A Base de Cálculo das Taxas de Polícia no STF: Análise do ARE 990.094 e a Consolidação do Princípio da Referibilidade Tributária
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Resumo: O presente artigo examina o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 990.094/SP, submetido ao regime da repercussão geral (Tema 1.035), no qual o Supremo Tribunal Federal fixou a tese da constitucionalidade do critério do tipo de atividade econômica do contribuinte como parâmetro para definição do valor de taxas decorrentes do exercício do poder de polícia. O estudo aborda a natureza jurídica das taxas, a distinção em relação aos impostos, o princípio da referibilidade e da equivalência, a evolução jurisprudencial e os impactos teóricos e práticos da decisão. Utilizam-se como fundamentos a Constituição da República de 1988, o Código Tributário Nacional e a doutrina especializada. Conclui-se que o julgamento representa um marco histórico na delimitação da hipótese de incidência, fato gerador e base de cálculo das taxas, fortalecendo a segurança jurídica e a coerência do sistema tributário brasileiro.
Palavras-chave: Taxas. Poder de polícia. Supremo Tribunal Federal. Artigo 145 da Constituição. Base de cálculo.
Abstract: This article examines the judgment of Extraordinary Appeal with Aggravation No. 990.094/SP, submitted to the general repercussion regime (Theme 1,035), in which the Brazilian Supreme Federal Court established the thesis of the constitutionality of the taxpayer’s economic activity type as a valid criterion to define the value of fees arising from the exercise of police power. The study addresses the legal nature of fees, their distinction from taxes, the principles of referability and equivalence, the jurisprudential evolution, and the theoretical and practical impacts of the decision. The 1988 Federal Constitution, the National Tax Code, and specialized legal doctrine are used as foundations. It is concluded that the judgment represents a historical milestone in defining the taxable event, triggering fact, and calculation basis of fees, strengthening legal certainty and the coherence of the Brazilian tax system.
Keywords: Fees. Police power. Supreme Federal Court. Article 145 of the Constitution. Tax base.
Sumário: 1 Introdução. 2 A Natureza Jurídica das Taxas. 3. O Caso Concreto: ARE 990.094/SP (Tema 1.035). 4. Fundamentação do Julgamento. 5. Impactos Teóricos e Práticos. 6. Considerações Finais. Referências
1. Introdução
A discussão sobre a constitucionalidade das taxas instituídas em razão do exercício do poder de polícia sempre esteve no centro do debate tributário brasileiro. O art. 145, II, da Constituição da República de 1988 estabelece que as taxas podem ser cobradas em razão do exercício regular do poder de polícia ou pela utilização de serviços públicos específicos e divisíveis. O §2º do mesmo dispositivo veda que as taxas tenham base de cálculo própria de impostos.
O julgamento do ARE 990.094/SP, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, representa um divisor de águas nesse campo, pois trata da possibilidade de o legislador municipal adotar o tipo de atividade econômica do contribuinte como critério para dimensionar o valor da taxa de fiscalização de estabelecimentos. O Supremo Tribunal Federal, ao fixar a tese de repercussão geral, consolidou a compreensão de que esse critério é legítimo, desde que haja correlação razoável com o custo da atividade estatal.
Este trabalho tem por objetivo analisar, sob enfoque teórico e prático, os fundamentos jurídicos do julgamento, confrontando-os com a doutrina e a jurisprudência anterior, a fim de demonstrar a importância do precedente na construção da dogmática tributária.
2. A Natureza Jurídica das Taxas
É cediço que as taxas possuem natureza contraprestacional. Trata-se de tributo vinculado, cuja hipótese de incidência se relaciona diretamente com uma atuação estatal dirigida ao contribuinte.
O Código Tributário Nacional, nos artigos 77 a 79, disciplina as hipóteses de incidência das taxas, vinculando-as ao exercício regular do poder de polícia ou à prestação/utilização de serviços públicos específicos e divisíveis. É vedada a identidade com a base de cálculo dos impostos (art. 77, parágrafo único).
Desse modo, a taxa se diferencia do imposto pela referibilidade: enquanto este tem caráter geral e não vinculado, a taxa exige a existência de um custo estatal que justifique a cobrança.
3. O Caso Concreto: ARE 990.094/SP (Tema 1.035)
O Município de São Paulo interpôs recurso extraordinário contra acórdão do Tribunal de Justiça local que afastara a possibilidade de adotar a atividade econômica como critério de cálculo da taxa de fiscalização prevista na Lei Municipal nº 13.477/2002. A controvérsia consistia em saber se tal critério configuraria base de cálculo de imposto, em afronta ao art. 145, §2º, da Constituição.
O Ministro Gilmar Mendes, relator, entendeu que o tipo de atividade exercida pelo estabelecimento guarda correspondência com o custo da fiscalização estatal, justificando-se como parâmetro legítimo. Em seu voto, destacou:
“É razoável compreender que determinados tipos de atividade demandam fiscalização mais intensa e complexa do Estado. Não se pode comparar, por exemplo, a fiscalização de um posto de gasolina, com riscos ambientais e à saúde, à fiscalização de uma agência de viagens, cujo impacto é consideravelmente menor. É exatamente essa diferença que legitima a adoção do critério da atividade econômica.” (STF, ARE 990.094/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes).
