Introdução: A Viagem que Custou Caro à Viação
Imagine a cena: uma mãe embarca em um ônibus lotado, equilibrando-se com três filhos pequenos, um deles ainda bebê de colo. Em meio ao movimento e à dificuldade de encontrar um lugar, ela faz um pedido simples ao motorista: auxílio para conseguir um dos assentos preferenciais, um direito garantido por lei para ela e suas crianças (1). A resposta, no entanto, não foi de ajuda, mas de humilhação. De forma exaltada e grosseira, o motorista a questionou sarcasticamente se ela gostaria de sentar-se em seu próprio lugar, o de motorista, expondo-a ao constrangimento diante de todos os outros passageiros (1).
A defesa da empresa de transporte se apoiou em argumentos que soam familiares a muitos usuários do sistema: era horário de pico, o veículo estava cheio e a passageira teria sido ríspida em sua solicitação (1). Contudo, para a Justiça, essas desculpas não foram suficientes. Em uma decisão marcante, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) condenou a viação a pagar uma indenização de R$ 10 mil por danos morais à passageira (1).
Este caso não é apenas a história de uma mulher, mas um poderoso lembrete de que a dignidade do passageiro não é um item opcional no serviço de transporte. A decisão judicial envia uma mensagem clara: o desrespeito e a humilhação não podem ser tratados como parte normal do cotidiano. Este artigo explora o que essa e outras decisões semelhantes significam para cada cidadão que utiliza o transporte público ou privado, desvendando os direitos e deveres que protegem todos os passageiros.
1. A Dignidade do Passageiro: Por Dentro da Decisão Judicial
Para entender a importância da condenação da empresa de ônibus, é fundamental compreender o conceito de dano moral. Diferente de um dano material, como uma bagagem perdida, o dano moral não se refere a uma perda financeira, mas a uma ferida na alma. Trata-se de uma ofensa à honra, à dignidade, à imagem ou ao bem-estar psicológico de uma pessoa, causando sofrimento, angústia e humilhação (3).
No caso da mãe e seus filhos, o tribunal identificou o dano moral exatamente na conduta do motorista. A decisão destacou que o funcionário da empresa causou uma "situação de extremo constrangimento" e "humilhante" (1). O relator do caso, desembargador Alexandre David Malfatti, foi enfático ao afirmar que para configurar a ofensa moral não é necessário um xingamento ou uma calúnia direta. Segundo ele, "qualquer atitude que cause constrangimento, depreciação, humilhação ou diminuição da dignidade do passageiro pode gerar o direito à indenização" (2).
A parte mais contundente da decisão, no entanto, foi o recado do Judiciário contra a normalização do mau atendimento. O desembargador afirmou que a "completa falta de cordialidade e empatia não pode ser 'banalizada' pelo Poder Judiciário" (1). Essa declaração é uma resposta direta à cultura de resignação que muitas vezes se instala entre os usuários de serviços públicos. A defesa da empresa, ao culpar o horário de pico, tentou justamente enquadrar o episódio como um inconveniente comum e aceitável do dia a dia. O tribunal rechaçou essa visão, estabelecendo que o padrão de serviço exigido por lei inclui um tratamento digno e respeitoso, independentemente das circunstâncias operacionais. A decisão eleva o padrão de cuidado, sinalizando que a civilidade não é um luxo, mas um componente essencial do contrato de transporte.
É importante ressaltar que a responsabilidade recai sobre a empresa porque, perante a lei, o motorista é um representante (ou preposto) da companhia. Suas ações, enquanto em serviço, são de responsabilidade do empregador (4). Portanto, a falha do funcionário em tratar a passageira com o devido respeito foi, legalmente, uma falha da própria empresa de transporte.
2. A Lei do Seu Lado: O que Diz o Código de Defesa do Consumidor
Muitos não se dão conta, mas ao pagar uma passagem de ônibus, metrô ou avião, o passageiro celebra um contrato e se torna um consumidor. A empresa de transporte é a fornecedora do serviço e, por isso, a relação entre ambos é regida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Lei nº 8.078/1990 (5). Essa é a principal ferramenta legal que protege o cidadão em situações de desrespeito.
O pilar dessa proteção é a chamada responsabilidade objetiva, prevista no artigo 14 do CDC. Em termos simples, isso significa que a empresa é responsável por reparar os danos causados aos seus consumidores "independentemente da existência de culpa" (5). Para ilustrar: se um eletrodoméstico novo apresenta um defeito e causa um acidente, o consumidor não precisa provar que a fábrica foi negligente na sua produção. Basta demonstrar o defeito, o dano sofrido e a ligação entre os dois.
