Segundo Francisco Bandeira de Carvalho Melo, a pena cominada ao tipo penal violado exerce duas funções: a) função retributiva: o infrator deve "pagar" pelo mal causado, sofrendo uma consequência equivalente ao dano que provocou, a fim de restaurar a ordem violada pelo delito (a pena ser proporcional ao crime cometido); b) função preventiva: violada a lei existe a certeza da punição, sendo a pena uma forma de intimidação da sociedade como um todo1.
Por isso, “a pena privativa de liberdade não se presta a corrigir, educar ou fincar preceitos éticos-sociais no criminoso perigoso, mas apenas adequar a justa punição ao mal praticado pelo delinquente”, sendo inafastável a utilidade da pena como garantia de convivência social2.
O legislador deve, então, ao definir uma conduta como infração penal, estabelecer o preceito secundário da norma de modo a manter a “função preventiva” e a “função retributiva” da reprimenda, sempre tomando como base a CF/1988, que garante direitos e garantias aos cidadãos:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...];
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
[...]
XLVII - não haverá penas:
[...]
e) cruéis;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
Embora a CF/1988 não traga alguns princípios importantes de forma expressa, é necessário destacar que, ao se estabelecer a reprimenda corporal de determinado crime, o legislador também deve observar os princípios constitucionais da razoabilidade3 e da proporcionalidade4, extraídos de forma implícita do art. 1º, caput, e do art. 5º, LIV, da CF/19885.
A respeito da proporcionalidade, “são dois os subprincípios do princípio da proporcionalidade a serem empregados como critérios no controle dos meios legislativos: a adequação (Geeignetheit) e a necessidade (Notwendigkeit) Ainda, o terceiro critério é o da razoabilidade–exigibilidade ou justa medida – também chamada de proporcionalidade em sentido estrito, sendo uma criação jurisprudencial” (Gambogi, Carla da Costa. A (des)proporcionalidade da pena – ênfase no crime de estupro de vulnerável – um olhar sobre a tutela (violação?) do Estado aos princípios constitucionais. Disponível em <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/carla_gambogi.pdf>. Acesso em 13/8/2025).
Em síntese, “a adequação examina se as medidas são aptas para atingir o objetivo pretendido. [...]. Adequação tem relação com “idoneidade”, assim, a medida legislativa deve ser idônea para a realização do interesse público e o controle da adequada “medida meio-fim” aplicada como proteção ao bem jurídico. A necessidade examina se o meio utilizado é o meio menos gravoso e eficaz, ou seja, o meio menos restritivo aos direitos fundamentais. A necessidade tem relação com a exigibilidade, entendida como: um meio necessário (exigível) e único eficaz para atingir o fim de proteção proposto, onde o legislador não poderia ter optado por um outro meio distinto, igualmente eficaz”6.
Também é importante considerar a proibição de excesso, que consiste em impedir que a atividade legislativa ultrapasse o necessário e afete direitos fundamentais como a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana, etc. Em suma, a proibição do excesso atua como freio para garantir que a atuação do Estado seja adequada, necessária e proporcional.
Apesar disso, não foi o que aconteceu com a redação da Lei n. 12.015/2009, que alterou o Código Penal.
Antes da edição da Lei n. 12.015/2009, o Código Penal assim conceituava os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, destacando que, em relação à vítima menor de 14 anos de idade, o delito era qualificado. Veja-se:
Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena - reclusão de três a oito anos.
Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos.
Pena - reclusão de seis a dez anos.
Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena - reclusão de dois a sete anos.
Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos.
Pena - reclusão de três a nove anos.
Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de 14 (catorze) anos;
Para fins didáticos, a doutrina distingue quais são as condutas que definem a conjunção carnal e o ato libidinoso.
Conceitua-se a conjunção carnal como sendo “a inserção do pênis na vagina” (Luciano Anderson de Souza, coordenador. Código penal comentado. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 784).
Por sua vez, ato libidinoso “é todo aquele voltado à excitação ou satisfação da libido” (Maurício Schaun Jalil e Vicente Greco Filho, coordenadores. Código penal comentado – doutrina e jurisprudência. – Barueri/SP: Manole, 2016, p. 618).
Antes, os tipos penais de estupro e de atentado violento ao pudor contra a vítima vulnerável eram distintos e as penas corporais diversas, atendendo ao critério da proporcionalidade.
