O sistema de justiça criminal brasileiro na visão de Loic Wacquant

12/08/2025 às 19:11

Resumo:


  • O sistema carcerário brasileiro enfrenta desafios como superlotação, condições precárias e falta de recursos para ressocialização dos detentos.

  • O elevado índice de encarceramento, inclusive de pessoas sem condenação, reflete políticas punitivas e legislação com penas severas para os mais vulneráveis.

  • O sistema prisional brasileiro é marcado por uma cultura higienista, superlotação, presença de presos provisórios e seletividade penal, sendo necessárias reformas estruturais urgentes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Introdução

O sistema carcerário brasileiro apresenta diversas características que refletem os desafios e as complexidades enfrentadas na gestão da justiça criminal no país.

Ele é marcado por um elevado índice de encarceramento, inclusive de pessoas sem condenação, muitas vezes resultante de políticas punitivas e de uma legislação que prevê penas severas para os mais vulneráveis.

Ademais, o sistema prisional enfrenta problemas como superlotação, condições precárias de higiene e segurança e a falta de recursos adequados para a ressocialização dos detentos.

Por conseguinte, essas questões contribuem para um ambiente que em muitos casos perpetua o ciclo de criminalidade, dificultando a reintegração social e impactando negativamente a vida desses indivíduos e da sociedade.



Características do Sistema de Justiça Criminal: o Cárcere



Uma reportagem veiculada pelo Jornal da Cultura1 acerca do sistema de cárcere brasileiro demonstra uma verdade: a falência das agências governamentais, independentemente de quem esteja no poder.

Conforme consta em dados oficiais, em 2024, o Brasil ocupou a 3ª maior população carcerária do globo, com mais de 850 mil pessoas, além do déficit de 170 mil vagas, o que gera a superlotação, sendo que cerca de 43% dos detentos possuem apenas o ensino fundamental incompleto.

No entanto, esses dados nos remetem a outra questão: a educação possui papel crucial na alocação das pessoas no mercado de trabalho, o que implica na falência das políticas sociais de educação e inclusão, sendo que alguns veem isso como algo deliberado, o que é extremamente grave2.

Outro ponto preocupante demonstra que os mais vulneráveis nesse caso são os homens, além de uma ampla gama de presos provisórios, isto é, aqueles sem uma condenação definitiva ou transitada em julgado.

Nada obstante, ousamos discordar, ainda que parcialmente, do entrevistado pelo Jornal da Cultura, o Defensor Público de São Paulo Bruno Shimizu, quando aduz a existência de uma cultura higienista por parte do Poder Judiciário. Casos notáveis como o do rapper Oruam ou do traficante André do Rap são nevrálgicos.34 Além disso, não podemos olvidar de quase todas as condenações da Operação Lava Jato anuladas pela Suprema Corte, a despeito da retorno de parte dos recursos desviados aos cofres públicos.56

De seu turno, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamento nº 347-DF, o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro, com competência para decidir os assuntos constitucionais, afirmou que existe uma “violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro”, o que caracteriza um “estado de coisas inconstitucional”, demandando uma “atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória”.7

Sem embargo, retornando a parte teórica da sociologia, temos com o sociólogo francês Loic Wacquant que toda essa situação reflete o enfraquecimento do Estado Social e o fortalecimento e à glorificação do Estado Penal (com algumas exceções, como os casos de crimes do colarinho branco retratados na Operação Lava Jato, o que demonstra a afeição do poder por pessoas influentes e poderosas, e por consequência, a seletividade do sistema penal).


Dessa forma, parece correta a ideia de Wacquant de que o novo senso comum das políticas penais acaba criminalizando a pobreza, ainda mais em países onde ocorre a falência do Estado Social ou do Welfare State, como o Brasil, a despeito da permanência por longa data de governos federais ditos progressistas ou de esquerda.