No transporte de pessoas, a lógica é a mesma. O serviço é considerado "defeituoso" quando não oferece a segurança que o passageiro tem o direito de esperar (7). E essa segurança vai além da prevenção de acidentes de trânsito; ela engloba a proteção contra qualquer tipo de dano, incluindo o constrangimento e a humilhação, como ficou claro no caso da mãe no ônibus.
Essa obrigação de segurança é tão fundamental que a lei e a jurisprudência a consideram uma "cláusula de incolumidade" implícita em todo contrato de transporte. Ao vender uma passagem, a empresa não se compromete apenas a levar o passageiro de um ponto a outro; ela assume a obrigação de entregá-lo em seu destino são e salvo (incolume), tanto física quanto moralmente (8). O Código Civil, em seu artigo 734, reforça essa ideia ao determinar que "o transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens" (5). A humilhação imposta pelo motorista foi, portanto, uma quebra direta dessa cláusula contratual de segurança e integridade.
Para facilitar o entendimento, a tabela abaixo resume os principais pontos dessa relação:
Categoria |
Direitos do Passageiro (Consumidor) |
Deveres da Empresa de Transporte (Fornecedor) |
Segurança |
Ser transportado são e salvo, livre de acidentes, agressões e qualquer dano físico (4). |
Manter veículos em bom estado e garantir a incolumidade dos passageiros durante todo o trajeto (5). |
Dignidade |
Ser tratado com respeito, urbanidade e cordialidade por todos os funcionários (9). |
Treinar a equipe para o atendimento ao público, mediação de conflitos e garantir um ambiente livre de humilhação (1). |
Serviço Adequado |
Cumprimento de horários, higiene do veículo e acesso a assentos garantidos por lei (incluindo prioritários) (10). |
Prestar o serviço de forma pontual, eficiente e garantir o cumprimento dos direitos de prioridade legalmente estabelecidos (11). |
Reparação |
Ser indenizado por danos materiais (ex: bagagem extraviada) e morais (ex: constrangimento, humilhação) (2). |
Responder objetivamente (independentemente de culpa) por falhas na prestação do serviço que resultem em dano ao consumidor (5). |
3. Do Ônibus ao Avião: A Mesma Lógica de Proteção
A lógica de proteção ao consumidor não se limita ao transporte terrestre. Um caso ocorrido em um voo da Gol Linhas Aéreas demonstra que os mesmos princípios se aplicam no ar, com consequências muito semelhantes. Na ocasião, uma mãe e sua filha embarcaram em um voo de Salvador para São Paulo e encontraram o assento na janela, que haviam comprado, ocupado por outra passageira com uma criança no colo. Após a desocupação do lugar, familiares da outra passageira iniciaram uma série de ofensas verbais que rapidamente escalaram para agressões físicas (12).
O desfecho inicial foi ainda mais revoltante: tanto as vítimas quanto os agressores foram retirados da aeronave pela tripulação. Para piorar, um funcionário da Gol deu uma entrevista à imprensa, culpando as vítimas pela confusão por sua suposta "falta de empatia" ao não cederem o assento (13).
A resposta da Justiça, no entanto, alinhou-se perfeitamente com o caso do ônibus. O tribunal condenou a Gol a indenizar cada uma das passageiras agredidas em R$ 10 mil, totalizando R$ 20 mil (12). O fundamento foi o mesmo: a companhia aérea falhou em seu dever primordial de garantir a segurança e a integridade de suas clientes (12).
A comparação entre os dois casos é reveladora. Embora ocorridos em ambientes completamente distintos — um ônibus municipal e um avião comercial —, a base legal e o valor da indenização por pessoa foram idênticos. Isso demonstra a universalidade do princípio da responsabilidade objetiva. O direito fundamental a uma viagem segura e digna é o mesmo para todos os passageiros, não importando o meio de transporte ou o preço da passagem.
Além disso, o caso da Gol esclarece outro ponto crucial: a responsabilidade da empresa pela ação de terceiros. No ônibus, o agressor foi um funcionário. No avião, foram outros passageiros. A companhia aérea poderia argumentar que não tem controle sobre o comportamento de seus clientes, mas a Justiça entende de outra forma. Conflitos entre passageiros são considerados um fortuito interno, ou seja, um risco inerente e previsível à atividade de transportar um grande número de pessoas em um espaço confinado (14). Não se trata de um evento externo e imprevisível, como um raio que atinge a aeronave. Portanto, a empresa tem o dever de gerenciar esses riscos, manter a ordem a bordo e proteger seus clientes de agressões. A falha da tripulação em controlar a situação e proteger as vítimas configurou o "defeito" na prestação do serviço, gerando o dever de indenizar.
