André Jales Falcão Silva1
Resumo
O presente artigo investiga os limites jurídicos aplicáveis aos processos de recrutamento e seleção, com especial atenção à utilização de testes de personalidade no contexto organizacional. O estudo busca compreender de que maneira instrumentos como o DISC e o Eneagrama, amplamente difundidos em ambientes corporativos, podem contribuir para a identificação de perfis comportamentais e, ao mesmo tempo, gerar riscos de práticas discriminatórias ou de violação à dignidade da pessoa humana. A escolha de aprofundar a análise nesses dois métodos decorre de sua crescente utilização por empresas brasileiras e estrangeiras: o DISC, por ser uma ferramenta estruturada e de aplicação recorrente na área de recursos humanos; e o Eneagrama, por oferecer uma abordagem mais subjetiva e reflexiva sobre padrões emocionais e cognitivos. Ao privilegiar o estudo comparativo dessas metodologias, busca-se evidenciar tanto seus potenciais benefícios para a gestão de pessoas, como a redução da rotatividade e o incremento da assertividade nos processos seletivos, quanto seus limites éticos e jurídicos, especialmente quando aplicados de forma eliminatória e sem fundamentação científica robusta. Assim, o artigo pretende demonstrar que o uso dessas práticas deve estar subordinado à legislação trabalhista e constitucional, de modo a garantir a igualdade de oportunidades e a inclusão no acesso ao emprego.
Palavras-chave: Recrutamento e seleção. Direitos fundamentais. Testes de personalidade. DISC. Eneagrama.
Sumário: Resumo, 1. Introdução, 2. O Recrutamento e Seleção como Espaço de Poder, 3. Uso cotidiano de testes de personalidade em seleção: fundamentos do DISC e do Eneagrama; 3.1 DISC: arquitetura, métricas e usos organizacionais; 3.2 Eneagrama: nove padrões e integração cognição-emoção-ação; 3.3 Convergências práticas entre os métodos, 4. O Conflito entre Eficácia Organizacional e Direitos Fundamentais, 5. O Direito do Trabalho e a Aplicação de Testes de Personalidade no Recrutamento e Seleção, Considerações Finais, Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O acesso ao trabalho é um dos pilares centrais da cidadania e da inclusão social. Na sociedade contemporânea, o emprego não se restringe à dimensão econômica, mas constitui-se em condição essencial para o exercício de outros direitos fundamentais, como saúde, educação, previdência e dignidade. Nesse sentido, a forma como se estruturam os processos de recrutamento e seleção ganha relevância jurídica e social, pois é justamente nesse momento que se definem quais indivíduos terão acesso às oportunidades oferecidas pelo mercado.
O setor de Recursos Humanos, responsável por tais práticas, assume posição estratégica dentro das organizações, atuando como verdadeiro filtro de inclusão ou exclusão. Embora se apresente como espaço técnico e neutro, o RH revela-se também como locus de exercício de poder, o que implica reconhecer que seus métodos e ferramentas não são isentos de valores, ideologias e riscos de arbitrariedade. Fröhlich (2019) adverte que, em muitos casos, o processo seletivo é revestido de aparência científica, mas pode funcionar como instrumento de discriminação velada, sobretudo contra grupos socialmente vulneráveis.
Paralelamente, a literatura em Administração destaca a importância da seleção para a eficiência organizacional. Chiavenato (2010) conceitua o processo seletivo como um filtro destinado a identificar o candidato mais adequado à vaga, de acordo com competências técnicas e comportamentais. Tal perspectiva, embora legítima do ponto de vista empresarial, demanda compatibilização com os limites constitucionais e legais impostos pelo Direito do Trabalho, de modo a evitar que a busca pela eficiência se converta em práticas de exclusão.
