Corrupção Privada no Brasil: Entre a Tolerância Cultural e a Necessidade de Criminalização
Luiz Carlos Nacif Lagrotta
Resumo
O presente estudo analisa a corrupção na esfera privada como fenômeno jurídico-social historicamente tolerado no Brasil e ainda insuficientemente enfrentado pelo ordenamento penal. Embora prevista de forma pontual na Lei de Propriedade Industrial e na Lei Geral do Esporte, a corrupção privada carece de tipificação geral no Código Penal, o que contrasta com a experiência estrangeira e com compromissos assumidos pelo país em convenções internacionais. O artigo examina a definição de corrupção privada, seu enquadramento à luz do Direito Penal Econômico, as convenções internacionais, experiências estrangeiras, projetos legislativos brasileiros e o papel do compliance empresarial. Conclui-se pela necessidade de criminalização clara e proporcional, acompanhada de políticas de integridade e mudança cultural, de modo a superar a tolerância social ao “jeitinho” e fortalecer a livre concorrência e a ética empresarial.
Palavras-chave: Corrupção privada; Direito Penal Econômico; Livre concorrência; Compliance; Cultura jurídica.
Abstract
This paper analyzes private corruption as a legal and social phenomenon historically tolerated in Brazil and still insufficiently addressed by criminal law. Although partially covered by the Industrial Property Law and the Sports General Law, private corruption lacks general typification in the Brazilian Penal Code, which contrasts with foreign experiences and the country’s commitments to international conventions. The article examines the concept of private corruption, its framing under Economic Criminal Law, international conventions, comparative law, Brazilian legislative proposals, and the role of corporate compliance. It concludes that clear and proportional criminalization is necessary, combined with integrity policies and cultural change, in order to overcome social tolerance to “jeitinho” and strengthen free competition and business ethics.
Keywords: Private corruption; Economic Criminal Law; Fair competition; Compliance; Legal culture.
Sumário: 1. Introdução. 2. Corrupção: conceito e evolução histórica. 3. Corrupção privada no ordenamento jurídico brasileiro. 4. Direito Penal Econômico e o bem jurídico protegido. 4.1 Fragmentariedade e subsidiariedade. 4.2 Livre concorrência, confiança e lealdade contratual. 4.3 Riscos de expansão penal. 5. Experiências estrangeiras. 5.1 Reino Unido. 5.2 Estados Unidos. 6. Adequação normativa brasileira. 7. Projetos legislativos brasileiros. 7.1 PL 1469/23. 7.2 PL 4436/20. 7.3 PL 576/23. 8. Conclusão. Referências
1. Introdução
A corrupção é um dos fenômenos mais discutidos no campo do Direito Penal e da Ciência Política. Entretanto, no Brasil, o debate sempre esteve centrado no setor público, reforçando a percepção de que se trata de um problema essencialmente estatal. A legislação penal vigente confirma essa visão restrita: os arts. 317 e 333 do Código Penal tipificam apenas a corrupção ativa e passiva de agentes públicos, deixando de fora um vasto conjunto de práticas ilícitas ocorridas no setor privado.
Contudo, a experiência internacional e os compromissos assumidos pelo Brasil em convenções internacionais demonstram que a corrupção privada — entendida como o oferecimento ou recebimento de vantagem indevida em relações estritamente privadas — possui efeitos igualmente nefastos. Tais práticas distorcem a livre concorrência, violam o dever de lealdade contratual e corroem a confiança que sustenta a ordem econômica.
A presente pesquisa parte da seguinte problemática: é necessária a criminalização da corrupção privada no Brasil? Em caso afirmativo, qual deve ser o bem jurídico tutelado e quais são os limites dessa intervenção penal?
O artigo pretende sustentar que, embora o Direito Penal deva atuar como ultima ratio, a tipificação da corrupção privada é medida necessária para a proteção da concorrência e da confiança nas relações empresariais. Para tanto, o estudo dialoga com experiências estrangeiras, convenções internacionais e projetos legislativos nacionais.
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa é dedutiva e dogmática, baseada em análise comparada de legislações e doutrina especializada, além de crítica ao modelo brasileiro atual.
2. Corrupção: conceito e evolução histórica
A palavra corrupção tem origem no latim corrumpere, que significa quebrar em pedaços, decompor, deteriorar. No plano jurídico, o conceito foi progressivamente associado à ideia de suborno e desvio de função. No entanto, a corrupção não se restringe a relações públicas: em diversos contextos, pode manifestar-se como violação de deveres éticos em relações privadas.