4. Assento Prioritário: Mais que Gentileza, uma Obrigação Legal
A discussão que deu origem à humilhação no ônibus girou em torno de um assento prioritário. É vital que todos os cidadãos compreendam que essa prioridade não é uma questão de cortesia, mas uma obrigação imposta por lei. A Lei Federal nº 10.048/2000, atualizada em 2023 pela Lei nº 14.626, é clara ao determinar quem tem direito a esse tratamento especial (11). A lista de beneficiários inclui:
Pessoas com deficiência;
Pessoas com transtorno do espectro autista;
Pessoas idosas com idade igual ou superior a 60 anos;
Gestantes;
Lactantes;
Pessoas com criança de colo;
Pessoas com mobilidade reduzida.
O texto da lei determina que as empresas de transporte "reservarão assentos, devidamente identificados" para essas pessoas (11). O verbo "reservarão" não deixa margem para dúvidas: é um dever da empresa, não um favor do motorista ou dos outros passageiros. No caso que abriu este artigo, o motorista não apenas se omitiu de seu dever de auxiliar a passageira a exercer seu direito, como ativamente a humilhou por tentar fazê-lo. Sua conduta representou uma falha direta da empresa em cumprir a legislação.
Reforçando essa tendência de proteção, algumas cidades, como o Rio de Janeiro e o Distrito Federal, foram além. Leis municipais e distritais tornaram todos os assentos do transporte público preferenciais (15). Isso significa que qualquer passageiro sentado, mesmo em um assento não sinalizado, tem o dever de ceder o lugar a uma pessoa de um dos grupos prioritários, caso seja solicitado.
5. Sofri Desrespeito. E Agora?
Saber que a lei está do seu lado é o primeiro passo. O segundo, e mais importante, é saber como agir para fazer valer esse direito. Se um passageiro for vítima de desrespeito, humilhação ou qualquer outra falha no serviço de transporte, seguir um roteiro claro pode fazer toda a diferença.
Passo 1: Mantenha a Calma e Documente Tudo
No momento do ocorrido, a prioridade é a segurança. Evite discussões que possam levar a uma escalada do conflito. Assim que possível, anote todas as informações relevantes: data, hora, local, número da linha do ônibus ou do voo, e o número de identificação do veículo. Se conseguir, anote o nome do funcionário envolvido. A presença de testemunhas é muito importante; se for seguro, peça o contato delas. Fotos e vídeos podem servir como prova, mas devem ser feitos com cautela.
Passo 2: Reclame Diretamente à Empresa
O primeiro canal oficial é o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) ou a Ouvidoria da empresa de transporte. Faça a reclamação por escrito (e-mail ou formulário no site) para ter um registro. Descreva os fatos de forma clara e objetiva. Exija sempre um número de protocolo do seu atendimento e peça um prazo para que a empresa apresente uma resposta (6).
Passo 3: Acione os Órgãos de Fiscalização e Defesa
Caso a empresa não responda ou a resposta seja insatisfatória, é hora de levar o caso a outras instâncias.
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Procon: Procure o Procon de sua cidade ou estado. Este é o principal órgão de defesa do consumidor e pode mediar o conflito, convocar a empresa para uma audiência e até aplicar multas (16).
Agências Reguladoras: Para problemas em viagens interestaduais de ônibus, a reclamação deve ser feita à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Para o transporte aéreo, o órgão responsável é a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Ambas possuem canais específicos para denúncias de passageiros (17).
Passo 4: Busque a Justiça
Se as etapas anteriores não resolverem a questão e o passageiro sofreu um dano (material ou moral), o caminho final é o Poder Judiciário.
Juizados Especiais Cíveis: Conhecidos como "tribunais de pequenas causas", são a via mais rápida e acessível. Para causas com valor de até 20 salários mínimos, não é necessário contratar um advogado. Para causas entre 20 e 40 salários mínimos, a presença de um advogado é obrigatória.
Defensoria Pública ou Advogado Particular: Cidadãos que não podem pagar por um advogado têm direito à assistência jurídica gratuita da Defensoria Pública de seu estado. Alternativamente, podem contratar um advogado especializado em direito do consumidor.
