do exercício do cargo, mandato, emprego ou função pública.
Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar a evolução legislativa e jurisprudencial do enriquecimento ilícito na Administração Pública brasileira. Pretende-se demonstrar que a nova redação da LIA, ao reforçar o caráter garantista da norma, torna indispensável a comprovação do nexo de causalidade para a configuração do ato de improbidade.
Para tanto, será realizada uma revisão bibliográfica e uma análise da nova sistemática probatória da LIA, com especial atenção ao Tema 1199 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF), cujo julgamento promete definir os rumos da matéria no país.
2. Histórico Legislativo do Combate ao Enriquecimento Ilícito no Brasil
O enriquecimento ilícito na área pública é um problema que existe desde os primórdios da civilização. Apesar das leis e regulamentos que combatem o enriquecimento ilícito na área pública, o problema continua a ser grave. Algumas razões para a persistência do enriquecimento ilícito na área pública incluem: a falta de transparência na gestão pública; a falta de controle social da gestão pública; a impunidade dos agentes públicos envolvidos em casos de enriquecimento ilícito.
Em escorço histórico podemos citar, em matéria de legislação administrativo-financeira, o Código de Contabilidade Pública da União (Decreto-Lei nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922), que trazia disposições a respeito do enriquecimento ilícito na área pública. O Código de Contabilidade Pública da União previa que os agentes públicos deveriam prestar contas de sua gestão, e que os responsáveis por irregularidades deveriam responder civil e criminalmente.
Apesar de conter dispositivos incipientes, verifica-se que havia disposições do Código de Contabilidade Pública da União que eram consideradas úteis para combater o enriquecimento ilícito na área pública, tais como o dever dos agentes públicos de prestar contas de sua gestão, com responsabilização civil e criminal por irregularidades. No entanto, essas disposições eram insuficientes para combater o enriquecimento ilícito na área pública.
Posteriormente, restou editada a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que também traz disposições a respeito do enriquecimento ilícito na área pública. A Lei 4.320/64 prevê que os agentes públicos devem prestar contas de sua gestão, e que os responsáveis por irregularidades devem responder civil e criminalmente. No entanto, é importante ressaltar que a Lei 4.320/64 é uma lei geral de direito financeiro, e suas disposições sobre o enriquecimento ilícito na área pública são limitadas.
O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, também traz disposições a respeito do enriquecimento ilícito na área pública, já que reza que os servidores públicos federais devem declarar seus bens e rendas e que os atos de improbidade administrativa serão punidos com a pena de demissão.
A Lei de Improbidade Administrativa, de 1992, é uma lei específica de combate à corrupção, e suas disposições sobre o enriquecimento ilícito na área pública são mais abrangentes e detalhadas. Tal norma, como se reconhece à larga, trouxe inovações importantes para o combate ao enriquecimento ilícito na área pública.
A Lei de Improbidade Administrativa prevê que os agentes públicos que se enriquecerem ilicitamente na área pública podem ser condenados a perda dos bens adquiridos ilicitamente, suspensão dos direitos políticos e inelegibilidade.
Além disso, a Lei de Improbidade Administrativa criou mecanismos para facilitar a investigação e a punição dos agentes públicos envolvidos em casos de enriquecimento ilícito. A Lei de Improbidade Administrativa foi um avanço importante no combate ao enriquecimento ilícito na área pública. No entanto, ainda há muito a ser feito para combater esse problema.
3. A Necessidade do Nexo de Causalidade: Uma Análise da Nova Lei e do Debate Doutrinário
Para que seja caracterizado o enriquecimento ilícito na Lei de Improbidade Administrativa, é necessário que estejam presentes os seguintes elementos: Agente público (a pessoa que exerce cargo, mandato, emprego ou função na administração pública); Vantagem patrimonial (o aumento patrimonial que ocorre sem que haja uma causa jurídica que o justifique) e Indevidade (a falta de causa jurídica que justifique o aumento patrimonial).
A interpretação literal do artigo 9º sugere que a demonstração de nexo de causalidade entre a evolução patrimonial e o exercício do cargo, mandato ou função pública é necessária para a configuração do enriquecimento ilícito.