É nesse contexto que se insere o uso de testes de personalidade, cada vez mais recorrentes nas etapas de seleção de candidatos. Entre eles, destacam-se o DISC e o Eneagrama, metodologias que vêm sendo empregadas por organizações de diferentes portes. O DISC, baseado na análise de quatro dimensões comportamentais — dominância, influência, estabilidade e conformidade — apresenta-se como ferramenta padronizada e frequentemente utilizada em ambientes corporativos para mapear tendências de comportamento. O Eneagrama, por sua vez, fundamenta-se na identificação de nove tipos de personalidade, articulando dimensões emocionais, cognitivas e instintivas. Damião (2004) descreve-o como método capaz de avaliar competências e atitudes, ao mesmo tempo em que favorece o autoconhecimento.
A escolha por analisar em profundidade esses dois métodos deve-se ao fato de que eles representam perspectivas complementares sobre a avaliação de candidatos: enquanto o DISC é frequentemente utilizado como instrumento objetivo e operacional, o Eneagrama se destaca por sua abordagem subjetiva, voltada à compreensão mais ampla da personalidade. Essa dualidade permite problematizar tanto os benefícios potenciais dessas práticas — como a redução da rotatividade e a adequação entre perfil e função — quanto os riscos jurídicos e éticos decorrentes de sua aplicação como critério eliminatório.
Dessa forma, este artigo propõe-se a investigar os limites legais do recrutamento e seleção no Brasil, discutindo de que maneira o uso de testes comportamentais pode ser compatibilizado com os princípios constitucionais de igualdade, não discriminação e dignidade da pessoa humana. Pretende-se, com isso, oferecer uma leitura crítica que articule Direito, Administração e Psicologia, apontando caminhos para a construção de processos seletivos mais democráticos, transparentes e inclusivos.
2. O Recrutamento e Seleção como Espaço de Poder
O processo de recrutamento e seleção não se restringe a uma simples etapa administrativa dentro das organizações; trata-se de um verdadeiro campo de exercício de poder. De acordo com Fröhlich (2019), o setor de Recursos Humanos deve ser entendido como espaço de decisão estratégica, em que o poder pode assumir duas formas distintas: o exercício legítimo, orientado por critérios racionais e justificados, ou o exercício autárquico, marcado por arbitrariedades e exclusões. O autor observa que, “embora se apresente como técnica neutra e científica, a seleção de candidatos pode servir como mecanismo de discriminação” (FRÖHLICH, 2019, p. 11).
Essa percepção é confirmada pelos estudos clássicos em Administração. Chiavenato (2010) conceitua o recrutamento como um conjunto de políticas e ações destinadas a atrair talentos para a organização, ressaltando que a seleção funciona como um filtro que identifica os indivíduos mais adequados às exigências do cargo (apud MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 87). Contudo, ao invés de um filtro neutro, o processo seletivo pode funcionar como barreira de acesso ao mercado de trabalho, especialmente quando fundamentado em critérios subjetivos e de difícil mensuração.
É importante destacar que tais práticas impactam diretamente direitos fundamentais. O trabalho é elemento central na vida do indivíduo, pois garante acesso a bens e direitos básicos, como educação, saúde e previdência (FRÖHLICH, 2019, p. 9). Nesse sentido, a exclusão arbitrária em processos seletivos não representa apenas uma decisão empresarial, mas um mecanismo que pode perpetuar desigualdades sociais e restringir a cidadania.
Portanto, o recrutamento e a seleção não podem ser analisados apenas como instrumentos de gestão, mas como práticas sociais dotadas de carga política e jurídica. É nesse ponto que se torna essencial delimitar os limites legais e éticos, evitando que o poder privado das empresas se converta em dominação ilegítima.
3. Uso cotidiano de testes de personalidade em seleção: fundamentos do DISC e do Eneagrama
A utilização de instrumentos de perfil comportamental em processos de recrutamento e seleção tornou-se prática corriqueira no mercado brasileiro, sobretudo quando se trata de posições de coordenação e liderança, nas quais se busca reduzir a assimetria de informações sobre “características de personalidade e comportamento” relevantes ao desempenho (MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 84-90). Estudos de revisão em gestão de pessoas também mostram que a seleção por competências e perfis comportamentais é hoje um vetor rotineiro de diferenciação competitiva, articulando aderência ao cargo e à cultura organizacional (FELIX, 2023, p. 6-8). Ao mesmo tempo, a literatura jurídica alerta que a seleção é um espaço de poder com potencial de produzir exclusões quando critérios subjetivos deixam de se conectar às exigências reais do trabalho (FRÖHLICH, 2019, p. 8-13)— o que reforça a necessidade de compreender tecnicamente os métodos mais difundidos antes de empregá-los como filtros.