Conclusão
As decisões que condenaram a empresa de ônibus e a companhia aérea a indenizarem passageiros por humilhação e agressão não são fatos isolados. Elas refletem um posicionamento cada vez mais firme do Judiciário brasileiro de que a dignidade do consumidor é um valor inegociável. Esses casos ensinam que o bilhete de transporte é mais do que um simples recibo; é um contrato que garante uma viagem segura, respeitosa e digna.
Ao conhecerem seus direitos e os canais para exigi-los, os cidadãos deixam de ser passageiros passivos e se tornam agentes de mudança. Cada reclamação registrada, cada ação movida, contribui para elevar o padrão dos serviços e para construir um sistema de transporte mais humano e justo para todos. A lei é uma ferramenta poderosa, mas ela só ganha vida quando cidadãos informados e ativos a utilizam.
Fontes
Mãe humilhada por motorista por assento prioritário será indenizada, agosto 2025, https://www.migalhas.com.br/quentes/438459/mae-humilhada-por-motorista-por-assento-prioritario-sera-indenizada
Passageira com três filhos humilhada por motorista de ônibus será indenizada, agosto 2025, https://www.debatejuridico.com.br/noticias/passageira-com-tres-filhos-humilhada-por-motorista-de-onibus-sera-indenizada/
Responsabilidade Civil no Transporte Público: Aspectos Importantes - Galícia Educação, agosto 2025, https://www.galiciaeducacao.com.br/blog/responsabilidade-civil-no-transporte-publico-aspectos-importantes/
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Passageiro como consumidor: direitos no transporte público - Jornal Spasso Cidades, agosto 2025, https://jornalspassocidades.com.br/passageiro-como-consumidor-direitos-no-transporte-publico/
RESPONSABILIDADE CIVIL DA TRANSPORTADORA - RGL Advogados, agosto 2025, https://rgladvogados.com/responsabilidade-civil-da-transportadora/
Transporte público: veja como exigir os seus direitos como consumidor - Idec, agosto 2025, https://idec.org.br/dicas-e-direitos/transporte-publico-veja-direitos-do-consumidor
Responsabilidade objetiva do fornecedor — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT, agosto 2025, https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/cdc-na-visao-do-tjdft-1/responsabilidade-civil-no-cdc/responsabilidade-objetiva-do-fornecedor
RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO NO CONTRATO DE TRANSPORTE - NORMAS LEGAIS, agosto 2025, https://www.normaslegais.com.br/guia/clientes/responsabilidade-civil-relacoes-consumo-contrato-transporte.htm
NORMAS GERAIS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS, agosto 2025, https://www.normaslegais.com.br/guia/clientes/normas-gerais-no-transporte-rodoviario-de-passageiros.htm
Guia do Usuário de Transporte Público | Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, agosto 2025, https://idec.org.br/guia-do-usuario-transporte-publico
L10048 – Planalto. LEI No 10.048, DE 8 DE NOVEMBRO DE 2000. Dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e dá outras providências, agosto 2025, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10048.htm
Gol condenada a pagar R$ 20 mil a passageiras agredidas em voo ..., agosto 2025, https://judit.io/blog/noticias/gol-indenizacao-passageiras-agredidas-voo/
Gol indenizará passageiras agredidas, expulsas e expostas na mídia - Migalhas, agosto 2025, https://www.migalhas.com.br/quentes/425709/gol-indenizara-passageiras-agredidas-expulsas-e-expostas-na-midia
Responsabilidade civil transporte coletivo: tudo sobre danos a passageiros, agosto 2025, https://legale.com.br/blog/responsabilidade-civil-transporte-coletivo-tudo-sobre-danos-a-passageiros/
Lei torna preferenciais todos os assentos do transporte público no DF - Agência Brasil, agosto 2025, https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-11/lei-torna-preferenciais-todos-os-assentos-do-transporte-publico-no-df
Como Resolver Problemas com Serviços de Transporte Urbano e Intermunicipal l Conheça Um Caso Inusitado que Tomou Conta da Internet nas Últimas Semanas - PROCEDE - Defesa do Consumidor, agosto 2025, https://www.procedeconsumidor.com.br/post/como-resolver-problemas-com-servi%C3%A7os-de-transporte-urbano-e-intermunicipal-l-conhe%C3%A7a-um-caso-inusita
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Registrar reclamação ou denúncia sobre Transporte Intermunicipal de Passageiros, agosto 2025, https://www.der.pr.gov.br/servicos/Servicos/Apoio-ao-turista/Registrar-reclamacao-ou-denuncia-sobre-Transporte-Intermunicipal-de-Passageiros-Elod9aNv