Isso porque o artigo exige que a vantagem patrimonial seja obtida "em razão" do exercício do cargo, mandato ou função pública. Assim, nos casos de evolução patrimonial a descoberto, a Administração Pública tem o ônus de demonstrar que a incompatibilidade entre a evolução patrimonial e a renda lícita do agente público não se deve a causas lícitas, como herança, doação ou investimento. Se a Administração Pública não conseguir demonstrar isso, o enriquecimento ilícito não estará configurado.
Os entendimentos no sentido de que o nexo de causalidade entre a evolução patrimonial e o exercício do cargo, mandato ou função pública é necessário para a configuração do enriquecimento ilícito podem ser divididos em duas categorias: a interpretação literal do artigo 9º da Lei de Improbidade Administrativa e os entendimentos baseados no princípio da moralidade administrativa. Ambos consideram que a relação causal é fundamental para que se conclua pela má-fé e pela violação da moralidade.
A doutrina corrobora a necessidade de o autor demonstrar o nexo de causalidade. Como ensina Carlos Maximiliano, a lei não contém palavras inúteis e, portanto, a introdução da expressão “em razão deles” no texto legal pela Lei nº 14.230/2021 deve ser interpretada como uma exigência para a configuração do ato de improbidade. Sem a demonstração do nexo de causalidade, não há como atribuir, por mera presunção, o enriquecimento à decorrência do exercício do cargo ou função.
3.1 A divergência entre a jurisprudência antiga do STJ e a doutrina
É certo, como contraponto, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) destoa da lição doutrinária consolidada no que diz respeito à necessidade de o autor demonstrar o nexo de causalidade para configuração do enriquecimento ilícito.
Com efeito, o STJ tem decidido que, em ações de improbidade administrativa, o autor ministerial não precisa demonstrar o nexo de causalidade entre o aumento patrimonial do agente público e o exercício do cargo público. O STJ entende que o enriquecimento ilícito é presumido, bastando a demonstração do aumento patrimonial. Essa jurisprudência do STJ foi consolidada no julgamento do Recurso Especial nº 1.171.862/DF, de relatoria do Ministro Humberto Martins, em 2011.
Essa jurisprudência do STJ destoa da lição doutrinária consolidada por dois motivos principais: primeiro, porque a presunção de enriquecimento ilícito contraria o princípio da presunção de inocência; segundo, porque a presunção de enriquecimento ilícito pode levar à responsabilização de agentes públicos que não praticaram atos de improbidade administrativa.
4. A LIA Pós-2021 e a Consolidação de Garantias Processuais
A profunda alteração da Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/2021 não se limitou a redefinir os tipos de atos de improbidade. Ela também trouxe um novo fôlego ao processo administrativo e judicial, consolidando garantias que buscam evitar abusos e assegurar um julgamento justo. Neste contexto, ganham especial relevância a vedação da nulidade de algibeira, a concretização do princípio da não surpresa e a expressa proibição da inversão do ônus da prova.
4.1 A Nulidade de Algibeira e a Boa-Fé Processual
A nulidade de algibeira (ou nulidade de bolso) é um instituto que coíbe a má-fé processual. Ocorre quando uma parte, ciente de um vício ou defeito processual, opta por não o alegar imediatamente, guardando-o para um momento estratégico no futuro, com o intuito de invalidar o processo caso o resultado não lhe seja favorável. Embora a nova LIA tenha fortalecido as garantias do agente público, essa postura é frontalmente contrária ao princípio da boa-fé processual.
A nova legislação, ao exigir que a petição inicial detalhe as condutas dolosas e o nexo de causalidade, impõe um ônus de clareza e transparência ao autor da ação. Isso, por sua vez, exige que a defesa do réu atue com a mesma boa-fé, levantando vícios e nulidades nos momentos oportunos, sob pena de preclusão.
Em um cenário onde a prova da ilicitude não pode ser presumida, o sistema jurídico exige que tanto o Ministério Público quanto o réu atuem de forma colaborativa e leal para que a verdade dos fatos seja alcançada, em vez de permitir que a defesa se utilize de nulidades para desconstituir um processo de forma ardilosa.