No entanto, algo que tende a mudar no Brasil diz respeito ao aprisionamento de consumidores de entorpecentes. O STF decidiu manter a descriminalização do porte de maconha para uso próprio, definindo um limite de 40 (quarenta) gramas ou 6 (seis) plantas fêmeas para diferenciar usuários de criminosos.8


Lado outro, temos constatado que a política de tolerância zero ou o movimento lei e ordem tem rondado alguns campos do direito penal, mormente nos casos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher e nas situações de delitos com cunho político9, o que gera certa vulneração do princípio constitucional da isonomia ou igualdade (art. 5º, caput, CRFB).


Nessa esteira, ensina Viana (2014, p. 189) que,


Em síntese, os problemas derivados da criminalidade devem ser combatidos com a expansão do Direito Penal e Processual Penal, seja no endurecimento das sanções já existentes, seja pela criação de novos tipos penais, seja pela redução de garantias processuais. (g. n.)


Nesse diapasão, segundo entendimentos consolidados do Superior Tribunal de Justiça, a violência doméstica deve receber um tratamento diferenciado em relação às demais infrações penais. Vejamos suas súmulas10:


  • Súmula 588: A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

  • Súmula 589: É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.

  • Súmula 600: Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima.

  • Súmula 542: A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.

Malgrado, toda essa limitação quando a vedação da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou a inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas podem gerar situações que redundam no direito penal do inimigo, ou dito de outra forma, na política de tolerância zero, fato que esbarra em direitos constitucionais como o da dignidade da pessoa humana ou no da individualização da pena.


Nesse particular, de acordo com Veiga (2024, p. 14), ao tratar acerca das lições preliminares e das funções do direito penal,


Para Günther Jakobs, o indivíduo que, reiterada e deliberadamente, se comporta como um violador da lei penal, não deve ser tratado como um cidadão, devendo ser visto e tratado como um inimigo da sociedade. O Direito Penal do Inimigo, a ser estudado mais a frente, nasce da ideia de que o Direito Penal deve tratar de maneira diferenciada aqueles que se mostram infiéis ao sistema. Assim, é preciso que haja uma repressão mais forte àqueles que perderam o status de cidadão, porque decidiram desobedecer à norma e ao sistema imposto (rompimento do contrato social – base rousseauniana). (g. n.)

Outrossim, conforme salientam os Promotores de Justiça Salim e Azevedo (2025, p. 36), o direito penal do inimigo possui como características:


  • a) processo mais célere visando à aplicação da pena;

  • b) penas desproporcionalmente altas;

  • c) suprimento ou relativização de garantias processuais;

  • d) o inimigo perde sua qualidade de cidadão (sujeito de direitos);

  • e) o inimigo é identificado por sua periculosidade.


Ora, o movimento Lei e Ordem possui características absolutamente próximas com o direito penal do inimigo. Conforme anota Penteado Filho (2020, p. 98):


  • a) a pena criminal é justificada como castigo e retribuição, mas não no sentido de retribuição jurídica, e sim no sentido clássico do tema, punição porque errou;

  • b) os delitos hediondos e que ferem os principais bens jurídicos devem ser punidos com o máximo rigor, com penas de morte e de longo encarceramento;

  • c) as penas aplicadas em decorrência de crimes violentos devem ser cumpridas em estabelecimentos prisionais de segurança máxima, com um regime de cumprimento de pena severo por parte do condenado, separando-o do convívio com os demais apenados;

  • d) a ampliação da prisão provisória para garantir imediatidade de resposta ao crime;

  • e) diminuição dos poderes e controle da execução penal judicial e aumento dos poderes das autoridades penitenciárias.

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Portanto, em certas ocasiões em que o Poder Judiciário visar ao combate mais profícuo de determinadas infrações criminais, com a implantação da política da tolerância zero ou Lei e Ordem, preceitos constitucionais acabam sendo violados ou desconsiderados, o que demanda análise atenta do operador do direito e até mesmo de outros profissionais, como o sociólogo e o criminólogo, para não caírem nessa arapuca antidemocrática.