3.1 DISC: arquitetura, métricas e usos organizacionais
O DISC é uma família de instrumentos psicométricos de mapeamento comportamental que organiza preferências de atuação em quatro grandes fatores: Dominância (D), Influência (I), Estabilidade (S) e Conformidade (C). Em ambiente corporativo, aplica-se por meio de questionários de autorrelato com itens de escolha forçada (força relativa entre adjetivos ou afirmações), a partir dos quais se constroem escores e perfis gráficos que indicam tendências: orientação a resultados e tomada de risco (D), sociabilidade e persuasão (I), ritmo e cooperação (S) e atenção a regras, precisão e qualidade (C). O resultado não pretende “rotular” o indivíduo, mas descrever padrões preferenciais de resposta sob pressão e em condições típicas de trabalho (MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 86-90).
Aplicações usuais. Nas empresas brasileiras, o DISC aparece de forma rotineira em: (i) triagem comportamental inicial para reduzir o funil seletivo; (ii) entrevistas por competências, servindo de roteiro para explorar evidências (ex.: como um alto “C” garante conformidade regulatória); (iii) composição de times (complementaridade de perfis) e onboarding; e (iv) planos de desenvolvimento (feedback estruturado, coaching), principalmente em cargos de liderança — caso em que RHs relatam ganhos de assertividade e redução de rotatividade ao “alinhar personalidade e comportamento do futuro líder no início do processo” (MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 84-89).
Resultados esperados. O método é valorizado por fornecer uma linguagem comum sobre comportamentos observáveis (como lida com conflito, ritmo, regras, influência), facilitando decisões de alocação e desenvolvimento. Em ecossistemas de alta conformidade (finanças, saúde, utilidades), perfis com maior “C” e “S” costumam ser preferidos para funções de controle e atendimento; já contextos comerciais valorizam combinações “D/I” para negociação e influência — hipóteses que devem ser testadas na entrevista comportamental e em evidências objetivas do histórico do candidato (MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 87-90).
3.2 Eneagrama: nove padrões e integração cognição-emoção-ação
O Eneagrama descreve nove estilos de personalidade — organizados por combinações dos centros cognitivo (pensar), emocional (sentir) e instintivo (agir) — e busca mapear padrões de motivação e estratégias de enfrentamento que se expressam em contextos de trabalho. Como sintetiza Damião (2004), trata-se de “método para avaliar atributos pessoais: competências, habilidades e atitudes” e de “agregar valor à organização” ao conhecer as “características de nove estilos de comportamento ou modelos mentais” (DAMIÃO, 2004, p. 1-2). A autora ancora a leitura na formação integral (conhecer, fazer, conviver, ser) e mostra a interdependência entre emoção e razão na tomada de decisão, apontando a utilidade do Eneagrama para autoconhecimento e para diagnósticos organizacionais (DAMIÃO, 2004, p. 3-6).
Arquitetura conceitual. Cada tipo articula um foco atencional (o que a pessoa percebe e prioriza), crenças-núcleo (suposições sobre si/outros/mundo) e padrões de ação recorrentes sob estresse e segurança. Ao explicitar forças (competências presentes) e riscos (tendências reativas), o modelo cria uma gramática prática para: (i) entrevistas por competências (ex.: quando o padrão “perfeccionista” agrega qualidade e quando se torna rigidez); (ii) mediação de conflitos (entender disparadores emocionais de perfis distintos); e (iii) desenvolvimento (planos que buscam equilíbrio entre pensar-sentir-agir) (DAMIÃO, 2004, p. 3-6).