4.2 O Princípio da Não Surpresa e a Exigência de Provas
O princípio da não surpresa, incorporado ao nosso ordenamento jurídico, especialmente pelo Código de Processo Civil, garante que as partes não sejam pegas de surpresa por fatos, argumentos ou provas não discutidos previamente no processo. Ele assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa, permitindo que cada parte prepare sua resposta de forma adequada.
A nova LIA materializa esse princípio de forma contundente ao proibir expressamente que a acusação se baseie em meras presunções. A exigência de que o autor demonstre o dolo e o nexo de causalidade entre o ato e o enriquecimento do agente público é a mais clara manifestação do princípio da não surpresa.
O Ministério Público não pode mais iniciar a ação com base em uma "evolução patrimonial a descoberto" genérica, esperando que o réu se "autoincrimine" ao tentar justificar sua fortuna. O ônus de apresentar provas robustas e detalhadas, desde a petição inicial, é do autor da ação, garantindo que o agente público tenha todos os elementos para sua defesa desde o início do processo.
4.3 A Inversão do Ônus da Prova e o Artigo 17, § 19, II, da LIA
A inversão do ônus da prova é o ponto nodal. Antes da Lei nº 14.230/2021, a jurisprudência do STJ, ao presumir a ilicitude do enriquecimento, efetivamente invertia o ônus, pois cabia ao agente público provar que a sua evolução patrimonial tinha origem lícita. A nova legislação buscou, de forma expressa, encerrar essa prática.
A inclusão do artigo 17, § 19, inciso II, da LIA — que veda a imposição do ônus da prova ao réu — é um dos dispositivos mais importantes para reafirmar a presunção de inocência. Ele harmoniza a LIA com os princípios constitucionais e processuais.
Entretanto, como demonstrado pelo julgado do TJMS, a questão não é tão simples quanto uma total proibição. Existe uma distinção sutil e fundamental:
Ônus da prova da ilicitude: Compete ao autor da ação (Ministério Público ou a pessoa jurídica lesada) provar a existência do ato ímprobo, a presença do dolo e o nexo de causalidade com o enriquecimento. Este ônus não pode ser invertido.
Dever de justificar a evolução patrimonial: Compete ao réu demonstrar a licitude da sua evolução patrimonial. Isso não é uma inversão do ônus da prova da ilicitude, mas sim um dever de cooperação com a Justiça, uma vez que o réu é a parte mais apta a apresentar a origem de seus próprios bens. No entanto, se o réu não conseguir demonstrar a licitude de um acréscimo patrimonial, isso por si só não implica em condenação, mas sim em um forte indício que, somado a outras provas (estas, sim, de responsabilidade do autor da ação), poderá levar à configuração do ato ímprobo.
Essa diferenciação é crucial para o seu artigo, pois ela mostra que a nova LIA não permite condenações automáticas, mas exige um processo justo e bem fundamentado, onde cada parte cumpre seu papel probatório, sem que a presunção de inocência seja violada.
5. A Jurisprudência Pós-Lei nº 14.230/2021: A Nova Abordagem dos Tribunais
Conforme demonstrado, a alteração da Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/2021 trouxe um novo panorama para o combate ao enriquecimento ilícito. A necessidade de comprovação do nexo de causalidade e a vedação à inversão do ônus da prova, antes defendidas majoritariamente pela doutrina, agora encontram eco na jurisprudência dos tribunais de justiça e regionais federais.
Essas decisões refletem a aplicação imediata da nova legislação, que busca um equilíbrio entre a proteção do patrimônio público e as garantias processuais do agente. A seguir, destacam-se ementas de julgados que ilustram essa mudança de paradigma.