Não se pode perder de vista que a noção de corrupção como evidencia a polissemia do termo, que pode abarcar dimensões morais, sociais e jurídicas.
Tradicionalmente, a doutrina penal brasileira reconhece apenas a corrupção pública: aquela em que um agente estatal solicita, recebe ou aceita vantagem indevida em troca da prática ou omissão de ato de ofício (corrupção passiva), ou em que o particular oferece vantagem (corrupção ativa).
Já a corrupção privada ocorre quando um agente econômico ou trabalhador de empresa privada aceita ou solicita vantagem indevida para favorecer interesses específicos, em prejuízo da concorrência, da empresa ou de terceiros. Exemplos incluem o suborno de empregados em processos de compras, a manipulação de resultados esportivos e a preferência comercial não justificada.
A principal diferença reside no sujeito ativo: na corrupção pública, há envolvimento de agente estatal; na corrupção privada, todos os sujeitos são particulares. Apesar disso, ambas compartilham a essência: a troca ilícita de vantagens que distorce a ordem jurídica e econômica.
Do ponto de vista sociológico, a corrupção pode ser vista como prática estrutural que mina a confiança social e favorece uma cultura de tolerância ao ilícito. No Brasil, a expressão “jeitinho brasileiro” frequentemente legitima pequenas corrupções privadas, como o pagamento de favores ou a manutenção de fornecedores por afinidade, em detrimento da qualidade ou do preço.
Sob a perspectiva do Direito Penal Econômico, a corrupção privada desafia os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade: deve-se criminalizar apenas condutas que lesem bens jurídicos fundamentais e que não possam ser eficazmente tutelados por outros ramos do direito. A grande questão, portanto, é determinar se a livre concorrência e a confiança empresarial justificam a intervenção penal.
3. Corrupção privada no ordenamento jurídico brasileiro
O Código Penal brasileiro, promulgado em 1940, não prevê um tipo penal específico de corrupção entre particulares. A corrupção é tratada exclusivamente sob a ótica pública, nos arts. 317 e 333, ao disciplinar a corrupção passiva e ativa envolvendo agentes estatais.
Essa ausência de previsão reflete uma concepção histórica de que apenas o poder público poderia ser vulnerado pela corrupção, deixando de fora um universo de práticas ilícitas ocorridas no setor privado.
Na prática, quando há casos de corrupção privada, o enquadramento ocorre de forma reflexa e insatisfatória, por meio de figuras como: estelionato (art. 171 do CP), quando há obtenção de vantagem ilícita mediante fraude; apropriação indébita (art. 168 do CP), em hipóteses de desvio de valores em detrimento da empresa e fraude contra credores (art. 168 da Lei 11.101/2005), quando a conduta ocorre em contexto falimentar.
Esse expediente, além de impreciso, fragiliza a repressão penal, uma vez que os bens jurídicos tutelados por esses tipos não correspondem diretamente à livre concorrência ou à confiança empresarial.
São as seguintes as previsões pontuais na legislação especial:
a) Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96)
O art. 195, incisos IX e X, tipifica como crime de concorrência desleal:
“dar ou prometer dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever de lealdade, proporcione vantagem ao autor do crime”;
-
“receber dinheiro ou utilidade, ou aceitar promessa de vantagem, para, faltando ao dever de lealdade, proporcionar vantagem a concorrente do empregador”.
Aqui há, ainda que de forma indireta, criminalização da corrupção privada, limitada ao contexto da concorrência desleal entre empresas. O bem jurídico protegido é a lealdade concorrencial, mas a norma é restrita e não abrange outras formas de corrupção entre particulares.
b) Setor esportivo
No esporte, o legislador avançou mais. O Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003, alterado pela Lei 12.299/2010) tipificou a corrupção em competições esportivas. Esse movimento foi consolidado pela Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), que prevê no art. 165 o crime de corrupção ativa e passiva no âmbito esportivo, punindo dirigentes, árbitros e agentes privados que manipularem resultados mediante vantagem indevida.
Essa experiência mostra que, quando há forte pressão social e risco à integridade de uma atividade econômica de relevância coletiva (como o esporte), o legislador brasileiro não hesita em criminalizar a corrupção privada.
