O Paradigma da Política de Poder: Reflexões à Luz do Realismo Kissingeriano
Resumo
Este artigo examina a permanência do paradigma da política de poder nas relações internacionais contemporâneas, a partir do referencial realista de Henry Kissinger. Analisa-se o declínio relativo da hegemonia norte-americana, a ascensão da China como potência revisionista e o papel da Rússia como ator disruptivo, compondo uma tríade que reconfigura a ordem mundial. Argumenta-se que o direito internacional e o multilateralismo, embora indispensáveis como ideais civilizatórios, mostram-se insuficientes diante da centralidade do poder material. Conclui-se que a estabilidade internacional não decorre de princípios universais, mas do equilíbrio estratégico entre grandes potências, confirmando a atualidade da doutrina realista.
Palavras-chave: Henry Kissinger; Política de Poder; Realismo Político; Relações Internacionais; Ordem Mundial.
Abstract
This article examines the persistence of the power politics paradigm in contemporary international relations, based on Henry Kissinger’s realist framework. It analyzes the relative decline of U.S. hegemony, China’s rise as a revisionist power, and Russia’s role as a disruptive actor, forming a triad that reshapes world order. The argument put forward is that international law and multilateralism, though indispensable as civilizing ideals, prove insufficient in the face of the centrality of material power. The conclusion is that international stability does not derive from universal principles, but from the strategic balance among great powers, confirming the relevance of realist doctrine today.
Keywords: Henry Kissinger; Power Politics; Political Realism; International Relations; World Order.
Sumário: 1. Introdução. 2. O declínio relativo da hegemonia norte-americana. 3. A ascensão chinesa e o revisionismo estratégico. 4. A Rússia como ator disruptivo. 5. A tríade EUA–China–Rússia e a nova configuração do equilíbrio. 6. Direito internacional e a ilusão normativa. 7. O dilema dos Estados não hegemônicos. 8. Conclusão. Referências
1. Introdução
A ordem internacional contemporânea, apesar de toda a retórica em torno da cooperação multilateral e da normatividade jurídica, revela-se em última instância marcada pela prevalência da lógica do poder.
Não se trata de mero resquício da era westfaliana, mas da constatação de que, ainda hoje, a estabilidade e o conflito resultam da capacidade dos Estados de projetar força e de se equilibrarem em um jogo permanente de rivalidades estratégicas.
Henry Kissinger, em obras como Diplomacy e World Order, sempre sustentou que a paz internacional não nasce de princípios abstratos ou de normas jurídicas desprovidas de lastro, mas sim de um cálculo pragmático de poder entre atores capazes de se contrabalançar.
2. O declínio relativo da hegemonia norte-americana
A hegemonia norte-americana, consolidada no pós-Segunda Guerra e reforçada após a Guerra Fria, encontra-se sob questionamento.
Embora os Estados Unidos ainda sejam a potência predominante, dotados de supremacia militar, capacidade tecnológica e rede de alianças globais, sua posição sofre pressões internas e externas.
Polarização política doméstica, fadiga com intervenções militares e perda de dinamismo econômico relativo conferem caráter defensivo à sua estratégia externa.
O fortalecimento da OTAN frente à Rússia e a criação de arranjos como o AUKUS e o Quad no Indo-Pacífico são manifestações desse esforço de contenção.
3. A ascensão chinesa e o revisionismo estratégico
A China configura-se como o maior desafiante sistêmico à ordem liberal ocidental. No plano econômico, sua expansão coloca em xeque a primazia dos Estados Unidos; no tecnológico, busca dominar setores estratégicos como semicondutores e inteligência artificial; no militar, expande presença no Mar do Sul da China e investe em dissuasão nuclear.
Além disso, promove institucionalismo alternativo com a Iniciativa Cinturão e Rota e protagonismo nos BRICS. Do ponto de vista kissingeriano, o crescimento chinês representa o dilema clássico do equilíbrio: a potência emergente que, ao avançar, inevitavelmente pressiona a potência estabelecida.
4. A Rússia como ator disruptivo
Apesar de fragilidades econômicas, a Rússia mantém relevância internacional graças à força militar e ao arsenal nuclear. A guerra na Ucrânia ilustra a capacidade russa de abalar o sistema internacional, desafiando o direito e expondo a impotência de instituições multilaterais. Moscou aposta em instrumentos híbridos — energia, ciberpoder, propaganda — e busca parcerias alternativas, sobretudo com a China.
Na leitura de Kissinger, Estados em declínio econômico mas com poder militar significativo preservam a capacidade de gerar instabilidade, funcionando como elementos desestabilizadores no equilíbrio global.
5. A tríade EUA–China–Rússia e a nova configuração do equilíbrio
O sistema internacional atual pode ser descrito como uma tríade de poder. Os Estados Unidos permanecem o primus inter pares, mas com hegemonia relativa; a China desponta como potência ascendente, articulando poder econômico, militar e institucional; a Rússia, embora limitada, cumpre papel de desestabilização.
Essa configuração tripolar confirma a tese de Kissinger de que a estabilidade não decorre de normas universais, mas de um arranjo precário, sustentado pelo cálculo estratégico entre potências capazes de impor custos mútuos.
6. Direito internacional e a ilusão normativa
A persistência de guerras e violações de soberania expõe os limites do direito internacional diante da política de poder. O Conselho de Segurança, bloqueado pelo veto, simboliza a incapacidade normativa diante de interesses estratégicos. Tratados de desarmamento e acordos climáticos padecem da mesma fragilidade.
Para Kissinger, uma ordem normativa sem base material é ilusória; por outro lado, poder sem diplomacia conduz à instabilidade. A ordem possível é sempre a que resulta da conjugação de dissuasão e negociação.
7. O dilema dos Estados não hegemônicos
Países médios, como o Brasil, enfrentam desafios adicionais nesse contexto. O tradicional apego ao multilateralismo jurídico e ao soft power assegura legitimidade, mas não garante influência estratégica. Sem mínima capacidade de dissuasão militar ou tecnológica, a atuação internacional brasileira tende a ser periférica.
O desafio é articular pragmatismo realista e credibilidade normativa, garantindo autonomia relativa sem ilusões quanto ao peso efetivo do poder material.
8. Conclusão
O paradigma da política de poder permanece como eixo estruturante da ordem mundial. A estabilidade internacional não decorre de consensos universais, mas do equilíbrio estratégico entre hegemonia americana, ascensão chinesa e revisionismo russo.
O direito internacional conserva valor simbólico e civilizatório, mas só se sustenta quando respaldado por poder. Kissinger legou a lição de que a paz não é fruto de moralidade abstrata, mas de uma diplomacia realista, consciente das vulnerabilidades recíprocas. No século XXI, como outrora, a ordem internacional é definida não por normas universais, mas pelo permanente jogo de forças que molda o destino das nações.
Referências
KISSINGER, Henry. Diplomacy. New York: Simon & Schuster, 1994.
KISSINGER, Henry. World Order. New York: Penguin Press, 2014.
MORGENTHAU, Hans J. Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace. 7. ed. New York: McGraw-Hill, 2006.
SPEKTOR, Matias. 18 Dias: Quando Lula e FHC disputaram o apoio de Bush. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.