Sanções Administrativas e Judiciais na Lei 12.846/2013: Reserva de Jurisdição, Medidas Cautelares e Análise Jurisprudencial

24/08/2025 às 09:06
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Sanções Administrativas e Judiciais na Lei 12.846/2013: Reserva de Jurisdição, Medidas Cautelares e Análise Jurisprudencial

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

A Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a responsabilização objetiva da pessoa jurídica por atos lesivos contra a Administração Pública. O diploma normativo institui um sistema dual de responsabilização, no qual coexistem sanções de natureza administrativa e judicial. O presente artigo analisa a razão dessa diferenciação, destacando a opção legislativa pela reserva de jurisdição para as sanções mais gravosas, como a dissolução compulsória e a suspensão de atividades. Examina-se, ainda, a disciplina das medidas cautelares e o tratamento dado pela jurisprudência recente, especialmente em ações civis públicas por fraude em licitações. Conclui-se que a diferenciação entre esferas tem por fundamento o equilíbrio entre efetividade na repressão à corrupção e proteção das garantias fundamentais.

Palavras-chave: Lei Anticorrupção; Responsabilização da Pessoa Jurídica; Sanções Administrativas; Sanções Judiciais; Medidas Cautelares; Tutela Coletiva.

Abstract

The Brazilian Anti-Corruption Law (Law No. 12,846/2013) introduced strict liability of legal entities for acts harmful to the Public Administration, creating a dual system of sanctions: administrative and judicial. This article examines the rationale for this differentiation, emphasizing the legislative choice of reserving jurisdiction to the Judiciary for the imposition of more severe sanctions, such as compulsory dissolution and suspension of activities. It also discusses the role of precautionary measures, especially asset freezing, and analyzes recent case law regarding alleged fraud in public procurement. The study concludes that the coexistence of administrative and judicial sanctions reflects not a distrust of administrative authorities, but rather the need to balance effectiveness in combating corruption with the protection of fundamental rights, within the framework of the rule of law.

Keywords: Anti-Corruption Law; Corporate Liability; Administrative Sanctions; Judicial Sanctions; Precautionary Measures; Collective Redress.

Sumário: 1. Introdução. 2. O Sistema Dual de Sanções na Lei Anticorrupção. 3. A Reserva de Jurisdição para Sanções Gravosas. 4. Medidas Cautelares e a Aplicação Analógica da Lei de Improbidade. 5. Jurisprudência Recente. 5.1 Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). 5.2 Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG). 5.3 Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). 5.4 Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) – Caso de fraude em licitação. 5.5 Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) – Caso da clínica de fisioterapia. 6. Discussão Crítica. 7.Conclusão. Referências

1. Introdução

A Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, surgiu em um contexto de crescente pressão nacional e internacional para que o Brasil implementasse mecanismos eficazes de combate à corrupção no setor privado. Até então, o ordenamento jurídico brasileiro responsabilizava essencialmente pessoas físicas por atos ilícitos contra a Administração Pública, havendo uma lacuna na responsabilização direta de pessoas jurídicas.

A aprovação da lei foi impulsionada pela necessidade de cumprir compromissos assumidos em tratados internacionais, como a Convenção da OCDE sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros (1997) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), que recomendam a responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas envolvidas em práticas de corrupção. A partir daí, consolidou-se no Brasil um modelo misto de responsabilização, que não substitui a responsabilização penal de pessoas físicas, mas a complementa, atingindo também os entes coletivos (BRASIL, 2013).

Um dos traços distintivos da lei é a opção legislativa por criar dois regimes sancionadores paralelos: o administrativo (arts. 6º e 7º), de execução direta pela Administração Pública, e o judicial (arts. 18 a 21), aplicado pelo Poder Judiciário. Essa diferenciação, longe de ser meramente formal, tem implicações práticas significativas, pois delimita quais sanções podem ser aplicadas diretamente pela Administração e quais dependem do crivo jurisdicional.

Assim, a introdução da Lei Anticorrupção não apenas preencheu uma lacuna normativa, mas também inaugurou um novo campo de debates no Direito Administrativo Sancionador, especialmente sobre a reserva de jurisdição e os limites do poder punitivo estatal frente às garantias fundamentais.