Contudo, a edição da Lei n. 12.015/2009 trouxe novo panorama ao Código Penal ao unificar os dois crimes quando praticados com pessoa menor de 14 anos de idade, tratando as duas condutas antes mencionadas como “estupro de vulnerável” no mesmo tipo penal, aumentando consideravelmente a reprimenda do agressor:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Sobre essa questão, veja-se a doutrina abaixo:
O crime de estupro de vulnerável não era visto como um crime autônomo até a vigência da Lei n. 12.015/2009. Antes da sua edição, trabalhava-se com as figuras de estupro e atentado violento ao pudor, combinado com o art. 224 do Código Penal, no qual se determinava que a violência seria presumida caso a vítima fosse menor de catorze anos; “alienada ou débil mental”, conhecendo o agente essas circunstâncias; e se a vítima não pudesse, por qualquer meio, oferecer resistência.
[...]
Com a referida Lei n. 12.015/2009, o art. 224 foi revogado e, conjuntamente, foi criado o crime de estupro de vulnerável, sob a égide do art. 217-A. A conduta típica prevê o ato de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de catorze anos (Luciano Anderson de Souza, coordenador. Código penal comentado. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 779-780).
Agora, duas condutas diversas passaram a ser punidas da mesma forma pelo legislador.
Acerca disso, Beatriz Daguer e Bárbara Ferrassioli apontam que “há uma equiparação entre a prática da conjunção carnal — que consiste na relação sexual caracterizada pela introdução do pênis na vagina, dispensando-se penetração completa ou ejaculação [2] — e do ato libidinoso — que é qualquer prática diversa que tenda a excitar ou satisfazer a lascívia do agente. Significa que, aos olhos do legislador, ambos os atos são punidos da mesma forma e com idêntico rigor, o que tem se mostrado bastante problemático na prática em termos de atendimento do princípio da proporcionalidade da pena. Afinal, um sujeito que “apenas” passou as mãos em qualquer região não púbere do corpo de uma vítima menor de 14 anos poderá receber a mesma reprimenda que o sujeito que com ela manteve conjunção carnal” (Estupro de vulnerável: necessidade de um tipo penal intermediário no artigo 217-A do Código Penal. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2024-nov-21/a-necessidade-de-um-tipo-penal-intermediario-no-artigo-217-a-do-codigo-penal-flagrante-desproporcionalidade-da-sancao-do-estupro-de-vulneravel/>. Acesso em 13/8/2025).
A título de comparação, a pena corporal do crime de homicídio, onde o bem jurídico é a vida, é de 6 a 20 anos de reclusão (art. 121, caput, do Código Penal)7, ou seja, a pena mínima do crime contra a vida é muito menor que a do crime de estupro de vulnerável, independente do modus operandi deste.
Da mesma forma, o crime de extorsão mediante sequestro, crime gravíssimo que exige violência física ou ameaça real, também prevê pena menor, ou seja, de 6 a 12 anos de reclusão (art. 158, § 3º, do Código Penal)8.
O próprio crime de sequestro, de maior gravidade, prevê uma pena inicial de 8 anos de reclusão (art. 159 do Código Penal)9, sendo inegável, por isso, reconhecer que o preceito secundário do delito de estupro de vulnerável, quando praticado por meio de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, é desproporcional e excessivo.
Com efeito, “em que pese o crime de estupro de vulnerável abranger condutas ainda repudiáveis, mas menos ofensivas ao bem jurídico tutelado, como um beijo forçado ou passadas de mão sobre a roupa, havendo a previsão do art. 215-A, revela-se desproporcional toda e qualquer situação envolvendo a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos importar a incidência do crime disposto no art. 217-A” (Luciano Anderson de Souza, coordenador. Código penal comentado. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 785-786).
No direito comparado, por exemplo, o apenamento para casos semelhantes é bem mais brando, principalmente quando a conduta envolve atos libidinosos diversos da conjunção carnal, segundo o estudo de Carla da Costa Gambogi envolvendo o Direito Alemão, Espanhol e Argentino10.
Embora a dignidade e a liberdade sexual, bens jurídicos tutelados e desdobramento do princípio da dignidade humana, precisem ser protegidos, a atual norma não garante a compatibilização entre a proteção da vítima e a preservação dos direitos fundamentais do acusado.