5.1. A Aplicação do Princípio da Especialidade pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS)
O TJMS, em decisão recente, abordou a aparente contradição na nova lei ao conciliar a proibição da inversão do ônus da prova com o dever do réu de justificar a licitude de seu patrimônio. O acórdão utiliza o princípio da especialidade para harmonizar as normas, reafirmando que o ônus da prova da ilicitude permanece com o autor da ação, enquanto o réu apenas precisa justificar a origem de seus bens:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – VEDAÇÃO EXPRESSA DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EM IMPOR AO RÉU O ÔNUS DA PROVA – AFASTADO – RECURSO IMPROVIDO. I - Certo que há norma expressa na lei especial que regula a ação de improbidade administrativa (artigo 17, § 19, II, Lei n. 8.249/92 - com redação dada pela Lei 14 .230/2021), que não admite a inversão do ônus da prova ao Réu. Não menos certo também, que há norma expressa na lei especial que regula a ação de improbidade administrativa (artigo 9º, VII, da Lei 8.429/92 com redação dada pela Lei 14.230/2021), que admite a inversão do ônus da prova ao Réu, quanto ao tema específico da "licitude da evolução patrimonial do Réu". II - Deste cenário e utilizando o instituto do conflito de normas, impõe-se a coexistência entre elas sem que haja rota de colisão, pois que naquilo que é especial não cabe a aplicação da regra geral (e vice versa), através do que se denomina como princípio da especialidade, posta na Lei de Introdução às Normas ao Direito Brasileiro – LINDB (Lei das Leis), mais precisamente, artigo 2º, § 2º. III – Assim, as modificações ocorridas na Lei de Improbidade continua a impor o ônus da prova do fato constitutivo ao Autor da Ação, mais precisamente, a desproporcional evolução do patrimônio do agente público (quanto a esta conduta específica – enriquecimento ilícito – artigo 9º). Contudo, o que é óbvio, assegura ao Réu a prova da licitude desta evolução patrimonial. Assim, cada um tem o ônus da prova de suas pretensões decorrentes da tese e da antítese, nada mais, de forma que quando o magistrado determina ao Réu esse ônus da prova, logicamente, não é para prova da ilicitude de sua conduta, ônus este do Autor da ação. IV - Recurso Improvido.” (TJ-MS - Agravo de Instrumento: 14077217120248120000 Campo Grande, Relator.: Des. Alexandre Bastos, Data de Julgamento: 20/10/2024, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 22/10/2024)
5.2. O Ônus da Prova do Nexo Causal e a Posição do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1)
O TRF-1, ao julgar um caso envolvendo um auditor fiscal, reafirmou a importância do elemento doloso e do nexo de causalidade para a configuração da improbidade por enriquecimento ilícito. A decisão é clara ao determinar que cabe ao Ministério Público Federal o ônus de comprovar o vínculo entre a evolução patrimonial e o exercício do cargo, reforçando o caráter garantista da nova legislação:
“PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 9º, INCISO VII, DA LEI 8.429/92. ALTERAÇÕES DA LEI 14.230/2021. APLICAÇÃO IMEDIATA DOS DISPOSITIVOS. ART. 1º § 4º DA LEI 14.230/2021. PRELIMINAR DE INÉPCIA DA INICIAL AFASTADA. AUDITOR DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL/BA. EVOLUÇÃO PATRIMONIAL INCOMPATÍVEL. ATO ÍMPROBO NÃO COMPROVADO. CABE AO MPF O ÔNUS DA PROVA. RECURSO DO REQUERIDO PROVIDO. APELAÇÃO DO MPF PREJUDICADA. 1. É indevido suscitar inépcia da inicial que narrou, em detalhes, a conduta de improbidade administrativa imputada ao apelante, acrescida de farta documentação, respeitando os princípios da ampla defesa e do contraditório. Preliminar afastada. 2. Para a configuração da improbidade administrativa capitulada no art. 9º, VII, da Lei 8 .429/92, com as alterações da Lei 14.230/21 é necessária a demonstração do elemento subjetivo doloso, bem como a comprovação do efetivo dano acarretado ao erário do Poder Público, sob pena de inadequação típica. 3. O ônus da prova para comprovar o vínculo entre a evolução patrimonial e a o exercício do cargo público é do MPF, sendo imprescindível para a configuração do ato de improbidade administrativa prevista no art . 9º, VII, da Lei 8.429/92. 4. As provas juntadas aos autos não são aptas a comprovar de forma inequívoca que o requerido, em razão da função do cargo exercido na Receita Federal do Brasil, obteve evolução patrimonial incompatível com a sua capacidade financeira. 5. Retificado voto do relator para dar provimento à apelação do requerido e julgar prejudicada a apelação do MPF.” (TRF-1 - (AC): 10041296420174013300, Relator.: DESEMBARGADOR FEDERAL NEY BELLO, Data de Julgamento: 03/11/2023, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: PJe 03/11/2023 PAG PJe 03/11/2023 PAG)
5.3. A Superação da Presunção de Ilicitude pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC)
O Tribunal catarinense, em uma decisão que reformou uma sentença condenatória, também reforçou a necessidade de uma análise à luz da Lei nº 14.230/2021. O julgado demonstra que a simples presunção de ilicitude, baseada em uma evolução patrimonial desproporcional, não mais se sustenta. A Corte concluiu que o Ministério Público tem o dever de comprovar a origem ilícita dos bens, e não apenas sua incompatibilidade com a renda do agente.
