Responsabilidade médica à francesa

27/08/2025 às 12:29

Resumo:


  • A responsabilidade civil médica surge quando há quebra da relação médico-paciente, sendo decorrente de erros profissionais que causem dano ao paciente.

  • A responsabilidade dos médicos é subjetiva e baseada na teoria da culpa, exigindo a comprovação de conduta culposa (negligência, imprudência ou imperícia) ou dolosa para reparação de danos.

  • A normatização da Teoria da Perda da Chance visa modernizar a legislação, permitindo a responsabilização dos profissionais da saúde por retirar a chance de obter benefícios ou evitar danos, mantendo, no entanto, a responsabilidade subjetiva dos médicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A relação médico-paciente é pauta na relação de confiança: é dever do médico exercer a profissão com zelo e diligência, respeitando a ética profissional, o sigilo médico e o bem-estar do paciente, sendo direito do paciente um atendimento ético, humanizado e de qualidade e com acesso a informações.

Rompida essa relação, a responsabilidade civil médica exsurge.

A responsabilidade civil dos médicos decorre do erro profissional, ou seja, da falha de conduta (comissiva ou omissiva – dolosa ou culposa) que cause ao paciente um dano ou prejuízo, devendo existir um liame (vínculo) entre o procedimento e a lesão.

Com efeito, a responsabilidade dos profissionais médicos – assim como outros catedráticos liberais – restará configurada se existentes os seguintes requisitos: conduta (comissiva ou omissiva) voluntária (dolosa) ou involuntária (culposa), o dano (prejuízo) e o nexo de causalidade (liame) entre a conduta e o prejuízo experimentado pelo agente, consoante regra plasmada no artigo 186 da Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil):

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Importe frisar que a responsabilidade do médico, assim como a de outros profissionais liberais, é subjetiva – fundada na teoria da culpa -, ou seja, para fins de reparação dos danos eventualmente causados aos pacientes a conduta do profissional deve ser culposa (praticada com negligência, imprudência ou imperícia) ou dolosa.

A conduta dolosa é inerente a profissão do médico, sendo apta a ensejar a responsabilização sempre que o profissional praticar conscientemente seus atos e riscos (teoria da vontade), ter consciência que sua conduta foi mal executada (teoria da representação) e for sua conduta caracterizada pela previsão do resultado (teoria do consentimento).

O dolo viabiliza a responsabilização e o dever de reparação de danos do médico.

A conduta culposa, apta a ensejar a responsabilidade e o dever indenizatório do médico, é aquela que causar danos ao paciente em razão de negligência (falta de cuidado e atenção no atendimento médico), de imprudência (ação precipitada e sem a devida cautela) e de imperícia (falta de conhecimento técnico ou habilidade para realizar o procedimento).

A responsabilidade médica, reafirme-se, é culposa, fundada na teoria da culpa.

Em confirmação a afirmativa acima, além das disposições civilistas (art. 186, CC), a Lei Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) expressa que a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais – onde se insere a categoria dos médicos - será apurada mediante a verificação de culpa:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

(...)

§4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. (...). (Omissões nossas).

Não diferentemente da Lei Consumerista, a Resolução CFM n. 2.217 de 27 de setembro de 2018 (Código de Ética Médica) define que a responsabilidade do médica restará configurada sempre que o profissional causar dano ao paciente, por conduta (comissiva ou omissiva) culpável:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

Ainda que a sistemática jurídica brasileira seja clara quanto à responsabilidade civil subjetiva dos médicos – e de outros profissionais liberais -, atualmente, encontra-se em discussão no Congresso Nacional o Projeto de lei n. 4 de 2025

O Projeto de lei n. 4 de 2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), tem por finalidade atualizar e modernizar as disposições da Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e, dentre as inovações trazidas, encontra-se a previsão da responsabilização civil dos profissionais da saúde (médicos) com fundamento na Teoria da Perda da Chance.