2. O Sistema Dual de Sanções na Lei Anticorrupção

O sistema de responsabilização da Lei nº 12.846/2013 é marcado pela coexistência de sanções administrativas e sanções judiciais, disciplinadas de forma autônoma, mas complementares.

No plano administrativo, o art. 6º prevê duas espécies de sanção: multa pecuniária, que pode alcançar até 20% do faturamento bruto do exercício anterior, excluídos os tributos, nunca inferior à vantagem auferida, quando for possível mensurá-la e publicação extraordinária da decisão condenatória, medida de natureza eminentemente reputacional, voltada à transparência e à dissuasão.

Essas sanções podem ser aplicadas diretamente pela Administração Pública, após processo administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa (art. 8º). O objetivo é permitir uma resposta célere do Estado, sem depender da morosidade do processo judicial.

Já no plano judicial, o art. 19 traz sanções de caráter mais severo e estrutural: perdimento de bens e valores obtidos com a infração, suspensão ou interdição parcial de atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica e proibição de receber incentivos ou contratar com o poder público por até 5 anos.

Ao estabelecer esse modelo dual, o legislador buscou criar um “sistema de degraus sancionatórios”: as sanções administrativas possuem caráter patrimonial e reputacional, enquanto as judiciais têm alcance estrutural, podendo inviabilizar total ou parcialmente a continuidade da empresa.

Esse arranjo também se insere no chamado microssistema de tutela coletiva, em que a Lei Anticorrupção dialoga com a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985). Todas elas têm em comum a busca pela responsabilização por atos lesivos ao patrimônio público, ainda que com instrumentos e ênfases distintas.

3. A Reserva de Jurisdição para Sanções Gravosas

A distinção entre sanções administrativas e judiciais encontra fundamento no princípio da reserva de jurisdição, segundo o qual determinadas restrições a direitos fundamentais só podem ser impostas mediante decisão judicial.

As sanções previstas no art. 19 da Lei nº 12.846/2013 afetam diretamente: a existência da empresa (dissolução compulsória), a atividade econômica (suspensão ou interdição de atividades) e a capacidade de contratar e obter crédito junto ao Estado (proibição de incentivos e empréstimos).

Essas medidas transcendem o âmbito interno da pessoa jurídica, repercutindo na esfera de empregados, credores, consumidores e na economia local. Por isso, a aplicação dessas sanções diretamente pela Administração poderia gerar riscos de arbitrariedade, instrumentalização política ou violação da livre iniciativa, assegurada constitucionalmente (art. 170 da CF).

Ao reservar ao Judiciário a aplicação dessas sanções, o legislador buscou um filtro de imparcialidade e legitimidade. O processo judicial oferece garantias adicionais: contraditório pleno, imparcialidade do julgador, possibilidade de recursos, ampla produção probatória. Tais elementos asseguram que medidas de tamanha gravidade só sejam impostas após um juízo de cognição exauriente.

Nesse sentido, a jurisprudência tem confirmado que medidas como a suspensão de atividades e a proibição de contratar não podem ser decretadas cautelarmente, por configurarem sanções definitivas, somente cabíveis em sentença transitada em julgado (TJ-PR, AI 0060535-05.2022.8.16.0000).

Portanto, a reserva de jurisdição não reflete desconfiança em relação à esfera administrativa, mas sim a necessidade de graduar a intensidade da resposta estatal em conformidade com os princípios do Estado de Direito.

4. Medidas Cautelares e a Aplicação Analógica da Lei de Improbidade

O §4º do art. 19 da Lei nº 12.846/2013 prevê expressamente que o Ministério Público ou a Advocacia Pública podem requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou valores da pessoa jurídica necessária à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano. Esse dispositivo tem a finalidade de assegurar a efetividade da tutela jurisdicional, evitando que a futura condenação se torne inócua diante da dilapidação patrimonial do réu.

Apesar da previsão legal, o legislador não detalhou os pressupostos específicos para a decretação da medida. Nesse vácuo, a jurisprudência tem recorrido ao microssistema de tutela coletiva, aplicando por analogia o art. 16 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021). Assim, para que haja a decretação da indisponibilidade, exige-se a presença cumulativa de dois requisitos: probabilidade do direito (fumus boni iuris): indícios suficientes de que o ato lesivo ocorreu e perigo de dano (periculum in mora): risco concreto de dilapidação patrimonial ou de frustração do ressarcimento.

