Carlos Roberto Claro1
1º. Set. 2025
No tempo da Roma Antiga, as obrigações contraídas pelo devedor eram respondidas inclusive por sua servidão pelo prazo de 60 (sessenta) dias. Caso inexistisse o efetivo pagamento poderia ser conduzido à praça pública para ser vendido como escravo ou mesmo resgatado.
Caso não vendido, sofria a capitis diminutio maxima, tornando-se efetiva propriedade do credor, que poderia posteriormente vendê-lo fora do território romano2, considerando a inadimplência.
Mais tarde, a Lex Julia Bonorum (737 a.C.) estabelecia que o devedor poderia ceder seus bens aos credores [cessio bonorum] e estes poderiam vende-los separadamente, visando a satisfação da dívida3. É a semente da falência.
Houve significativa evolução do instituto falimentar e a civilização chegou ao século XXI, mas a falência ainda é vista com certas reservas.
Os tempos pós-modernos são outros, muito distantes da Roma Antiga, mas parece ainda existir certo estigma quanto ao fato de ser juridicamente “falido”.
Este pequeno texto apresentará algumas reflexões a respeito do estigma da falência, ainda existente na mente de muitos.
Além disso, os próprios titulares da pessoa jurídica falida nem sempre conhecem o teor da Lei 11.101/05, de modo que mantém certas inconsistências conceituais quanto a determinados aspectos relacionados a direitos e obrigações no âmbito do processo, por exemplo.
Não raro se parte de pré-juízo para se referir a esta ou aquela entidade falida, sem conhecer, de fato, as razões que levaram ao insucesso do empreendimento.
Nessa esteira, acentua Lenio Streck que:
Afinal, são os ‘pré-juízos não percebidos que, no seu domínio, tornam-nos surdos para a coisa que nos fala a tradição’, como bem explica Gadamer. Pré-juízos falsos devem ser desmascarados, anulando-se a sua validade, uma vez que, enquanto continuam a nos dominar, não os conhecemos e nem os repensamos como juízo. Daí a contundente assertiva de Gadamer, alertando para o fato de que ‘não será possível desvelar um pré-juízo enquanto ele agir continuada e sub-repticiamente’, sem que saibamos, e, sim, somente quando ele for, por assim dizer, suscitado4
O vocábulo “crise” exprime a ideia de dificuldade, desajuste, desequilíbrio momentâneo. A crise pode ser econômica, financeira ou patrimonial.
Para as duas primeiras, a depender do caso concreto, a saída poderá ser a recuperação judicial ou extrajudicial, sem descuidar de outras formas de composição direta com os credores. Assim o diz o art. 167 da Lei 11.101/05.
A crise patrimonial é ligada aos ativos da empresa, que justamente são insuficientes para honrar as obrigações livremente assumidas pelo devedor.
Quando o agente econômico possui mais dívidas que bens (patrimônio), o sinal de crise é agudo, acentuado e requer providências, até mesmo o imediato pedido de abertura judicial da assim denominada autofalência (Lei 11.101/05, art. 105).
Em tal caso, parece que a insolvência está acentuada, porquanto o passivo da entidade é maior que o patrimônio.
Nesta particular situação, porque inexiste possibilidade de reestruturação e inexiste viabilidade econômica, o devedor, em tese, não poderá se valer dos meios recuperatórios previstos na Lei 11.101/05 e deveria ajuizar a autofalência.
O estado é de insolvência e cabe a imediata retirada do mercado, a fim de preservar o crédito público e evitar o efeito multiplicador da crise patrimonial.
Quando há o primeiro sinal de alerta, cabe fazer a seguinte indagação: existe a possiblidade de reversão/sanabilidade da crise vivenciada?
Caso a resposta seja negativa, é de se requerer a abertura judicial da falência.
Os titulares da pessoa jurídica devem(riam) desenvolver a efetiva e necessária capacidade de antecipação, ao primeiro sinal de crise, e agir.
Eventualmente, a decretação da falência poderia ser evitada, caso fossem tomadas medidas preventivas.
Não havendo possibilidade de superação da crise patrimonial, é se retirar o agente econômico do mercado.
Por fim, é de se ponderar que nem sempre a crise patrimonial ocorre em decorrência de atos omissivos ou comissivos dos titulares da empresa.
Não cabe gastar tinta para dizer que a crise sanitária mundial ocasionou a falência de muitos agentes econômicos.
Há inúmeros outros fatores externos à atividade econômica que podem conduzir a pessoa jurídica ao processo falimentar e nem sempre a responsabilidade é dos gestores.
A atividade produtiva nem sempre conduz ao sucesso e ao lucro; as crises podem ocorrer, ainda mais em tempos de acirrada competição no mercado.
Muitos que empreendem – observados os princípios Constitucionais [inclusive o da livre iniciativa – possibilidade de as pessoas se lançarem em atividade econômica, por conta e risco, com algumas restrições, porquanto o Estado regula/limita a atividade econômica privada] - acabam encerrando os negócios muito cedo, por variados fatores, desde incapacidade gerencial até crise no segmento em que atua, por exemplo.
Há riscos que envolvem o exercício da atividade econômica no mercado competitivo e quem empreende deve(ria) saber que pode haver insucesso e falência.