As condutas narradas no art. 217-A do Código Penal, ainda que violem o bem protegido tutelado, o fazem de maneira diversa e em diferentes graus de intensidade. Não basta que o tipo penal mencionado seja um meio necessário e um meio adequado à repressão criminosa, visto que a pena corporal também tem que ser justa.
In casu, a pena corporal representa um excesso estatal, na medida em que a sanção exagerada demonstra enorme desproporção entre a conduta e a pena escolhida pelo legislador.
Não se ignora extensão conceitual acerca do ato libidinoso. Todavia, a controvérsia em análise reside no fato de que nem todo ato libidinoso pode ser equiparado ao crime de estupro de vulnerável, sob pena de se punir condutas como uma simples passada de mão ou um beijo lascivo com maior severidade do que o próprio crime de homicídio, considerando-se a pena-base prevista para cada tipo penal.
No entendimento de Luciano Anderson de Souza, uma saída, nos casos envolvendo o estupro de vulnerável por meio de atos libidinosos, poderia ser a desclassificação para o crime de importunação sexual (art. 215-A do Código Penal), em razão do menor desvalor da conduta11, mas o preceito secundário do art. 217-A do Código Penal continuaria sendo desproporcional.
Dessa forma, não se revela razoável que o agente que praticou o crime de estupro de vulnerável por meio de atos libidinosos — especialmente aqueles considerados de menor gravidade — receba a mesma pena daquele que manteve relação sexual efetiva com a vítima. Isso porque não há proporcionalidade entre a justa 'medida', o 'meio' empregado e o 'fim' almejado, ainda que a lei estabeleça presunção absoluta de vulnerabilidade da vítima.
Impõe-se, portanto, a revisão do tipo penal e de seu preceito secundário, diante da flagrante inconstitucionalidade que decorre da desproporção punitiva. Afinal, nem todos os atos libidinosos possuem o mesmo grau de lesividade ao bem jurídico tutelado, o que exige uma resposta penal compatível com a gravidade da conduta.
Autor: Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduado em Ciências Criminais. Pós-graduado em Direito Probatório do Processo Penal. Pós-graduado em Crimes de Lavagem de Dinheiro.
A função retributiva da pena privativa de liberdade. Artigo publicado no Jornal Breves Notas da Associação Goiana do Ministério Público. Fevereiro de 2008.︎
Melo, Francisco Bandeira de Carvalho. A função retributiva da pena privativa de liberdade. Artigo publicado no Jornal Breves Notas da Associação Goiana do Ministério Público. Fevereiro de 2008.︎
Razoabilidade: “A razoabilidade é uma norma a ser empregada pelo Poder Judiciário, a fim de permitir uma maior valoração dos atos expedidos pelo Poder Público, analisando-se a compatibilidade com o sistema de valores da Constituição e do ordenamento jurídico, sempre se pautando pela noção de Direito justo, ou Justiça” (Calcini, Fábio Pallaretti. O princípio da razoabilidade: um limite à discricionariedade administrativa. Campinas: Millennium Editora, 2003, p. 146).︎
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Proporcionalidade: “O princípio ordena que a relação entre o fim que se pretende alcançar e o meio utilizado deve ser proporcional, racional, não excessiva, não arbitrária. Isso significa que entre meio e fim deve haver uma relação adequada, necessária e racional ou proporcional” (Steinmetz, Wilson Antônio Steinmetz. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 149).︎
CF/1988: Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]. Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]; LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;︎
Gambogi, Carla da Costa. A (des)proporcionalidade da pena – ênfase no crime de estupro de vulnerável – um olhar sobre a tutela (violação?) do Estado aos princípios constitucionais. Disponível em <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/carla_gambogi.pdf>. Acesso em 13/8/2025.︎
Código penal: Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.︎
Código penal: Art. 158. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa. [...]. § 3º. Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente. ︎
Código penal: Art. 159. Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: Pena - reclusão, de oito a quinze anos.︎
A (des)proporcionalidade da pena – ênfase no crime de estupro de vulnerável – um olhar sobre a tutela (violação?) do Estado aos princípios constitucionais. Disponível em <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/carla_gambogi.pdf>. Acesso em 13/8/2025).︎
Código penal comentado. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 785-786.︎