Paraquedismo e Direito: Entre a Autonomia Individual e o Princípio da Precaução

31/08/2025 às 19:29

Resumo:


  • O artigo analisa o paraquedismo sob a ótica jurídica, destacando a tensão entre liberdade individual e intervenção estatal diante da periculosidade da prática e do despreparo dos participantes.

  • Argumenta que a regulação não viola inconstitucionalmente as liberdades, mas representa o legítimo dever estatal de proteger a vida e a integridade física, apoiando-se em doutrina, legislação e jurisprudência nacional.

  • Destaca a importância da concordância prática entre direitos fundamentais, da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, e do princípio da precaução na regulação do paraquedismo para equilibrar a liberdade individual e a segurança coletiva.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Paraquedismo e Direito: Entre a Autonomia Individual e o Princípio da Precaução

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

O presente artigo analisa o paraquedismo sob a ótica jurídica, destacando a tensão entre liberdade individual e intervenção estatal diante da periculosidade intrínseca da prática e do despreparo dos agentes. Examina-se o tema à luz do poder de polícia administrativa, da responsabilidade civil objetiva, do princípio da precaução e da jurisprudência nacional. Argumenta-se que a regulação não representa violação inconstitucional de liberdades, mas sim manifestação legítima do dever estatal de proteção da vida e da integridade física. A pesquisa apoia-se em doutrina, legislação e precedentes judiciais, buscando oferecer subsídios para o debate acerca da legitimidade e dos limites das restrições aplicáveis a atividades esportivas de risco.

Palavras-chave: paraquedismo; periculosidade; poder de polícia; responsabilidade civil; princípio da precaução.

Abstract

This paper analyzes skydiving from a legal perspective, highlighting the tension between individual freedom and state intervention in light of the inherent dangerousness of the practice and the lack of preparedness of participants. The issue is examined through the lens of administrative police power, strict liability, the precautionary principle, and national jurisprudence. The article argues that regulation does not represent an unconstitutional violation of freedoms but rather a legitimate expression of the state's duty to protect life and physical integrity. The research relies on doctrine, legislation, and judicial precedents, seeking to provide a comprehensive framework for the debate on the legitimacy and limits of restrictions on high-risk sports activities.

Keywords: skydiving; dangerousness; police power; civil liability; precautionary principle.

Sumário: 1. Introdução. 2. A periculosidade como fundamento de restrição jurídica. 3. Liberdade individual e limites constitucionais. 4. O princípio da precaução e a atuação Estatal. 5. Entendimento Jurisprudencial. 6. Considerações finais. Referências

1. Introdução

O avanço dos esportes radicais no Brasil trouxe consigo debates jurídicos relevantes acerca da possibilidade e da extensão da intervenção estatal sobre tais práticas. O paraquedismo, atividade marcada por risco elevado, suscita questões sobre a compatibilidade entre a liberdade individual de praticá-lo e o dever estatal de proteger a vida e a integridade física. Este artigo propõe-se a examinar a legitimidade de restrições impostas ao paraquedismo em face de sua periculosidade e do despreparo dos praticantes, articulando fundamentos constitucionais, civis e administrativos.

O Código Civil brasileiro, em seu art. 927, parágrafo único, prevê a responsabilidade objetiva por atividades que, por sua natureza, impliquem risco a terceiros. O paraquedismo insere-se nesse conceito de risco acentuado, o que justifica especial atenção da ordem jurídica. O risco é inerente à própria prática, seja pelo manejo dos equipamentos, seja pela exposição direta à queda em grande altitude.

2. A periculosidade como fundamento de restrição jurídica

A noção de periculosidade fundamenta o exercício do poder de polícia administrativa (CTN, art. 78), legitimando a atuação do Estado na fiscalização, restrição ou condicionamento de atividades privadas que possam ameaçar bens jurídicos essenciais. A jurisprudência do STF e do STJ reconhece a legitimidade de restrições quando o risco à coletividade ou ao próprio praticante é elevado, desde que observados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

O despreparo do praticante ou do instrutor potencializa os riscos já existentes. Assim, a responsabilidade civil das escolas de paraquedismo e de seus instrutores é objetiva (CDC, art. 14), uma vez que se trata de relação de consumo. Na esfera administrativa, a ANAC e o Comando da Aeronáutica detêm competência normativa e fiscalizatória, impondo requisitos de treinamento e homologação de equipamentos. O descumprimento desses deveres configura infração administrativa e pode ensejar sanções.