É bom que se diga, ainda, que o movimento de Lei e Ordem possui previsão na Lei Complementar Federal nº 97 de 1999, a qual garante a atuação das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem (GLO), por força do artigo 142 da Constituição Federal de 1988, tendo a Suprema Corte firmado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.457-DF que, a despeito dessas previsões, esse órgão público não se constitui em Poder Moderador.11



Conclusão



Em síntese, o sistema carcerário brasileiro reflete de maneira contundente a complexidade e os desafios enfrentados pelo país na área do sistema de justiça criminal, já tendo o Poder Judiciário decretado sua inconstitucionalidade.


Sua estrutura evidencia problemas como superlotação, condições precárias e uma forte influência de políticas que muitas vezes criminalizam a pobreza e vulnerabilizam os mais pobres e excluídos.


Além disso, a fragilidade das políticas sociais, especialmente na área de educação e inclusão, a despeito de vários anos de gestões ditas progressistas, contribui para o aumento da população carcerária, perpetuando um ciclo de exclusão e criminalidade.


Como apontado por diversos estudos e decisões judiciais, há uma necessidade urgente de reformas que garantam os direitos fundamentais, promovam a ressocialização e reduzam a seletividade e politização do sistema penal.


Dessa forma, o sistema carcerário brasileiro não apenas espelha a realidade social conturbada do país, mas também evidencia a urgência de mudanças estruturais para uma justiça mais justa, eficiente e imparcial pois, conforme Loic Wacquant, vivemos o sufocamento do Estado Social e o enaltecimento do Estado de Polícia.





REFERÊNCIAS


AZEVEDO, Marcelo André de. SALIM, Alexandre. Direito Penal – Parte Geral. 15ª ed. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2025.


BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 12 ago. 2025.


GOVERNO FEDERAL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Observatório Nacional dos Direitos Humanos disponibiliza dados sobre o sistema prisional brasileiro. Notícia publicada em 03/02/2025. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2025/fevereiro/observatorio-nacional-dos-direitos-humanos-disponibiliza-dados-sobre-o-sistema-prisional-brasileiro#:~:text=Desafios%20do%20sistema%20prisional,a%20terceira%20maior%20do%20mundo. Acesso em 13 jul.2025.


Penteado Filho, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. 10. edª – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.


VEIGA, Fábio. Direito Penal (Parte Geral). Coleção Carreiras Jurídicas. CPIuris. 2024.


VIANA, Eduardo. Criminologia. 2ª ed. - Salvador: JusPodivm, 2014.



1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s89ohbAytQg&t=3s Acesso em 12 ago. 2025.

2 Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-crise-da-educacao-no-brasil-nao-e-uma-crise-e-projeto/ Acesso em 12 ago. 2025.

3 Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/08/08/justica-extingue-processo-contra-oruam-por-cavalo-de-pau-apos-recusa-do-mp-em-propor-acordo.ghtml Acesso em 12 ago. 2025.

4 Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/solto-pelo-stf-traficante-andre-do-rap-completa-tres-anos-foragido/#google_vignette Acesso em 12 ago. 2025.

5 Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/condenacoes-operacao-lava-jato-anuladas-stf-supremo-tribunal-federal-stj-superior-tribunal-justica-nprp/?srsltid=AfmBOopNmjL6oH_M9kR7geigoS_Ah9OXNUFDpGS71qzPjUcFqIOg2bPW Acesso em 12 ago. 2025.

6 Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/a-conta-da-corrupcao-r-25-bilhoes-ja-retornaram-aos-cofres-publicos/ Acesso em 12 ago. 2025.

7 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515220&ori=1 Acesso em 12 ago. 2025.

8 Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-40-gramas-de-maconha-como-criterio-para-diferenciar-usuario-de-traficante/ Acesso em 12 ago. 2025.

9 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/429808/stf-condena-a-14-anos-de-prisao-mulher-que-pichou-perdeu-mane Acesso em 12 ago. 2025.

10 Disponível em: https://www.tjse.jus.br/portaldamulher/acervo-juridico/jurisprudencia/item/175-sumulas Acesso em 12 ago. 2025.

11 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=531731 Acesso em 12 ago. 2025.

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestre em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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