Difundida na República Francesa, a perde d’une chance, em linhas gerais, consiste na responsabilização quando alguém, mediante uma conduta ilícita (comissiva ou omissa – dolosa ou culposa), retira de outrem a chance de obter um benefício ou oportunidade de se evitar um dano.

A Teoria da Perda da Chance é acolhida pela jurisprudência pátria:

CONDUTA MÉDICA – COMPROMETIMENTO DA POSSIBILIDADE DE CURA – APLICAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. (...). 3. Á luz da teoria da perda de uma chance, o liame causal a ser demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final. Precedente. 4. No erro médico, o nexo causal que autoriza a responsabilidade pela aplicação da teoria da perda de uma chance decorre da relação entre a conduta do médico, omissiva ou comissiva, e o comprometimento real da possibilidade de um diagnóstico e tratamento da patologia do paciente. Precedentes do STJ. (...). (STJ. AgInt no Resp. 1.923.907/PR, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023). (Omissões nossas).

DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. (...) 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. (STJ - Resp.: 1254141 PR 2011/0078939-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 04/12/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/02/13 RDDP vol. 122 p. 161 RSTJ vol. 229 p. 320). (Omissões nossas).

Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/376862/teoria-da-perda-de-uma-chance

ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO – IMPOSSIBILIDADE DE VIDA EXTRAUTERINA – PERDA DA CHANCE DE NOVA GRAVIDEZ. (...). II. Comprovado que o feto era portador de má formação congênita incompatível com a vida extrauterina e que a gestante, com mais de 40 anos de idade e anteriormente submetida a miectomia, sofria o risco de rotura uterina e perda da chance de uma nova gravidez com o prosseguimento da gestação, a negativa de cobertura do procedimento cirúrgico de antecipação terapêutica do parto é abusiva. III. Embora evidentes a angústia e a frustração sofridas ante a negativa de cobertura pela seguradora, a compensação moral deve ser arbitrada com razoabilidade e proporcionalidade. (...). (TJDF. Acórdão 1299681, 07039685620188070014, Relator: JOSÉ DIVINO, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 4/11/2020, publicado no DJE: 27/11/2020). (Omissões nossas).

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Ainda que amplamente acolhida pelos tribunais brasileiros, a normatização da Teoria da Perda da Chance, assim como previstas no Projeto de lei n. 4 de 2025, tem por finalidade resguardar a possibilidade de reparar um dano a uma pessoa por fato externo à sua vontade.

A normatização da teoria, contudo, não elidirá a responsabilidade subjetiva dos médicos.

Para a responsabilização civil médica é indispensável que os danos eventualmente causados aos pacientes seja proveniente de uma conduta profissional culposa (praticada com negligência, imprudência ou imperícia), devendo existir entre esses elementos (conduta e resultado) um nexo de causalidade.

Não basta que o médico tenha praticado uma conduta ilícita e que o paciente tenha sofrido um dano ou perdido uma chance. É necessário, ainda que o relativizando-o, que exista um nexo (liame) entre a conduta ilícita e o prejuízo ou a perda de uma chance.

Inconcebível a responsabilização do médico sem causalidade entre a conduta e o dano.

Farto o entendimento jurisprudencial neste sentido:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO PROFISSIONAL LIBERAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA CULPA. SÚMULA 7/STJ. NÃO PROVIMENTO. 1. A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais é subjetiva, exigindo-se a comprovação de culpa para a sua responsabilização, nos termos do art. 14, § 4º, do CDC. 2. A inversão do ônus da prova, em casos de erro médico, não desobriga a parte autora de demonstrar a verossimilhança das alegações, bem como a ocorrência do dano e o nexo de causalidade. Precedentes. 3. A revisão das conclusões estaduais acerca da existência ou não de erro médico e da culpa do profissional implicaria necessariamente o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7 do STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ - AgInt no AREsp 1642137/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 01/03/2021).