Usos organizacionais corriqueiros. Em empresas brasileiras, o Eneagrama aparece com frequência em workshops de cultura e programas de liderança, além de apoiar seleção quando se busca fit comportamental com times e contextos. A ênfase recai menos em “aprovar/eliminar” e mais em explorar aderências e pontos de desenvolvimento (DAMIÃO, 2004, p. 1-6). Quando devidamente instrumentalizado, o método ajuda a identificar viéses positivos e cegueiras de cada padrão (por exemplo, tipos orientados a pessoas que evitam conflito versus tipos orientados a tarefa que priorizam meta e prazo), informando decisões de alocação, mentoria e composição de equipes.
3.3 Convergências práticas entre os métodos
Embora partam de lógicas diferentes, DISC e Eneagrama compartilham três entregáveis valorizados no cotidiano de RH no Brasil: (a) oferecem linguagens estruturadas para conversar sobre comportamentos relevantes ao trabalho; (b) iluminam hipóteses para entrevistas por competências e checagens de referência; e (c) viabilizam planos de desenvolvimento e onboarding mais finos, reduzindo atritos de adaptação e turnover, sobretudo em funções com clara exigência comportamental (MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 84-90; DAMIÃO, 2004, p. 1-6). A literatura crítica do Direito do Trabalho lembra, por sua vez, que a corriqueira adoção desses instrumentos deve permanecer conectada ao conteúdo real do cargo e vigilante a critérios objetivos e pertinentes (FRÖHLICH, 2019, p. 9-13)— premissa que, sem adentrar aqui no debate jurídico, também é metodologicamente saudável para evitar usos reducionistas de qualquer ferramenta.
4. O Conflito entre Eficácia Organizacional e Direitos Fundamentais
A busca pela eficácia organizacional tornou-se um dos principais objetivos das empresas modernas, especialmente em um mercado caracterizado pela competitividade acirrada, pela alta rotatividade e pela necessidade constante de adaptação a mudanças tecnológicas e sociais. Nesse cenário, o processo de recrutamento e seleção passa a ser compreendido não apenas como um procedimento de admissão de mão de obra, mas como um instrumento estratégico para a sustentabilidade do negócio. Conforme salientam Messano, Oliveira e Rocha (2020, p. 84), identificar corretamente o perfil comportamental e de personalidade do futuro colaborador pode aumentar as chances de sucesso da contratação, reduzir custos com treinamento e diminuir falhas relacionadas à incompatibilidade entre indivíduo e cargo.
Entretanto, quando se analisa a questão sob a ótica do Direito do Trabalho e dos direitos fundamentais, percebe-se que essa busca por eficiência encontra limites importantes. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, inciso III, estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, e, em seu art. 7º, inciso XXX, proíbe critérios de admissão discriminatórios. Isso significa que, ainda que seja legítimo que empresas busquem maximizar sua produtividade, tal objetivo não pode se concretizar por meio de práticas que violem direitos básicos ou que instituam barreiras indiretas de acesso ao emprego.
É nesse ponto que emerge o conflito estrutural: de um lado, a necessidade empresarial de selecionar indivíduos com maior potencial de desempenho; de outro, a obrigação constitucional e legal de assegurar igualdade de oportunidades e não discriminação. Como destaca Fröhlich (2019, p. 10), muitas vezes o setor de Recursos Humanos cria uma “zona de autarquia” em que justificativas subjetivas e pretensamente técnicas são utilizadas para sustentar exclusões arbitrárias, sob o manto da eficiência. Esse fenômeno se intensifica quando ferramentas como DISC e Eneagrama são aplicadas de forma eliminatória, funcionando como barreiras indiretas que podem excluir candidatos competentes em razão de estilos de comportamento que não se encaixam em padrões preestabelecidos.
O conflito se torna ainda mais evidente quando se considera a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018). Os resultados obtidos em testes de personalidade configuram dados pessoais sensíveis e, portanto, só podem ser coletados e tratados com base nos princípios da transparência, da finalidade e do consentimento expresso do candidato. O uso indiscriminado dessas informações para eliminar pessoas em etapas iniciais do processo seletivo, sem justificativa objetiva, viola não apenas a LGPD, mas também os princípios da boa-fé contratual e da proteção à intimidade, assegurados pelo ordenamento jurídico.