E prosseguiu afirmando:
“A exigência de referibilidade absoluta tornaria inviável a cobrança de taxas, dada a dificuldade prática de individualizar o custo da fiscalização para cada contribuinte. O que se requer é uma correlação razoável e proporcional entre o parâmetro eleito pela lei e o custo médio da atividade estatal.” (STF, ARE 990.094/SP).
O Plenário do STF, por maioria, acompanhou o voto do relator, reconhecendo a constitucionalidade do critério e fixando a seguinte tese: "É constitucional considerar o tipo de atividade exercida pelo contribuinte como um dos critérios para fixação do valor de taxa de fiscalização do estabelecimento" (STF, 2025).
4. Fundamentação do Julgamento
O voto condutor do Ministro Gilmar Mendes resgatou importantes premissas doutrinárias e jurisprudenciais:
A natureza sinalagmática da taxa exige relação de proporcionalidade entre custo da atividade estatal e valor cobrado.
Não se exige referibilidade absoluta, mas razoabilidade na correlação entre atividade fiscalizada e custo (PISCITELLI, 2021).
A utilização de elementos como metragem do imóvel ou porte da empresa já havia sido admitida pelo STF (RE 213.552; RE 640.597).
A Súmula Vinculante nº 19 estabelece que é possível a utilização de elementos da base de cálculo de imposto, desde que não haja identidade integral.
Nesse sentido, afirmou o Ministro Gilmar Mendes:
“Não se deve confundir a utilização de elementos que guardam alguma semelhança com bases de cálculo de impostos com a identidade absoluta entre elas. A Constituição apenas veda a identidade integral, não a mera utilização de parâmetros semelhantes quando estes se justificam pela atividade estatal de polícia administrativa.” (STF, ARE 990.094/SP).
Assim, o critério de atividade econômica não desnatura a taxa nem a converte em imposto, pois não incide sobre a capacidade contributiva, mas sobre o risco e o custo da fiscalização.
5. Impactos Teóricos e Práticos
O julgamento estabelece marco de estabilidade e segurança jurídica. Do ponto de vista teórico, consolida a aplicação do princípio da equivalência, reconhecido em Portugal e na Alemanha, como fundamento para a mensuração das taxas.
Antes do julgamento do STF, havia forte divergência entre os tribunais estaduais a respeito da constitucionalidade da utilização exclusiva da natureza da atividade como critério de cálculo das taxas.
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo, por exemplo, reconheceu a constitucionalidade da diferenciação da taxa de fiscalização de localização, instalação e funcionamento (TJ-ES, AI nº 5007229-24.2023.8.08.0000, Rel. Des. Heloisa Cariello).
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo, em diversos precedentes, reputou inconstitucional a fixação do valor exclusivamente pela natureza da atividade, por ausência de correspondência com o custo da atividade fiscalizatória (TJ-SP, Ap. Cível nº 1014592-05.2024.8.26.0224; TJ-SP, Ap. Cível nº 1032048-55.2023.8.26.0562; TJ-SP, Ap. Cível nº 1005944-83.2019.8.26.0071).
Essas decisões evidenciam a insegurança jurídica que perdurava antes da definição pelo STF, a qual veio pacificar o tema no âmbito da repercussão geral (Tema 1.035).
Na prática, abre espaço para que Municípios e Estados estruturem suas taxas de polícia de forma mais racional e proporcional, ajustando o valor cobrado ao risco da atividade. Isso reforça a legitimidade das exações e reduz o espaço para questionamentos judiciais.
Entretanto, persiste o desafio de evitar abusos arrecadatórios. A taxa não pode se converter em instrumento de tributação indireta da riqueza, sob pena de ofensa ao art. 150, IV, da Constituição (proibição de confisco).
6. Considerações Finais
O julgamento do ARE 990.094/SP pelo Supremo Tribunal Federal representa um verdadeiro leading case constitucional em matéria de taxas e poder de polícia. A decisão reafirma a centralidade do princípio da referibilidade e da equivalência, compatibilizando a necessidade de custeio das atividades estatais com os limites constitucionais da tributação.
A tese fixada em repercussão geral trará reflexos imediatos na legislação e na prática administrativa dos entes federados, que poderão adotar o critério de atividade econômica como parâmetro legítimo para mensurar taxas de polícia. Trata-se de marco histórico na evolução do direito tributário brasileiro.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
STF. Recurso Extraordinário com Agravo 990.094/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-ago-16/stf-tem-maioria-a-favor-de-tipo-de-atividade-como-criterio-para-taxa-de-poder-de-policia/. Acesso em: 16 ago. 2025.
TJ-ES. Agravo de Instrumento nº 5007229-24.2023.8.08.0000. Rel. Des. Heloisa Cariello. 2ª Câmara Cível.
TJ-SP. Apelação Cível nº 1014592-05.2024.8.26.0224. Rel. Des. Fernando Figueiredo Bartoletti. 18ª Câmara de Direito Público, j. 16/10/2024.
TJ-SP. Apelação Cível nº 1032048-55.2023.8.26.0562. Rel. Des. Ricardo Chimenti. 18ª Câmara de Direito Público, j. 11/02/2025.
TJ-SP. Apelação Cível nº 1005944-83.2019.8.26.0071. Rel. Des. Raul De Felice. 15ª Câmara de Direito Público, j. 16/06/2020.