“APELAÇÃO CÍVEL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. APURAÇÃO DE EVENTUAL PRÁTICA DA CONDUTA DESCRITA NO ARTIGO 9º, INCISO VII, DA LEI N. 8.429/1992. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS RÉUS. DECISÃO CONDENATÓRIA LASTREADA EM INTERPRETAÇÃO LEGISLATIVA ORIUNDA DA LEITURA DA REDAÇÃO ORIGINÁRIA DO ARTIGO 9º, VII, DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PROVIDÊNCIA INADEQUADA. ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS PROMOVIDAS PELA LEI N. 14 .230/2021 APLICÁVEIS AOS PROCESSOS EM CURSO. TEMA N. 1.199/STF. PRECEDENTES DESTE SODALÍCIO. DISPOSITIVO LEGAL OBJETO DE DELIBERAÇÃO QUE SOFREU SIGNIFICATIVAS MUDANÇAS COM O ADVENTO DA NOVEL LEGISLAÇÃO. EXIGÊNCIA, PARA CONFIGURAÇÃO DA CONDUTA, NÃO APENAS DE QUE A AQUISIÇÃO DE BENS SEJA FEITA NO EXERCÍCIO DO MANDATO, CARGO, EMPREGO OU FUNÇÃO PÚBLICA, MAS QUE NECESSARIAMENTE TENHA ORIGEM NA PRÁTICA DE UM DOS ATOS DESCRITOS NO CAPUT DO ARTIGO 9º DA LIA, NÃO OBSTANTE O DEVER DE COMPROVAÇÃO DA ORIGEM ILÍCITA DOS RECURSOS. ELEMENTOS NÃO COMPROVADOS NO CASO CONCRETO. PRETENSÃO MINISTERIAL RESTRITA À INDICAÇÃO GENÉRICA DE AQUISIÇÃO DE BENS INCOMPATÍVEIS COM A RENDA DO AGENTE PÚBLICO, DE MODO A ILUSTRAR EVOLUÇÃO PATRIMONIAL DESPROPORCIONAL. PRESUNÇÃO DE ILICITUDE QUE NÃO MAIS SUBSISTE NA ATUAL LEITURA DA LEGISLAÇÃO. DEVER DE COMPROVAÇÃO DA ORIGEM ILÍCITA (LEIA-SE, DA PRÁTICA ANTERIOR DE UM ATO DE IMPROBIDADE QUE IMPORTA ENRIQUECIMENTO ILÍCITO) NÃO SATISFEITO PELO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO MINISTERIAL. IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO CONDENATÓRIA QUE SE AFIGURA IMPOSITIVA. SENTENÇA REFORMADA. PEDIDO LIMINAR E SUBSIDIÁRIO PREJUDICADOS. REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS SUCUMBENCIAL. RECURSO PROVIDO” (TJSC, Apelação n. 0900021-59.2018.8 .24.0071, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. André Luiz Dacol, Quarta Câmara de Direito Público, j. 05-10-2023)
6. O Tema 1199 do STF: Evolução Patrimonial a Descoberto e o Limite da Presunção
A recente alteração na Lei de Improbidade Administrativa (LIA) pela Lei nº 14.230/2021, que introduziu a expressão "em razão de" no artigo 9º, alinhou-se a um debate que já era objeto de intensa discussão nos tribunais e na doutrina: a possibilidade de se presumir o enriquecimento ilícito.
Esse cenário de incertezas e a necessidade de uma uniformização interpretativa levaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a admitir a Repercussão Geral sobre o Tema 1199, que define a necessidade de que fique demonstrado o dolo específico para a caracterização do ato de improbidade administrativa.