A doutrina brasileira, embora escassa, tem progressivamente chamado atenção para a lacuna normativa quanto à corrupção privada. Vladimir Passos de Freitas, em artigo publicado no Consultor Jurídico, observa que a ausência de tipificação geral compromete a efetividade do combate a práticas que corroem a lealdade empresarial e distorcem a livre concorrência. O autor ressalta que a reflexão acadêmica e jurisprudencial no país ainda é incipiente, mas começa a ganhar corpo diante de experiências estrangeiras e das recomendações internacionais.
Nesse sentido, Freitas relembra a análise de Cecília Melo, para quem a Lei Geral do Esporte representou um avanço ao prever expressamente o crime de corrupção entre particulares no âmbito esportivo. Ainda que pontual, essa inovação legislativa abre espaço para uma discussão mais ampla sobre a necessidade de inserção da corrupção privada no Código Penal, como forma de alinhar o Brasil às melhores práticas internacionais e garantir maior segurança jurídica no setor empresarial.
A jurisprudência nacional ainda é tímida no reconhecimento da corrupção privada. Os tribunais, em geral, resolvem os casos dentro da lógica da concorrência desleal (LPI) ou de ilícitos civis e trabalhistas.
Exemplo disso são decisões que condenam empregados por aceitar vantagens de fornecedores em detrimento de seus empregadores, enquadrando a conduta como justa causa trabalhista ou ilícito civil indenizável, mas raramente como infração penal.
4. Direito Penal Econômico e o bem jurídico da corrupção privada
O Direito Penal deve ser utilizado como “ultima ratio”. Isso significa que sua intervenção só é legítima quando os demais ramos do Direito (civil, administrativo, concorrencial ou trabalhista) forem insuficientes para proteger bens jurídicos relevantes.
A corrupção privada, nesse contexto, levanta uma questão central: os ilícitos entre particulares podem ser combatidos de forma satisfatória pelo Direito Civil (indenizações), pelo Direito do Trabalho (sanções por quebra de lealdade) e pelo Direito Concorrencial (CADE e LPI), ou há efetiva necessidade de intervenção penal?
A chave para legitimar a criminalização da corrupção privada está na definição de seu bem jurídico. A doutrina tem apresentado três principais linhas interpretativas:
-
Livre concorrência
Defendida sobretudo em países como Alemanha e Áustria.
Argumenta-se que a corrupção privada distorce a competição entre empresas, favorecendo quem paga suborno em detrimento de quem compete de forma lícita.
No Brasil, essa lógica aparece no art. 195 da Lei de Propriedade Industrial.
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Confiança nas relações privadas
Corrupção é vista como fenômeno que mina a confiança interpessoal, elemento essencial para o funcionamento dos mercados e da vida em sociedade.
Essa visão se aproxima da teoria da confiança, segundo a qual a previsibilidade e a lealdade são bens jurídicos de relevância coletiva.
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Dever de lealdade contratual
Com enfoque trabalhista, como em França e Holanda.
Entende que o empregado ou representante que aceita suborno viola o dever de lealdade para com seu empregador, praticando um ato de infidelidade empresarial.
No Brasil, a discussão ainda é incipiente. Parte da doutrina defende que o bem jurídico deve ser a ordem econômica (no sentido do art. 170 da Constituição Federal), enquanto outros preferem um recorte mais restrito, como a livre concorrência.
4.3 Riscos da expansão penal
A criminalização da corrupção privada não é consenso. Juarez Tavares e Zaffaroni alertam que a utilização do Direito Penal para regular relações privadas pode gerar um Direito Penal simbólico, mais preocupado em dar resposta à opinião pública do que em oferecer proteção efetiva2.
Além disso, há o risco de sobreposição com sanções civis e administrativas, resultando em duplicidade de punições. Outro desafio é a prova: ao contrário da corrupção pública, em que há elementos formais de controle (processos administrativos, contratos públicos), a corrupção privada ocorre em ambientes mais fechados, dificultando a colheita de evidências.
Por isso, muitos defendem um modelo híbrido: criminalizar condutas graves de corrupção privada (especialmente em contexto concorrencial ou com relevante impacto econômico), mas deixar para o compliance corporativo e para a esfera administrativa a função de prevenir e punir as condutas de menor gravidade.