3. Liberdade individual e limites constitucionais

A Constituição Federal assegura a liberdade de iniciativa (art. 1º, IV; art. 170) e o direito ao desporto (art. 217). Entretanto, tais garantias não são absolutas: encontram limites no dever estatal de proteção da vida e da integridade física (art. 5º, caput). Assim, restrições proporcionais ao paraquedismo não configuram violação, mas sim concretização do princípio da concordância prática entre direitos fundamentais.

O exame do paraquedismo evidencia um conflito de valores constitucionais: de um lado, a liberdade individual e a autonomia da vontade, que permitem ao cidadão escolher suas práticas esportivas e de lazer; de outro, o direito à vida, à saúde e à segurança, que impõem ao Estado o dever de proteção (Schutzpflicht).

Não se trata de oposição absoluta, mas de tensão permanente entre dois polos igualmente consagrados pela Constituição de 1988. O desafio jurídico é harmonizá-los. A solução, conforme doutrina e jurisprudência, dá-se por meio da ponderação de princípios (Alexy) e do princípio da proporcionalidade, que exige medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito.

Nesse quadro, não é admissível a proibição pura e simples do paraquedismo, pois isso anularia a liberdade esportiva e a autonomia individual. Tampouco é legítimo um cenário de completa permissividade, pois isso negligenciaria o dever de proteção à vida. A saída está na concordância prática: coexistência equilibrada dos valores constitucionais, mediante regulamentações que não eliminem a liberdade, mas que mitiguem os riscos em benefício da segurança coletiva.

O controle das restrições impostas a atividades esportivas de risco, como o paraquedismo, exige a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a equilibrar os valores constitucionais em colisão — liberdade individual e direito à vida.

A proporcionalidade, como é cediço, é princípio imanente ao Estado de Direito, havendo se empregar o tripé clássico da proporcionalidade — adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Já a razoabilidade se conecta à lógica interna e ao bom senso da norma restritiva. A aplicação desses princípios se evidencia em casos de responsabilidade civil por atividades perigosas, sendo importante se verificar a questão sob a ótica da razoabilidade das medidas de segurança exigidas do fornecedor de serviços.

Aplicando tais fundamentos ao paraquedismo, conclui-se que as restrições estatais — como a exigência de treinamento, homologação de equipamentos e fiscalização — são compatíveis com a Constituição apenas quando adequadas à finalidade de proteção da vida, necessárias diante da ausência de alternativas menos gravosas e razoáveis no equilíbrio entre liberdade individual e segurança coletiva.

4. O princípio da precaução e a atuação estatal

O princípio da precaução, amplamente aceito no direito ambiental e administrativo, orienta a atuação estatal em situações de risco incerto ou elevado. Aplicado ao paraquedismo, significa que, diante da possibilidade de dano grave ou irreversível, a ausência de absoluta certeza científica não pode ser invocada para justificar a inação do Estado.

A atividade fiscalizadora constitui expressão concreta do poder de polícia administrativa, prevista no art. 78 do Código Tributário Nacional, pela qual a Administração Pública limita ou condiciona direitos individuais em benefício da coletividade. No caso do paraquedismo, a fiscalização é o instrumento que viabiliza o equilíbrio entre a liberdade de prática esportiva e o dever estatal de proteção da vida e da segurança.

Compete à Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) estabelecer normas técnicas e de segurança aplicáveis às operações de salto, bem como ao Comando da Aeronáutica regular o uso do espaço aéreo. Além disso, federações desportivas complementam a normatização, sem afastar a primazia das regras estatais. A fiscalização manifesta-se de forma prévia (autorizações, homologações e licenças), concomitante (inspeções em aeródromos e clubes) e repressiva (sanções administrativas em caso de infração).

Do ponto de vista constitucional, a fiscalização deve observar os princípios da legalidade, proporcionalidade, razoabilidade e finalidade, evitando tanto a arbitrariedade quanto a omissão.

É importante destacar que a fiscalização é expressão legítima do dever de proteção do Estado, sendo que a omissão na fiscalização de atividades de risco pode gerar responsabilidade civil objetiva do Estado.

Dessa forma, a atividade fiscalizadora não elimina a liberdade esportiva, mas a condiciona a parâmetros técnicos indispensáveis para a redução de riscos, concretizando a ponderação constitucional entre autonomia individual e proteção da vida.