Por outro lado, não se pode ignorar que as ferramentas de avaliação comportamental possuem benefícios reais quando aplicadas de forma adequada. O Eneagrama, por exemplo, pode auxiliar no autoconhecimento e no desenvolvimento pessoal, favorecendo a integração de equipes e a diminuição de conflitos internos (DAMIÃO, 2004, p. 3-6). Já o DISC tem sido valorizado pela sua capacidade de fornecer uma linguagem clara sobre comportamentos observáveis, facilitando entrevistas por competências e decisões de alocação (MESSANO; OLIVEIRA; ROCHA, 2020, p. 87-89). Esses aspectos revelam que a tensão entre eficácia e direitos fundamentais não é necessariamente irreconciliável, mas exige uma aplicação criteriosa e proporcional das ferramentas, de modo que funcionem como instrumentos auxiliares e não como filtros determinantes.
Portanto, a compatibilização entre eficiência organizacional e respeito aos direitos fundamentais depende de três eixos centrais: primeiro, da utilização de testes de personalidade apenas como suporte diagnóstico e nunca como critério eliminatório absoluto; segundo, da necessidade de que tais práticas estejam em consonância com os princípios constitucionais da igualdade, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana; e terceiro, da exigência de que empresas assegurem transparência e proporcionalidade em seus métodos, garantindo que candidatos compreendam os objetivos da avaliação e consintam com o uso de seus dados.
Assim, reconhece-se que a eficácia empresarial e os direitos fundamentais não se encontram em polos opostos, mas devem em teoria ser pensados em equilíbrio dinâmico. Empresas que conciliam a busca por resultados com o respeito às garantias jurídicas não apenas evitam litígios e passivos trabalhistas, como também fortalecem sua imagem institucional e constroem ambientes organizacionais mais inclusivos, diversos e socialmente responsáveis.
5. O Direito do Trabalho e a Aplicação de Testes de Personalidade no Recrutamento e Seleção
A adoção de testes psicológicos em processos de recrutamento e seleção insere-se num ambiente regulatório complexo, que envolve desde normas do Direito do Trabalho até regulamentações do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Embora o uso de instrumentos como DISC e Eneagrama não seja diretamente tratado em normas trabalhistas, sua aplicação se aproxima do campo dos “testes psicológicos”, cuja utilização está restrita e orientada por regras éticas e legais.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) afirma que os testes psicológicos são métodos de avaliação de características psicológicas que possuem uso privativo do psicólogo, conforme o art. 13, § 1º, da Lei nº 4.119/1962. A Resolução CFP nº 002/2003 regulamenta que tais instrumentos só podem ser aplicados, interpretados e disponibilizados por psicólogos habilitados e inscritos no sistema SATEPSI (Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos). Isso significa que o uso de instrumentos de avaliação da personalidade, como DISC e Eneagrama, em contextos seletivos deve obedecer a esse critério — independentemente de sua suposta natureza “organizacional”, caso sejam considerados instrumentos de mensuração psicológica.
No âmbito do Direito do Trabalho, não há previsão expressa sobre esses métodos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas há princípios constitucionais e legais que limitam sua aplicação quando geradores de restrição de acesso ao trabalho. Por exemplo, testes psicológicos não podem configurar critério eliminatório sem relação objetiva com as atribuições da função. Isso segue o entendimento de que avaliações invasivas ou sem pertinência podem configurar discriminação velada (CF), contrariando a dignidade e igualdade do candidato.
Em concursos públicos, a jurisprudência e doutrina indicam que testes psicológicos só poderiam ser exigidos em exames admissionais, para aferição da higidez mental do candidato, e não como instrumento de eliminação no processo seletivo inicial. Essa distinção reforça a necessidade de separar avaliação clínica ou de aptidão, própria do contexto contratual, de critérios de seleção — ainda mais quando se trata de métodos subjetivos ou sem validação empírica sólida.
Além disso, há a dimensão da LGPD, que impõe restrições ao tratamento de dados pessoais sensíveis, como aqueles provenientes de testes de personalidade, mesmo antes da contratação (fase pré-contratual). A coleta deve seguir os princípios de finalidade, adequação, transparência e consentimento explícito. Ou seja, a aplicação desses testes precisa ser acompanhada de informação clara ao candidato, consentimento informado e garantia de proteção dos dados.