Com a reforma da Lei de Improbidade em 2021, o legislador deixou claro que a indisponibilidade de bens não pode ser presumida, exigindo fundamentação concreta e demonstração de risco efetivo. Essa nova orientação tem irradiado efeitos também nos casos de responsabilização de pessoas jurídicas pela Lei Anticorrupção, como reconhecido pelo TJ-PR em 2024, ao decidir que não se pode presumir o periculum in mora e que a indisponibilidade só se justifica diante de indícios de dilapidação ou ocultação patrimonial.

Outro aspecto relevante é a limitação da indisponibilidade ao valor do dano alegado, o que reforça o caráter de medida cautelar proporcional. O TJ-SP (2024), por exemplo, admitiu a indisponibilidade, mas restringiu-a ao montante indicado na inicial, afastando constrições patrimoniais que poderiam inviabilizar desnecessariamente as atividades da empresa.

No tocante às demais sanções previstas no art. 19, a jurisprudência é firme em afastar sua utilização em caráter cautelar. Suspensão de atividades, interdição de estabelecimentos, dissolução compulsória ou proibição de contratar não podem ser decretadas liminarmente, pois constituem sanções definitivas e só podem ser aplicadas em sentença após cognição exauriente. Tal entendimento está em consonância com o princípio da reserva de jurisdição, mas também com a ideia de que as medidas cautelares devem ser apenas instrumentais e provisórias, jamais antecipando de forma irreversível os efeitos de uma condenação.

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Em perspectiva principiológica, a disciplina das medidas cautelares na Lei nº 12.846/2013 deve ser interpretada à luz do devido processo legal substancial. Isso significa que a adoção de constrições patrimoniais deve respeitar os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, de modo a evitar tanto a inefetividade da lei quanto a imposição de gravames desproporcionais às empresas investigadas.

Assim, pode-se afirmar que o regime de cautelares na Lei Anticorrupção segue três balizas: (i) cabimento restrito: somente a indisponibilidade de bens pode ser utilizada como medida cautelar, (ii) requisitos rigorosos: é imprescindível demonstrar probabilidade do direito e perigo concreto de dano, afastando a presunção de risco e (iii) proporcionalidade: a constrição deve ser limitada ao valor do dano ou da multa estimada, de forma a não inviabilizar o funcionamento da empresa.

Esse conjunto de limites e condições demonstra que, embora a Lei Anticorrupção busque eficácia na repressão aos atos lesivos, o Judiciário exerce um papel moderador, impedindo que as medidas cautelares sejam convertidas em antecipação de punições definitivas, preservando o equilíbrio entre efetividade da tutela coletiva e garantias fundamentais.

5. Jurisprudência Recente

A jurisprudência recente dos pretórios pátrios evidencia essa realidade, temperando e interpretando a norma, amoldando-a à realidade viva da sociedade. Veja-se:

5.1 Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR)

“DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO DE PESSOA JURÍDICA POR PRÁTICA DE ATOS CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. MEDIDAS CAUTELARES. LEI ANTICORRUPÇÃO. SUPOSTA FRAUDE EM LICITAÇÃO. INDISPONIBILIDADE DE BENS DECRETADA LIMINARMENTE PELO D. JUÍZO ‘A QUO’. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DO PERIGO DE DANO EXIGIDO PELO ARTIGO 16, §3.º, DA LEI N.º 8.429/92, APLICÁVEL ANALOGICAMENTE AO CASO. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE INSOLVÊNCIA, OCULTAÇÃO OU DILAPIDAÇÃO DE PATRIMÔNIO PELOS ACUSADOS. OUTROSSIM, SUSPENSÃO DE ATIVIDADES E PROIBIÇÃO DE CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO. DESCABIMENTO NESSE INSTANTE PROCESSUAL. NATUREZA JURÍDICA DE PENALIDADES DEFINITIVAS QUE SÓ PODEM SER FIXADAS POR SENTENÇA. EXEGESE DO ARTIGO 12, §9.º, DA LEI N.º 8.429/92. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.”

Este precedente reforça a ideia de que medidas cautelares devem ser excepcionais e fundamentadas. A indisponibilidade de bens não pode ser presumida, e as sanções do art. 19 (suspensão de atividades e proibição de contratar) possuem natureza de penalidades definitivas, exigindo sentença.