5. Entendimento Jurisprudencial

Embora não haja vasto repertório jurisprudencial específico sobre o paraquedismo, decisões sobre atividades similares (tirolesa, rapel, montanhismo) ilustram a orientação dos tribunais.

A análise das decisões dos Tribunais de Justiça estaduais revela como a temática da responsabilidade civil em acidentes de paraquedismo vem sendo tratada na prática jurisdicional. Tais precedentes demonstram que a solução judicial varia conforme a prova produzida em cada caso, refletindo a tensão entre a responsabilidade objetiva do prestador de serviços e os riscos inerentes ao esporte radical.

No Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), na Apelação Cível nº 0056071-29.2011.8.12.0001, julgada em 21 de outubro de 2019, a 3ª Câmara Cível reconheceu a existência de culpa concorrente entre a vítima e a empresa que promoveu o salto. Embora tenha afastado a responsabilidade solidária da Federação de Paraquedismo, considerou devidos danos materiais e morais, modulados pela concorrência de culpas. Tal precedente é relevante porque sinaliza que a responsabilidade do prestador não é absoluta: a imprudência ou negligência do praticante pode atenuar a indenização, sem afastá-la integralmente.

Já o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), no Recurso Inominado nº 0003766-51.2021.8.16.0019, julgado em 5 de setembro de 2022 pela 3ª Turma Recursal, reconheceu a responsabilidade objetiva da empresa promotora do salto, com fundamento na teoria do risco da atividade perigosa. A decisão fixou indenização de R$ 15.000,00 a título de danos morais, além do ressarcimento das despesas médicas decorrentes do acidente. O acórdão é emblemático porque reafirma que a alegação de culpa exclusiva da vítima deve ser cabalmente demonstrada, não podendo ser presumida, sobretudo em serviços de consumo que envolvem risco acentuado.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), na Apelação nº 0001687-82.2005.8.24.0037, julgada em 31 de março de 2022 pela 7ª Câmara de Direito Civil, afastou a responsabilidade dos réus. A decisão destacou que não houve falha no equipamento ou no treinamento fornecido, atribuindo o acidente exclusivamente à conduta da vítima, que deixou de acionar o freio (flare) no momento adequado. O acórdão ressalta, ainda, que a falha do rádio de comunicação não era imprescindível, dado o preparo prévio recebido pela praticante, concluindo que os riscos são inerentes à natureza do esporte radical.

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Esses três precedentes demonstram que, nos Tribunais Estaduais, a responsabilidade civil em acidentes de paraquedismo é analisada sob diferentes prismas: ora reconhecendo a responsabilidade objetiva do prestador de serviços, ora admitindo a concorrência de culpas, ora mesmo afastando o dever de indenizar diante da ausência de nexo causal ou da caracterização de risco inerente. A comparação evidencia a importância da prova técnica pericial e da análise concreta do caso para a definição da responsabilidade.

Não se perca de vista que liberdades econômicas ou de iniciativa não podem se sobrepor ao direito fundamental à saúde coletiva, o que serve de parâmetro interpretativo para atividades de risco elevado.

6. Considerações finais

O paraquedismo, pela sua periculosidade intrínseca e pelo risco agravado pelo despreparo, legitima a imposição de restrições jurídicas que visam proteger bens fundamentais como a vida e a integridade física. Longe de representar violação inconstitucional da liberdade esportiva ou da autonomia individual, tais restrições concretizam o dever do Estado de zelar pela segurança coletiva.

A análise revelou a existência de um conflito de valores constitucionais, cuja solução não se dá pela anulação de um dos polos, mas pela ponderação e pela concordância prática. A liberdade de praticar o paraquedismo é preservada, mas condicionada a medidas proporcionais de segurança, em conformidade com o princípio da precaução e com o dever de proteção estatal.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jan. 2002.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 12 set. 1990.

BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 27 out. 1966.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS). Apelação Cível n. 0056071-29.2011.8.12.0001. Relator: Des. Odemilson Roberto Castro Fassa. 3ª Câmara Cível. Julgado em 21 out. 2019. Publicado em 23 out. 2019.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Recurso Inominado n. 0003766-51.2021.8.16.0019. Relator: Juiz Juan Daniel Pereira Sobreiro. 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais. Julgado em 5 set. 2022. Publicado em 13 set. 2022.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Apelação n. 0001687-82.2005.8.24.0037. Relatora: Des. Haidée Denise Grin. 7ª Câmara de Direito Civil. Julgado em 31 mar. 2022.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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