Por fim, autores do campo da psicologia organizacional e jurídica alertam que, na ausência de legislação específica, essas avaliações devem ser harmonizadas à ordem constitucional, não podendo sobrepor-se a princípios como igualdade de oportunidades e dignidade da pessoa humana.
Considerações Finais
A análise crítica empreendida neste artigo evidencia que a difusão do DISC e do Eneagrama nos processos de recrutamento e seleção, embora comum no ambiente corporativo brasileiro, não pode ser encarada como prática neutra ou isenta de controvérsias. A aparente objetividade e cientificidade desses instrumentos encobre uma série de problemas jurídicos, metodológicos e éticos que precisam ser discutidos com maior profundidade.
Do ponto de vista científico, questiona-se a validação empírica desses métodos, sobretudo no caso do Eneagrama, cuja aplicação em contextos organizacionais carece de robustez metodológica e de respaldo estatístico confiável. Mesmo o DISC, mais difundido no mundo corporativo, enfrenta críticas quanto à sua utilização para fins classificatórios e eliminatórios, já que descreve tendências de comportamento, mas não necessariamente prediz desempenho no trabalho. A aplicação acrítica de tais instrumentos tende a transformar impressões subjetivas em critérios objetivos de exclusão, sem que haja evidências suficientes para sustentar tais decisões.
Sob a ótica jurídica, a situação é ainda mais delicada. A Constituição Federal e a CLT vedam práticas discriminatórias no acesso ao trabalho, e o uso de testes de personalidade como filtros eliminatórios pode configurar uma forma de discriminação indireta, mascarada sob o discurso da eficiência organizacional. Ademais, a aplicação de métodos que se aproximam de testes psicológicos sem a devida habilitação profissional confronta a Lei nº 4.119/1962 e a Resolução CFP nº 002/2003, que reservam tais práticas ao campo privativo da Psicologia. Soma-se a isso a incidência da LGPD, que impõe restrições severas ao tratamento de dados sensíveis, exigindo transparência, finalidade legítima e consentimento informado. Nesse contexto, muitas práticas de RH tornam-se incompatíveis com a ordem jurídica, ainda que amplamente utilizadas.
Do ponto de vista ético, é necessário refletir sobre o tipo de mercado de trabalho que se pretende construir quando candidatos são descartados com base em traços de personalidade interpretados por instrumentos de validade controversa. Ao naturalizar a ideia de que determinados perfis são mais adequados do que outros, corre-se o risco de reforçar estereótipos, homogeneizar equipes e limitar a diversidade comportamental, que é justamente um dos fatores mais valorizados pela inovação e pela competitividade contemporâneas.
Portanto, longe de serem ferramentas neutras de apoio à gestão de pessoas, DISC e Eneagrama devem ser compreendidos como práticas que carregam implicações jurídicas e sociais relevantes. Sua utilização como critério eliminatório nos processos seletivos revela-se problemática e, em muitos casos, incompatível com os princípios do Direito do Trabalho e com os fundamentos constitucionais da dignidade humana e da igualdade de oportunidades.
Em síntese, a eficácia organizacional não pode ser buscada a qualquer custo, sobretudo quando implica violar direitos fundamentais ou sustentar decisões em instrumentos de validade duvidosa. Cabe às empresas repensar criticamente seus métodos de seleção, privilegiando critérios objetivos, transparentes e juridicamente legítimos. Do contrário, o discurso da eficiência continuará funcionando como manto de legitimidade para práticas excludentes, perpetuando desigualdades e fragilizando a função social do trabalho.
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André Jales Falcão Silva é advogado (OAB: 29.591). Possui Licenciatura em Sociologia pós-graduação em Psicanálise Clínica pela Faculdade Iguaçu (PR). É Professor no Ensino Médio das disciplinas correlatas ao eixo das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. (PR). – http://lattes.cnpq.br/5280365697241990 - [email protected]︎