Resumo: O presente artigo analisa a controvérsia jurídica em torno da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 24/2010 da Anvisa, que institui alertas sanitários obrigatórios em publicidades de alimentos ultraprocessados. Passados quinze anos desde sua edição, a norma ainda não foi implementada em razão da intensa judicialização promovida por entidades privadas, o que evidencia grave déficit de efetividade constitucional. A pesquisa sustenta que a morosidade processual compromete a concretização do direito fundamental à saúde e à alimentação adequada, além de gerar insegurança jurídica, em afronta ao princípio da duração razoável do processo. Demonstra-se que, diante da colisão entre liberdade econômica e proteção da saúde coletiva, deve prevalecer a supremacia do interesse público, cabendo ao Supremo Tribunal Federal consolidar jurisprudência que reafirme a primazia da vida e da saúde sobre interesses de mercado.
Palavras-chave: Direito à saúde; publicidade de alimentos; Anvisa; Supremo Tribunal Federal; supremacia do interesse público; duração razoável do processo.
Sumário: 1. Introdução. 2. O conteúdo e o alcance da RDC 24/2010. 3. A judicialização e a morosidade da concretização da política pública. 3.1. O princípio da duração razoável do processo e a insegurança jurídica. 4. Princípios constitucionais em disputa. 5. O papel do Supremo Tribunal Federal. 6. Considerações finais. Referências.
1. Introdução
O cenário contemporâneo da saúde pública brasileira evidencia um fenômeno preocupante: a crescente incidência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), tais como obesidade, diabetes e enfermidades cardiovasculares, amplamente relacionadas ao consumo de alimentos ultraprocessados. Nesse contexto, a publicidade desses produtos exerce papel determinante na indução de padrões alimentares nocivos, sobretudo entre crianças e adolescentes.
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 24/2010 da Anvisa surgiu com o propósito de enfrentar esse problema, impondo a obrigatoriedade de alertas sanitários em anúncios de alimentos ricos em sódio, açúcares e gorduras prejudiciais à saúde. Todavia, passados 15 anos de sua edição, a norma não foi implementada em razão de uma série de contestações judiciais propostas por entidades privadas.
A judicialização prolongada não apenas evidencia a tensão entre interesses públicos e privados, mas também revela como a morosidade judicial pode inviabilizar políticas públicas de alto impacto social. Nesse cenário, coloca-se em relevo a função do Supremo Tribunal Federal (STF) de afirmar a supremacia do interesse público sobre o privado, sob pena de esvaziamento de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.
2. O conteúdo e o alcance da RDC 24/2010
A RDC 24/2010 tem como núcleo a proteção à saúde e ao consumidor, estabelecendo que qualquer forma de promoção comercial de alimentos com altos teores de nutrientes nocivos seja acompanhada de alertas explícitos quanto aos riscos do consumo excessivo.
Não se trata de norma proibitiva da publicidade, mas de uma regulação informativa, que visa assegurar a transparência na relação de consumo. Nesse sentido, a resolução encontra sólido amparo nos princípios da informação, transparência, identificação da publicidade e precaução, previstos no Código de Defesa do Consumidor.
Do ponto de vista jurídico, a edição da resolução insere-se no escopo de competências da Anvisa, definida pela Lei nº 9.782/1999, que confere à agência o poder normativo para disciplinar a publicidade de produtos sob vigilância sanitária.
3. A judicialização e a morosidade da concretização da política pública
Desde a sua edição, a resolução foi alvo de 12 ações judiciais, das quais cinco já foram concluídas com decisões favoráveis à Anvisa, mas outras sete permanecem em tramitação.
O resultado prático é que, apesar de reiteradas manifestações judiciais de reconhecimento da constitucionalidade da atuação da Anvisa, a norma segue sem aplicação. A demora processual, nesse caso, não é mero detalhe procedimental: ela compromete a eficácia de políticas públicas que têm por objeto direitos fundamentais.
A morosidade evidencia um déficit de efetividade constitucional, pois a ausência de vigência da norma perpetua o estímulo ao consumo de alimentos prejudiciais à saúde, implicando não apenas em danos individuais, mas também em externalidades negativas ao sistema de saúde, com custos anuais bilionários ao erário.
3.1. O princípio da duração razoável do processo e a insegurança jurídica
A Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LXXVIII, consagra o princípio da duração razoável do processo, assegurando a todos a razoável celeridade processual e os meios que garantam a efetividade da prestação jurisdicional.
No caso da RDC 24/2010, observa-se uma contradição gritante: uma norma editada com base em robusta evidência científica, em consonância com o direito fundamental à saúde, permanece sem eficácia por mais de 15 anos em virtude da perpetuação de demandas judiciais.
Essa demora não apenas compromete o direito individual à prestação jurisdicional célere, mas sobretudo afeta direitos coletivos de caráter difuso, cujo exercício pleno depende da efetividade normativa.
Além disso, a prolongada indefinição gera um quadro de insegurança jurídica. De um lado, a sociedade e os consumidores permanecem privados do direito à informação e à proteção preventiva. De outro, os próprios agentes econômicos ficam diante de uma instabilidade regulatória: não sabem se a obrigação será finalmente exigida, nem em que termos, o que dificulta o planejamento e cria incentivos à litigiosidade.
Essa demora não apenas compromete o direito individual à prestação jurisdicional célere, mas sobretudo afeta direitos coletivos de caráter difuso. No RE 1335550/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, o STF reconheceu que a intervenção judicial pode ser legítima para fixar prazos a fim de evitar a eternização de procedimentos administrativos, em consonância com a duração razoável do processo.