5. Experiências estrangeiras de criminalização
5.1 Reino Unido – UK Bribery Act (2010)
O Reino Unido possui uma das legislações mais abrangentes do mundo no combate ao suborno. O UK Bribery Act 2010 criminaliza tanto a corrupção pública quanto a corrupção privada, prevendo os seguintes aspectos:
Corrupção ativa e passiva, abrangendo agentes públicos e privados;
Responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, caso não implemente mecanismos adequados de prevenção;
O crime de “failure to prevent bribery”, que impõe sanções severas às empresas que não adotarem programas de compliance eficazes;
Alcance extraterritorial: a lei aplica-se a empresas com sede no Reino Unido ou que realizem negócios no país, mesmo que o ato ilícito tenha ocorrido no exterior.
As sanções são pesadas: multas ilimitadas para empresas e penas de até 10 anos de prisão para pessoas físicas. Esse modelo é frequentemente citado como exemplo de como a legislação pode aliar repressão penal e incentivo ao compliance.
5.1 Estados Unidos – Foreign Corrupt Practices Act (FCPA, 1977)
Os Estados Unidos adotam um modelo peculiar: o FCPA não trata da corrupção privada doméstica, mas foca no suborno transnacional de agentes públicos estrangeiros. No entanto:
Muitas práticas de corrupção privada são enquadradas em crimes de fraude corporativa, wire fraud ou honest services fraud;
A atuação da SEC (Securities and Exchange Commission) e do Department of Justice (DOJ) garante ampla fiscalização, sobretudo em empresas de capital aberto;
O alcance é extraterritorial, punindo inclusive empresas estrangeiras que negociam ações em bolsas americanas.
Embora o FCPA não seja uma lei de corrupção privada em sentido estrito, sua eficácia repressiva e internacional serve de referência para outros países.
6. O dever de adequação legislativa do Brasil
O Brasil, como signatário de convenções internacionais sobre corrupção, encontra-se em dívida normativa:
Adotou a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) para cumprir parcialmente a Convenção da OCDE e a UNCAC, mas a lei trata apenas da corrupção pública.
Ainda não internalizou plenamente a criminalização da corrupção privada, limitando-se às hipóteses da LPI e da Lei do Esporte.
Essa lacuna fragiliza a posição internacional do país e cria assimetria normativa em relação a parceiros comerciais que já criminalizam a prática. Além disso, dificulta a cooperação internacional em casos de corrupção envolvendo empresas brasileiras no exterior.
7. Projetos legislativos brasileiros
7.1 PL 1469/2023 (Senado Federal)
O Projeto de Lei 1469/2023 do Senado Federal pretende incluir no Código Penal o crime de corrupção entre particulares, tanto em sua forma passiva quanto ativa. O texto abrange sócios, dirigentes, administradores, empregados ou representantes de pessoas jurídicas que, em troca de vantagem indevida, pratiquem ou deixem de praticar ato contrário aos deveres funcionais, causando prejuízo à própria entidade.
Do outro lado, pune também quem oferece ou concede essa vantagem. A pena prevista é de reclusão de um a quatro anos e multa, com agravamento quando a infração recair sobre sociedades anônimas de capital aberto. A ação penal, segundo a redação proposta, dependerá de representação da vítima.
A exposição de motivos busca fundamentar a proposta a partir de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em convenções como a da ONU contra a Corrupção e a do Conselho da Europa, bem como na constatação de que diversos países, entre eles Alemanha, França e Espanha, já tipificaram a corrupção entre particulares. O texto menciona ainda casos recentes de grande repercussão, como o das Lojas Americanas, e defende que a ausência de criminalização no Brasil enfraquece a proteção da livre concorrência e da moralidade empresarial.
Entre os aspectos positivos, o projeto rompe o silêncio histórico do Código Penal em relação à corrupção privada e coloca o tema em debate de forma mais sistemática. O mérito é evidente: trata-se de um passo inicial na direção de equiparar o ordenamento jurídico brasileiro ao de países que já enfrentam o problema de forma clara e estruturada.
É igualmente relevante o fato de abranger não apenas empregados, mas também sócios e administradores, reconhecendo que atos de corrupção privada podem ser praticados em prejuízo da própria empresa, de acionistas e de credores. A previsão de agravante em casos envolvendo sociedades anônimas de capital aberto também merece destaque, por sinalizar preocupação com a repercussão sistêmica no mercado e com a proteção de investidores e acionistas minoritários.