5.2 Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG)

“DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DE PESSOAS JURÍDICAS POR PRÁTICA DE ATO LESIVO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. LEI Nº 12.846/2013. ALEGAÇÃO DE FRAUDE À COMPETITIVIDADE EM LICITAÇÕES. AUSÊNCIA DE PROVAS CONCRETAS. REFORMA DA SENTENÇA. IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INICIAIS. I. CASO EM EXAME Apelação Cível interposta contra sentença que julgou procedentes os pedidos formulados em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, para condenar as rés às sanções previstas na Lei nº 12.846/2013, em razão de suposta prática de ato lesivo à Administração Pública, consistente na frustração do caráter competitivo de licitações. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Definir se a participação conjunta de empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico em certames licitatórios caracteriza, por si só, violação ao caráter competitivo das licitações, nos termos do art. 5º, IV, 'a', da Lei nº 12.846/2013. III. RAZÕES DE DECIDIR - A condenação por ato lesivo à Administração Pública, nos termos do art. 5º, IV, 'a', da Lei nº 12.846/2013, exige a comprovação inequívoca de que a conduta das rés efetivamente frustrou o caráter competitivo do procedimento licitatório, causando prejuízo à isonomia entre os participantes e ao interesse público. - A simples participação conjunta de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico ou administradas pela mesma pessoa, em certames licitatórios, não caracteriza, por si só, fraude ou violação ao caráter competitivo, sendo imprescindível a demonstração de atuação coordenada e prejuízo concreto ao interesse público. IV. DISPOSITIVO E TESE Recurso provido. Pedidos iniciais julgados improcedentes.”

A decisão confirma que a condenação com base na Lei 12.846/2013 exige prova robusta de conluio e prejuízo concreto. A mera presença de empresas do mesmo grupo em licitação não é suficiente para caracterizar fraude. Esse entendimento resguarda o princípio da presunção de inocência e evita condenações baseadas em presunções frágeis.

5.3 Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP)

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – LEI ANTICORRUPÇÃO EMPRESARIAL – LEI FEDERAL nº 12.846/2013 - RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E CIVIL DE PESSOAS JURÍDICAS PELA PRÁTICA DE ATOS CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - Insurgência contra decisão que concedeu a liminar para (I) decretar a indisponibilidade de bens [...] e (II) a proibição, cautelar e provisória, de os requeridos participarem de qualquer licitação pública. – ADMISSIBILIDADE DA DECRETAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DE BENS – Medida recepcionada pela legislação para assegurar o resultado útil do processo – LIMITE DA INDISPONIBILIDADE - Indisponibilidade deve se restringir aos bens, direitos ou valores necessários à garantia da reparação integral do dano causado – DESCABIMENTO DA PROIBIÇÃO LIMINAR DE PARTICIPAÇÃO EM QUALQUER LICITAÇÃO PÚBLICA – Medida liminar que não está prevista na Lei Federal nº 12.846/2013 – Decisão parcialmente reformada – Recurso parcialmente provido.”

O TJ-SP confirma que a indisponibilidade de bens é cabível como cautelar, mas deve ser limitada ao valor do dano alegado, evitando excessos. Em contrapartida, reitera a impossibilidade de impor proibição de contratar liminarmente, por tratar-se de sanção definitiva.

5.4 Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC)

“APELAÇÕES SIMULTANEAMENTE INTERPOSTAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, PELA PRÁTICA DE ATOS LESIVOS AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. FRAUDE NA LICITAÇÃO [...] VEREDICTO JULGANDO PROCEDENTE EM PARTE OS PEDIDOS, CONDENANDO AS RÉS PELA PRÁTICA DE ATO LESIVO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, NA FORMA DO ART. 5º DA LEI N. 12.846/13, PROIBINDO O RECEBIMENTO DE INCENTIVOS [...] E RESSARCIR AO ERÁRIO [...] ACERVO PROBATÓRIO CONFIRMANDO A ATUAÇÃO EM CONLUIO PELAS RÉS DEMANDADAS COM O NÍTIDO INTUITO DE DESVIRTUAR O CARÁTER COMPETITIVO DO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. CONFIGURADO AJUSTE PRÉVIO ENTRE AS REQUERIDAS, QUE PRATICARAM "JOGO DE CARTAS MARCADAS".