E esse entendimento se esgalha para o objeto da presente análise, na medida em que o cerne da controvérsia é definir se a mera constatação de uma evolução patrimonial a descoberto — ou seja, uma incompatibilidade entre o patrimônio de um agente público e sua renda lícita declarada — é suficiente para configurar o ato de improbidade administrativa.
Em face do que definido no Tema 1199 de Repercussão Geral do STF, a melhor interpretação que daí se extrai é a de que, em tema de increpação por enriquecimento ilícito em razão de evolução patrimonial a descoberto, para a condenação, é indispensável a prova do nexo de causalidade, ou seja, a demonstração de que o acréscimo patrimonial foi obtido especificamente em decorrência do exercício do cargo ou da função pública.
Esta questão não é meramente processual; ela toca nos fundamentos do Estado de Direito. A fixação de uma tese de Repercussão Geral sobre o tema agrega força vinculante e impactará diretamente o trabalho de investigação do Ministério Público e as garantias processuais dos agentes públicos, anotando-se que o STF decidiu por reforçar a perspectiva garantista da nova LIA, a exigir do autor da ação um esforço probatório maior e mais rigoroso para demonstrar o ato ímprobo.
Ao adotar essa postura, a Corte está harmonizando o controle da moralidade administrativa com princípios constitucionais como o da presunção de inocência. Tal medida impede que um agente público, que possa ter obtido um aumento patrimonial por meios lícitos não diretamente ligados ao seu cargo (como uma herança, doação ou investimento particular), seja condenado sem uma prova robusta.
Em razão desse entendimento adotado pelo STF, que conduz à interpretação de que não se pode falar em presunção de improbidade, a LIA não pode continuar a ser vista como uma ferramenta que inverte o ônus da prova, exigindo que o réu comprove sua inocência, em uma lógica que se opõe ao sistema penal e processual brasileiro.
Assim, o resultado do julgamento do Tema 1199 é de extrema importância, eis que ele não apenas define o futuro das ações de improbidade administrativa no país, mas também reafirma os limites da atuação do poder público e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, inclusive aqueles que exercem funções públicas.
7. Considerações Finais
O problema do enriquecimento ilícito na administração pública, um desafio de longa data na civilização, continua a ser combatido por meio de uma legislação em constante evolução. Conforme analisado, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), em sua versão original de 1992, já trazia importantes disposições, mas a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) criou um debate significativo ao presumir a ilicitude a partir da mera incompatibilidade patrimonial. Essa abordagem, como se demonstrou, entrava em conflito com princípios basilares do direito, como a presunção de inocência e o devido processo legal.
A introdução da expressão "em razão de" no art. 9º da LIA, promovida pela Lei nº 14.230/2021, representa um avanço crucial e um claro movimento em direção a uma abordagem mais garantista. Esta alteração legislativa, resultado de intensas discussões no Congresso Nacional, serve para sacramentar o entendimento de que a condenação por enriquecimento ilícito exige a comprovação do nexo de causalidade entre o aumento patrimonial e o exercício do cargo público. Sem essa demonstração, não se pode presumir a ilegalidade, pois tal presunção seria uma inversão do ônus da prova, vedada pelo novo sistema da LIA.
Dessa forma, o presente estudo conclui que a configuração da improbidade administrativa por enriquecimento ilícito não pode prescindir de três requisitos cumulativos: a existência de um ato ilegal cometido na função do agente, uma lesão efetiva aos cofres públicos decorrente desse ato, e o enriquecimento ilícito do agente, obtido em razão direta da conduta.
A evolução legislativa e jurisprudencial é fundamental para a proteção do patrimônio público, ao mesmo tempo em que garante o direito de defesa do agente público, reforçando o equilíbrio entre o combate à corrupção e os pilares do Estado Democrático de Direito.
8. Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922. Institui o Código de Contabilidade Pública da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del4536.htm. Acesso em: 9 ago. 2025.
BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm. Acesso em: 9 ago. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm. Acesso em: 9 ago. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 9 ago. 2025.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre o regime jurídico dos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14230.htm. Acesso em: 9 ago. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.171.862/DF. Relator: Ministro Humberto Martins, 2011.
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