Entretanto, o projeto apresenta fragilidades que não podem ser ignoradas. A exposição de motivos, embora cite tratados e exemplos estrangeiros, não oferece dados concretos sobre a realidade brasileira, como estatísticas ou relatórios de órgãos de controle, o que enfraquece a percepção de urgência normativa.
A redação do tipo penal é excessivamente ampla, ao falar em “ato contrário aos deveres funcionais”, sem delimitar claramente a diferença entre corrupção e práticas comerciais legítimas, como bônus de desempenho ou políticas de incentivo. Essa generalidade pode gerar insegurança jurídica e abrir espaço para uma aplicação desmedida do Direito Penal, em desacordo com o princípio da fragmentariedade.
Outro ponto de crítica é a falta de integração com programas de compliance, cada vez mais centrais na autorregulação empresarial. Ao contrário de legislações estrangeiras, como o UK Bribery Act 2010, o projeto não prevê mecanismos de atenuação de responsabilidade ou exclusão de pena para empresas que demonstrem possuir sistemas eficazes de prevenção à corrupção.
Também não há uma gradação das penas para condutas de maior ou menor gravidade, de modo que pequenos ilícitos podem receber o mesmo tratamento dado a esquemas de larga escala, o que compromete a proporcionalidade.
Por fim, a opção legislativa de condicionar a ação penal à representação da vítima limita a atuação do Ministério Público, o que pode ser um obstáculo em casos de maior relevância social, especialmente quando os efeitos da corrupção privada atingem não apenas a empresa diretamente envolvida, mas também investidores, consumidores e o mercado em geral.
Em síntese, o PL 1469/2023 é um marco importante porque finalmente reconhece a corrupção privada como problema jurídico digno de tipificação penal, alinhando o Brasil ao cenário internacional.
Todavia, a proposta ainda carece de sofisticação. Sua formulação genérica, a falta de diálogo com mecanismos de compliance e a ausência de critérios objetivos de diferenciação entre ilícitos de maior e menor gravidade indicam que, se aprovado tal como está, o dispositivo corre o risco de se tornar um tipo penal de caráter mais simbólico do que efetivamente aplicável.
O projeto aviva o debate, mas ainda não oferece uma solução madura e funcional para os desafios práticos que a corrupção privada coloca ao ambiente empresarial brasileiro.
7.2 PL 4436/2020 (Senado Federal)
Anterior ao PL 1469/23, o PL 4436/20 também busca tipificar a corrupção privada.
O Projeto de Lei 4436/2020 propõe a criação do art. 180-B no Código Penal, destinado a criminalizar a corrupção entre particulares. O dispositivo prevê pena de dois a cinco anos de reclusão para o empregado ou representante de empresa ou instituição privada que receber, solicitar ou aceitar promessa de vantagem indevida para favorecer a si ou a terceiros em razão de suas atribuições. Na mesma pena incorre quem entrega ou paga a vantagem. O projeto ainda estabelece que a ação penal dependerá de representação da vítima.
A justificativa apresentada apoia-se principalmente na Convenção da ONU contra a Corrupção (Convenção de Mérida, 2003), promulgada no Brasil em 2006, cujos artigos 21 e 22 recomendam a criminalização da corrupção no setor privado.
Além disso, a exposição de motivos menciona que países europeus já tipificaram o delito desde o início do século XX, citando os exemplos de Alemanha, França, Reino Unido e Portugal. Também se recorda que, nos Estados Unidos, embora não haja um tipo autônomo de “corrupção privada” no âmbito federal, a conduta é usualmente reprimida por meio de crimes como fraude, conspiração ou lavagem de dinheiro. O argumento central é que a corrupção privada mina a livre concorrência, abala a confiança nas relações de negócios e afugenta investidores, internos e externos.
Entre os pontos positivos, destaca-se o fato de o projeto colocar em pauta a necessidade de criminalizar condutas que, embora graves, ainda não encontram tipificação adequada no direito penal brasileiro.
A proposta aproxima o Brasil das práticas internacionais e cumpre parcialmente os compromissos assumidos em tratados multilaterais. Além disso, ao prever pena mais elevada (de dois a cinco anos) em comparação ao PL 1469/2023, o PL 4436/20 demonstra maior rigor no tratamento da corrupção privada, sinalizando a gravidade da conduta.
Entretanto, a proposta também apresenta limitações importantes:
* Em primeiro lugar, a redação do tipo penal é simplista e não diferencia contextos de menor ou maior relevância econômica, tratando igualmente situações de pequena monta e esquemas de grande impacto. A ausência de agravantes específicos, como habitualidade ou repercussão econômica, torna o dispositivo pouco sensível às variações de gravidade.