Além disso, a insegurança jurídica se projeta também na esfera sanitária. No contexto da pandemia de Covid-19, por exemplo, a Corte reafirmou a proteção da confiança legítima ao determinar, na ACO 3518/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, que a União garantisse a entrega tempestiva de vacinas para assegurar a imunização completa da população.
Esse contexto revela como a morosidade processual, em temas de saúde pública, pode ter efeitos deletérios que vão muito além da esfera processual, atingindo a própria efetividade da Constituição. É preciso compreender que a celeridade, nesses casos, não é mero atributo de eficiência administrativa da Justiça, mas condição para a concretização de direitos fundamentais.
4. Princípios constitucionais em disputa
O litígio em torno da RDC 24/2010 pode ser lido como um clássico caso de colisão de princípios constitucionais.
De um lado, invoca-se a livre iniciativa e a liberdade econômica (art. 170 da CF), fundamentos basilares da ordem econômica constitucional. De outro, erigem-se os direitos sociais à saúde e à alimentação adequada (arts. 6º e 196 da CF), bem como a proteção ao consumidor (art. 5º, XXXII, e art. 170, V, da CF).
Em termos dogmáticos, a ponderação deve observar a supremacia do interesse público sobre o privado, especialmente porque o objeto tutelado não é meramente patrimonial, mas sim a preservação da saúde coletiva e a concretização de direitos fundamentais de natureza difusa.
O Supremo já enfrentou situações similares, em que limitou liberdades econômicas em prol da saúde coletiva. Na ADI 4351/PR, Rel. Min. Rosa Weber, a Corte julgou constitucional a lei estadual que restringiu o consumo de fumígenos em ambientes coletivos fechados, entendendo que a medida era proporcional e compatível com o dever estatal de proteção à saúde e ao consumidor.
A aplicação dos princípios da precaução e da prevenção, típicos do direito sanitário e ambiental, impõe-se como critério de interpretação: na presença de evidências científicas robustas sobre os danos do consumo de ultraprocessados, a regulação preventiva é não apenas legítima, mas necessária.
5. O papel do Supremo Tribunal Federal
A matéria atualmente se encontra sob análise do STF, nos autos do ARE 1.480.888 e da ADI 7788, sob a relatoria do Ministro Cristiano Zanin.
O Supremo, nesse contexto, não está diante de uma mera controvérsia sobre a competência normativa da Anvisa. Trata-se de um julgamento paradigmático acerca da hierarquia de valores constitucionais, em que se confrontam, de forma explícita, liberdade econômica e direito fundamental à saúde.
Ao assumir a função de guarda da Constituição, o STF deverá não apenas reafirmar a constitucionalidade da atuação da agência reguladora, mas também dar concretude à diretriz de que a ordem econômica está subordinada à valorização do trabalho humano e à justiça social (art. 170, caput, CF).
6. Considerações finais
A análise do caso da RDC 24/2010 demonstra como a judicialização e a morosidade podem comprometer a eficácia de políticas públicas estruturadas em bases científicas e orientadas à promoção da saúde coletiva.
Ao longo de 15 anos, o prolongamento do litígio impediu que milhões de consumidores tivessem acesso a informações essenciais para a tomada de decisão consciente no consumo de alimentos, perpetuando um modelo de publicidade que favorece interesses empresariais em detrimento da saúde pública.
Diante disso, o julgamento pelo STF representa não apenas uma oportunidade de resolver um impasse jurídico, mas também um marco para reafirmar que, em um Estado Constitucional Democrático, a supremacia do interesse público e a proteção da saúde devem prevalecer sobre pretensões econômicas particulares.
Trata-se, em última análise, de um caso em que a efetividade dos direitos fundamentais depende da coragem institucional da Corte Constitucional de afirmar a primazia da vida e da saúde sobre a lógica do mercado, assegurando a duração razoável do processo e afastando o quadro de insegurança jurídica que há mais de uma década marca a questão.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 ago. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 19 ago. 2025.
BRASIL. Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jan. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9782.htm. Acesso em: 19 ago. 2025.
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 24, de 22 de abril de 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1335550/RS. Relatora Ministra Cármen Lúcia. Primeira Turma. Julgado em 14 mar. 2022. Publicado em 17 mar. 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ACO 3518/DF. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Tribunal Pleno. Julgado em 15 set. 2021. Publicado em 17 dez. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1480888/DF. Relator Ministro Cristiano Zanin. Tribunal Pleno. Em andamento.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4351/PR. Relatora Ministra Rosa Weber. Tribunal Pleno. Julgado em 24 ago. 2020. Publicado em 17 set. 2020.
MIGALHAS. STF convoca audiência pública para debater o uso de alertas sanitários na publicidade de alimentos não saudáveis. Migalhas Quentes, 19 ago. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/438154/stf-deba-alertas-sanitarios-em-anuncios-de-alimentos-nao-saudaveis. Acesso em: 19 ago. 2025.
Abstract: This article analyzes the legal controversy surrounding Anvisa’s Collegiate Board Resolution (RDC) nº 24/2010, which establishes mandatory health warnings in advertisements for ultra-processed foods. Fifteen years after its enactment, the rule has not yet been implemented due to intense litigation promoted by private entities, evidencing a serious deficit in constitutional effectiveness. The research argues that judicial delay undermines the realization of the fundamental right to health and adequate nutrition, while generating legal uncertainty, in violation of the principle of reasonable duration of proceedings. It demonstrates that, when balancing economic freedom and the protection of collective health, the supremacy of the public interest must prevail, with the Supreme Federal Court consolidating jurisprudence that reaffirms the primacy of life and health over market interests.
Keywords: Right to health; food advertising; Anvisa; Supreme Federal Court; supremacy of public interest; reasonable duration of proceedings.