Pode-se afirmar que a Lei 11.101/05, que trata da recuperação e falência do empresário e da sociedade empresária, representa grande avanço quanto ao tratamento da crise da empresa no Brasil.
O Decreto-Lei 7.661/45 cumpriu sua função para a época em que editado, mas estava totalmente obsoleto, considerando a realidade da moderna empresa.
Não bastasse, a reforma ocorrida via Lei 14.112/2020 trouxe nova visão a respeito da liquidação célere das atividades econômicas inviáveis, fazendo com que haja rápida realocação dos recursos advindos da alienação judicial de bens na economia de mercado, até para que não perca valor.
Ainda, a lei visa a fomentar o empreendedorismo, possibilitando (em tese), o retorno do empreendedor falido à atividade econômica.
Quanto a este particular aspecto, a Lei 11.101/05 importou do sistema estadunidense, o fresh start [“um novo começo”]. Em poucas palavras, busca-se fazer com que o falido retorne ao mercado competitivo tão logo seja possível.
Contanto que não exista hipótese impeditiva prevista em lei, as obrigações do falido poderão ser encerradas conforme regras previstas no art. 158 da Lei 11.101/05.
A diminuição do lapso temporal para extinção das obrigações do falido, a contar da sentença de abertura judicial da falência, independentemente de trânsito em julgado (a lei não diz ao contrário - art. 158, inc. V) é um avanço.
É, sem dúvida, um certo benefício ao devedor falido, que pode retornar ao mercado, após a extinção das obrigações {Lei 11.101/05, arts. 159 e 160].
Ora, se antes da reforma o decurso do prazo se iniciava a contar do encerramento da falência, a nova redação de 2020 é no sentido de que é contado da abertura judicial, independentemente de trânsito em julgado.
A redução drástica de dez e de cinco anos para apenas três anos, a contar da sentença de falência é excelente para o falido, para a entidade falida e seus sócios/acionistas.
Em resumo, pela lei, o “novo” empreendedor pode voltar ao mercado competitivo rapidamente, bastando aguardar determinado lapso temporal, observados os requisitos legais.
De fato, quiçá mereçam nova chance de recomeçar a empreender, decorrido o lapso temporal previsto no art. 158, inc. V, da Lei 11.101/05, por exemplo, prazo esse que começa a contar da abertura judicial da falência.
A regra prevista no art. 158, inc. II, da mesma lei, merece especial atenção, justamente porque pressupõe o efetivo pagamento dos créditos extraconcursais [dívidas pós-falência, que surgiram em decorrência da sentença que retira o devedor do mercado], bem como, quanto aos concursais (dívidas da falida), os créditos trabalhistas, os com garantia real e os tributários.
Após, cabe demonstrar o pagamento de 25% dos créditos quirografários
A Lei 11.101/05 afastou o caráter punitivo, o caráter liquidatório-solutório e o interesse exclusivo dos credores. previsto no Decreto-Lei 7.661/45. Agora a visão é global.
Em caso de insucesso da empresa, caso é de se retirá-la do mercado o quanto antes, visando inclusive efeito multiplicador da crise.
Por outro lado, a lei fomento a empreendedorismo, o começar de novo; o novo fôlego.
Busca o célere retorno do empreendedor falido à atividade econômica e atuação no mercado competitivo, que possui regras próprias.
Há um novo paradigma advindo da Lei 11.101/05, que é justamente a possibilidade de um novo empreender.
Diante deste novo paradigma, é de se afastar, definitivamente, a ideia de que o falido não pode voltar ao mercado competitivo. A livre iniciativa pode ser por ele exercitada, porquanto direito Constitucional, sabendo dos riscos de empreender.
A Lei 11.101/05, em seu art. 75, inc. III, fomenta o novo empreendedorismo, até para quem passou por processo falimentar.
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Advogado em Direito Empresarial; Mestre em Direito; Especialista em Direito Empresarial; Parecerista e Pesquisador; Membro e Diretor Acadêmico da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-PR (gestão 2025-2027).
Apesar de efetivamente responder com a sua liberdade, sua vida e sua honra, mesmo no direito romano arcaico não se tem notícia de esquartejamento e partilha propriamente ditos do corpo de um devedor. Pareceu a alguns estudiosos que a divisão do corpo do devedor em partes e a sua posterior partilha entre os credores teriam um caráter místico, simbólico, não material/real – algo próximo de uma maldição, típica da magia e da religião romanas. Por meio desta ação mística, as partes do corpo do devedor seriam entregues às divindades maléficas como uma espécie de castigo pelo inadimplemento da obrigação para com os vários credores. TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João P.; SPINELLI, Luis F. História do direito falimentar: da execução pessoal à preservação da empresa. São Paulo: Almedina, 2018, p. 23. Sobre o tema: FERREIRA, Waldemar M. Instituições de direito comercial. Quarta Edição. Quinto Volume. A falência. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 10.︎
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Sobre tema, dentre outros juristas italianos: AZZOLINA, Umberto. Il falimento e le altre procedure concursali. Seconda edizione. Torino: Unione tipografia-Editrice Torinese, 1961; DE SEMO, Giorgio. Diritto Fallimentare. Quinta Edizione. Padova: CEDAM – Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1968; RAMELLA, Agostino. Trattato del Fallimento. Volume Primo. Milano: Società Editrice Libraria, 1915.︎
Verdade e consenso., Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 237. Destaques na obra.︎