AGRAVO INTERNO NA APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. ERRO MÉDICO. Responsabilidade civil objetiva. Artigo 14, §1º, do Código de Defesa do Consumidor. Desnecessidade da comprovação de culpa. Nexo de causalidade entre o fato e o dano demonstrados pela prova técnica. Omissão da equipe médica na condução do tratamento do demandante. Falha no fornecimento dos serviços. Recurso desprovido. Conclusões: Por unanimidade, negou-se provimento ao recurso, nos termos do voto do Des. Relator. (TJ-RJ, APELAÇÃO 0054859-85.2019.8.19.0004, Relator(a): DES. CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS, Publicado em: 09/05/2024).

TRATAMENTO ESTÉTICO – OBRIGAÇÃO DE RESULTADO – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO MÉDICO. 1. Os procedimentos cirúrgicos estéticos são obrigação de resultado, pois neles o médico assume o compromisso do efeito embelezador prometido. No entanto, a responsabilidade é subjetiva, cabendo a comprovação da existência do erro médico, a fim de que seja possível a responsabilização dos médicos, pelo ato cirúrgico. (TJDF. Acórdão 1230778, 00332191020158070001, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 19/2/2020, publicado no DJE: 17/3/2020).

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. Erro médico. Cirurgia plástica estética. Obrigação de resultado. Nexo causal entre a cirurgia e a deformidade apresentada pela paciente. Prova produzida nos autos comprova de forma suficiente o resultado insatisfatório, a despeito da conclusão do laudo pericial pelo emprego da boa técnica. Obrigação de resultado que não torna a responsabilidade objetiva, mas inverte o ônus da prova, cabendo ao médico justificar as razões de eventual insucesso da intervenção. Réu que não se desincumbiu do ônus de demonstrar a razão do resultado parcialmente insatisfatório da cirurgia. Dever de indenizar a paciente. Inequívoca existência de danos morais. Circunstâncias do caso concreto recomendam que a indenização seja fixada no montante de R$ 10.000,00, que cumprem a função ressarcitória e preventiva. Danos estéticos igualmente verificados, a serem ressarcidos na quantia de R$5.000,00. Danos materiais, que não podem abranger a totalidade dos valores pagos pela paciente, uma vez que o resultado foi parcialmente alcançado. Ação parcialmente procedente. Recurso provido em parte. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO - TJ/SP, 2020).

Ainda que normatizada a teoria da perda da chance, a responsabilidade médica será sempre subjetiva, devendo ser demonstrado o liame (nexo de causalidade) entre o erro médico e o dano ou perda de uma chance para fins de responsabilização do profissional por seus atos.

Extirpando qualquer dúvida sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal (STF), interpretando a regra do §6º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, fixou tese de repercussão geral – Tema n. 940 – no sentido de que a ação por danos deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado que presta serviços público, sendo o agente público parte ilegítima para a ação, embora possua a Administração Pública direito de regresso contra o agente público em caso de dolo ou culpa:

STF. Tema 940. A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Em conclusão, ainda que a normatização da Teoria da Perda da Chance no ordenamento jurídico brasileiro seja salutar para resguardar a possibilidade de reparar um dano a uma pessoa por fato externo à sua vontade, imperioso que se mantenha consagrada a responsabilidade subjetiva dos médicos, devendo subsistir a necessidade de demonstração do nexo de causalidade (liame) entre o erro médico e o dano ou perda de uma chance para o paciente para fins de responsabilização do profissional por seus atos.

Sobre o autor
Francisco Valadares Neto

Graduado Bacharel em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Ji-Paraná (ILES/ULBRA). Concluiu, em 2004, pós-graduação em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco (FACIP), obtendo o título de Pós-Graduado em Direito Constitucional. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, na cidade de Buenos Aires – Argentina (2016). Atualmente, além das atividades de advogado, exerce o cargo de Procurador Jurídico do Município de Brasiléia – Estado do Acre.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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