Diferentemente dos demais, este precedente ilustra a aplicação efetiva das sanções judiciais quando há prova robusta do conluio fraudulento. O TJ-SC confirma condenação com proibição de incentivos e ressarcimento ao erário, demonstrando que a severidade das sanções judiciais se justifica quando há comprovação clara do ilícito.

5.5 Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) – Caso da clínica de fisioterapia

“RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA COM BASE NA LEI ANTICORRUPÇÃO - SITUAÇÃO DE IRREGULARIDADES ADMINISTRATIVAS - PERDIMENTO DOS BENS SUFICIENTE À REPROVAÇÃO DA CONDUTA - SENTENÇA RATIFICADA.

Não se controverte acerca da configuração do ato lesivo (art. 5º, IV, 'd', da Lei n. 12.846/2013), tendo em vista que empresa de fisioterapia contratada pelo Município recebeu por 26 sessões de fisioterapia que não foram – dado o óbito do paciente – efetivamente realizadas.

O conjunto probatório, todavia, revelou que o dano decorreu tanto da falta de controle de emissão das guias por parte do Município [...] como pelo procedimento de "baixa" adotado pela empresa [...], aspectos que devem ser ponderados na aplicação das penalidades. [...] Esse contexto (fato isolado havido nos quase três anos em que perdurou o contrato) demonstra a baixa gravidade da infração e do seu potencial lesivo, o que aliado ao valor da vantagem auferida pela empresa (R$ 1.820,00), não justifica a aplicação das sanções mais severas requeridas pelo Parquet, sendo suficiente à reprovabilidade da conduta a aplicação da pena de perdimento dos bens.

Recurso desprovido.”

(TJ-SC, Apelação n. 5003696-11.2020.8.24.0067, Rel. Hélio do Valle Pereira, 5ª Câmara de Direito Público, j. 28/06/2022).

Esse precedente é relevante por enfatizar a proporcionalidade na aplicação das sanções da Lei nº 12.846/2013. Embora configurado o ato lesivo, o tribunal ponderou a baixa gravidade da infração, a culpa concorrente da Administração e o baixo valor da vantagem indevida. Concluiu, assim, que o perdimento dos bens correspondentes à vantagem ilícita era sanção suficiente, afastando a aplicação de medidas mais severas como a suspensão de atividades ou a proibição de contratar.

6. Discussão Crítica

A diferenciação entre sanções administrativas e judiciais na Lei nº 12.846/2013 deve ser analisada sob a ótica do Direito Administrativo Sancionador, que exige a observância dos princípios constitucionais da legalidade, proporcionalidade, devido processo legal e reserva de jurisdição.

A jurisprudência examinada demonstra que o Poder Judiciário tem atuado como contraponto à tendência punitivista que poderia emergir de uma leitura maximalista da lei. Em diversos julgados, como no TJ-PR (2024) e no TJ-SP (2024), percebe-se a rejeição de medidas cautelares quando estas implicam antecipação indevida de sanções definitivas, a exemplo da suspensão de atividades empresariais ou da proibição de contratar com o Poder Público. Esses precedentes revelam uma preocupação em resguardar a presunção de inocência e o princípio da proporcionalidade, assegurando que apenas com trânsito em julgado possam ser aplicadas restrições tão gravosas.

Outro ponto relevante é a necessidade de prova robusta. O TJ-MG (2025), ao decidir que a simples participação de empresas de um mesmo grupo econômico em licitação não configura fraude por si só, evidencia que o ônus probatório qualificado é condição essencial para a responsabilização judicial. Isso evita que empresas sejam sancionadas com base em meros indícios ou presunções, fortalecendo a segurança jurídica.

Já o precedente do TJ-SC (2023) mostra o outro lado da moeda: quando comprovada a fraude mediante conluio (“jogo de cartas marcadas”), o Judiciário aplica as sanções judiciais de forma rigorosa. Isso demonstra que o sistema não é leniente, mas graduado: exige provas para justificar medidas mais intensas, e quando estas existem, não hesita em aplicá-las.

Portanto, o debate sobre a diferenciação das esferas de sanção deve ser compreendido a partir de três eixos:

* Garantias fundamentais: sanções estruturais (dissolução, interdição, proibição de contratar) só podem ser impostas pelo Judiciário, pois afetam direitos fundamentais como a livre iniciativa e a função social da empresa.