* Em segundo lugar, o projeto copia a lógica da corrupção pública, sem levar em conta as peculiaridades do setor privado. Ao importar praticamente de forma literal a estrutura típica da corrupção estatal, corre-se o risco de confundir práticas comerciais legítimas — como políticas de bonificação ou descontos — com condutas criminosas, criando insegurança jurídica.
Outro aspecto criticável é a falta de integração com mecanismos modernos de compliance corporativo. Diferentemente de legislações como o UK Bribery Act, que reconhecem programas de integridade como atenuantes de responsabilidade, o PL 4436/2020 ignora a autorregulação empresarial e a crescente importância das políticas internas de prevenção. A exigência de representação da vítima como condição de procedibilidade também pode enfraquecer a persecução penal, já que empresas ou dirigentes podem se omitir por conveniência ou por receio de exposição negativa.
Em síntese, o PL 4436/2020 tem o mérito de colocar na agenda legislativa a criminalização da corrupção privada, atendendo parcialmente às demandas internacionais e aproximando o Brasil do direito comparado.
Contudo, é um projeto de caráter rudimentar, que repete a lógica da corrupção pública sem adaptá-la às peculiaridades das relações empresariais. Se aprovado tal como está, o risco é que se converta em um tipo penal de aplicação restrita e pouco eficaz, incapaz de lidar com a complexidade dos ilícitos no setor privado brasileiro.
7.3 PL 576/2023 (Câmara dos Deputados)
O Projeto de Lei 576/2023 propõe a inserção de um novo título no Código Penal, denominado “Dos crimes de corrupção privada”, e cria tipos específicos para a corrupção ativa e passiva nesse âmbito.
De acordo com o texto, incorre em corrupção passiva o administrador privado que solicitar ou receber vantagem indevida, para si ou para outrem, a fim de realizar ou deixar de realizar ato ou negócio jurídico, ou ainda para favorecer ou desfavorecer determinada contratação. Na forma ativa, comete crime aquele que oferece ou promete a vantagem indevida para influenciar o administrador privado. Em ambos os casos, a pena prevista é de detenção de um a quatro anos e multa.
O projeto ainda define de maneira expressa quem é considerado “administrador privado”: qualquer pessoa que exerça função de direção, gerência, presidência, vice-presidência, controle, participação societária ou qualquer outra função que implique poder de decisão sobre atos ou negócios jurídicos.
De forma inovadora, a lei também equipara a administrador aquele que, de fato, exerça tais funções, mesmo que não esteja formalmente registrado em contrato social ou outro documento. Essa amplitude é relevante, pois evita a burla por meio da atribuição informal de poderes a terceiros.
Outro diferencial do PL 576/2023 em relação aos anteriores (PL 1469/2023 e PL 4436/2020) é a previsão de causas de aumento de pena. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido em entidades especialmente sensíveis, como associações sem fins lucrativos ligadas à educação e assistência social, fundações, organizações sociais e religiosas, sindicatos, sociedades anônimas abertas, empresas em recuperação ou falência e, ainda, pessoas jurídicas que mantenham contratos com o Poder Público, ainda que o ato ilícito não interfira diretamente na execução contratual.
Além disso, a pena aumenta em dois terços se do ato resultar dano ambiental, hipótese em que se prevê, inclusive, a responsabilização penal da pessoa jurídica. Trata-se de inovação significativa, que amplia o alcance do projeto para além da proteção da livre concorrência, alcançando também bens jurídicos de caráter difuso e coletivo.
A exposição de motivos reforça que a corrupção não se limita ao setor público e que grande parte dos casos de corrupção estatal envolve, direta ou indiretamente, agentes privados. Por isso, argumenta-se que não é razoável que a corrupção praticada exclusivamente entre particulares permaneça fora da esfera penal. Ao destacar as situações de maior impacto social, o projeto sinaliza uma preocupação em calibrar a repressão penal de acordo com a gravidade e o alcance da conduta.
Entre os aspectos positivos, sobressai a sofisticação técnica do projeto. Diferente das propostas anteriores, que se limitam a reproduzir a lógica da corrupção pública, o PL 576/2023 avança ao definir de forma clara quem pode ser sujeito ativo e ao prever hipóteses de agravamento que levam em conta o contexto em que a infração ocorre. Essa preocupação em modular a pena segundo a gravidade demonstra maior maturidade legislativa.