* Efetividade vs. proporcionalidade: enquanto a Administração pode agir rapidamente para impor multas e publicizar decisões, o Judiciário atua com mais rigor probatório e processual para evitar arbitrariedades.

* Microssistema de tutela coletiva: a aplicação analógica da Lei de Improbidade Administrativa reforça a ideia de um sistema integrado, em que normas diferentes convergem para o mesmo objetivo de combate à corrupção, mas sempre com limites impostos pelo Estado de Direito.

Esse desenho institucional revela uma escolha deliberada do legislador: confiar à Administração as sanções céleres e patrimoniais e reservar ao Judiciário as sanções de maior impacto estrutural, como forma de equilibrar a luta contra a corrupção com a preservação das garantias constitucionais.

7. Conclusão

A Lei nº 12.846/2013 introduziu um sistema dual de responsabilização da pessoa jurídica, no qual se destacam as diferenças de intensidade entre as sanções administrativas e judiciais. Enquanto as primeiras cumprem a função de resposta rápida, patrimonial e simbólica (multas e publicação da decisão), as segundas atingem a própria estrutura e funcionamento da empresa, razão pela qual exigem decisão judicial.

A análise da jurisprudência revela três aspectos centrais:

* Medidas cautelares: a indisponibilidade de bens é admitida, mas depende de demonstração concreta de risco ao resultado útil do processo, não bastando a presunção do periculum in mora. Já a suspensão de atividades e a proibição de contratar com o Poder Público são reconhecidas como sanções definitivas e não podem ser impostas em caráter liminar.

* Prova robusta como requisito essencial: os tribunais têm afastado condenações quando não há evidências claras de fraude, como no caso do TJ-MG, reafirmando a importância do devido processo legal e da proporcionalidade.

* Rigor diante da comprovação: quando há prova suficiente, como no acórdão do TJ-SC, as sanções judiciais são aplicadas de modo efetivo, inclusive com ressarcimento ao erário e proibição de incentivos públicos.

Essa construção jurisprudencial confirma que a diferenciação entre sanções administrativas e judiciais não representa uma desconfiança da esfera administrativa, mas sim a necessidade de legitimar as sanções mais gravosas mediante controle jurisdicional. Trata-se, portanto, de uma escolha político-legislativa em consonância com os princípios do Estado Democrático de Direito.

Conclui-se que o modelo brasileiro busca compatibilizar efetividade no combate à corrupção com segurança jurídica. A coexistência de sanções administrativas e judiciais permite respostas em diferentes graus de intensidade, ao mesmo tempo em que preserva a imparcialidade e o controle judicial para as medidas mais severas.

Em perspectiva crítica, contudo, ainda se nota certa fragmentação jurisprudencial quanto ao alcance das cautelares e ao grau de prova necessário para a responsabilização judicial. Isso sugere a necessidade de maior uniformização, seja pela atuação dos tribunais superiores, seja pela edição de normas complementares que detalhem critérios de aplicação das sanções.

No cenário atual, o sistema sancionador da Lei Anticorrupção pode ser compreendido como um modelo híbrido e equilibrado, que alia celeridade administrativa e garantismo judicial, buscando atingir o duplo objetivo de reprimir práticas corruptas e assegurar a proteção de direitos fundamentais.

Referências

BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre improbidade administrativa e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 3 jun. 1992.

BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 26 out. 2021.

PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento n.º 0060535-05.2022.8.16.0000, Rel. Des. Abraham Lincoln Merheb Calixto, 4ª Câmara Cível, julgado em 14 fev. 2024, publicado em 17 fev. 2024.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível n.º 0033634-71.2018.8.13.0372, Rel. Des. Renato Dresch, 7ª Câmara Cível, julgado em 4 fev. 2025, publicado em 19 fev. 2025.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n.º 2166697-40.2024.8.26.0000, Rel. Des. Rebouças de Carvalho, 9ª Câmara de Direito Público, julgado em 14 ago. 2024, publicado em 16 ago. 2024.

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível n.º 0900244-58.2017.8.24.0067, Rel. Des. Luiz Fernando Boller, 1ª Câmara de Direito Público, julgado em 11 abr. 2023.

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível n.º 5003696-11.2020.8.24.0067, Rel. Des. Hélio do Valle Pereira, 5ª Câmara de Direito Público, julgado em 28 jun. 2022.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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