O projeto também abre caminho para responsabilizar pessoas jurídicas em situações de corrupção privada que resultem em dano ambiental, o que aproxima a proposta de tendências internacionais que associam corrupção à tutela de bens jurídicos de natureza coletiva.
Por outro lado, algumas críticas podem ser levantadas. A pena-base de um a quatro anos de detenção pode ser vista como branda diante da gravidade de certas condutas, sobretudo aquelas de grande impacto econômico ou social.
Além disso, embora avance na definição dos sujeitos e nas causas de aumento, o projeto não dialoga de forma direta com a implementação de programas de compliance, que hoje representam o principal instrumento de prevenção à corrupção dentro das empresas. Faltou, portanto, prever mecanismos de atenuação de responsabilidade ou incentivos a quem adote práticas robustas de integridade, como ocorre no UK Bribery Act.
Em síntese, o PL 576/2023 se apresenta como a proposta mais consistente e sofisticada entre as que buscam tipificar a corrupção privada no Brasil. Ele reconhece as especificidades do setor privado, estabelece distinções conforme a gravidade das condutas e amplia a proteção para além da concorrência, alcançando também interesses coletivos.
Ainda assim, para ser efetivo, deveria incorporar um diálogo mais explícito com a realidade do compliance empresarial, sob pena de manter o enfoque exclusivamente repressivo e perder a oportunidade de fomentar a autorregulação e a prevenção.
8. Conclusão
A análise da corrupção privada no Brasil não pode ser reduzida a uma perspectiva meramente normativa. O fenômeno está intrinsecamente ligado ao chamado “jeitinho brasileiro”, expressão que sintetiza a disposição social em contornar regras formais por meio de relações pessoais, favores e vantagens informais.
Embora frequentemente romantizado como “criatividade”, esse traço cultural naturaliza pequenas corrupções, inclusive no setor privado, desde “pagamentos de facilitação” até comissões disfarçadas em contratos.
Essa normalização fragiliza tanto a percepção social da gravidade do ilícito quanto a eficácia das normas jurídicas, pois cria um hiato entre a lei e a prática cotidiana.
Em contextos empresariais, o suborno ou favorecimento ilícito muitas vezes é interpretado não como crime, mas como “estratégia de negócio”. Isso se agrava quando tais práticas são associadas a um sinal de poder de barganha ou status, perpetuando a ideia de que “quem pode mais” tem legitimidade para obter vantagens à margem da legalidade.
Esse fenômeno revela uma dimensão simbólica da corrupção privada: além do ganho econômico imediato, ela funciona como mecanismo de reprodução de desigualdades e concentração de poder no mercado. A criminalização da corrupção privada só terá eficácia se acompanhada de um processo de mudança cultural.
Para tanto, são essenciais: educação ética desde a formação escolar e universitária, enfatizando integridade como valor coletivo; treinamento corporativo contínuo, desmistificando o “jeitinho” e mostrando que a corrupção privada gera custos elevados para a sociedade (inflação de preços, perda de competitividade, barreiras à inovação); pressão de investidores e consumidores por práticas empresariais éticas, reforçando o papel da ESG governance e incentivos estatais positivos (por exemplo, benefícios em licitações e crédito público para empresas com programas robustos de integridade).
A análise dos projetos de lei (PL 1469/23, PL 4436/20 e PL 576/23) revelou avanços importantes, sobretudo no último, que introduz agravantes e mecanismos de leniência. Ainda assim, persistem desafios quanto à clareza do bem jurídico e à proporcionalidade das penas.
A experiência estrangeira ensina que a repressão deve ser combinada com compliance robusto e mudança cultural. O Brasil precisa caminhar para um modelo integrado, em que a tipificação penal abranja condutas graves e economicamente relevantes, a responsabilização corporativa seja vinculada à existência (ou ausência) de programas efetivos de integridade e a ética empresarial e a cultura de integridade sejam reforçadas por políticas educacionais, incentivos econômicos e pressão social.
Em síntese, o país deve superar a histórica tolerância ao “jeitinho” e consolidar uma ordem econômica baseada em transparência, lealdade e concorrência justa. A criminalização da corrupção privada, longe de ser um excesso, é parte do processo de amadurecimento democrático e econômico do Brasil.
Referências
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