Introdução histórica
No Brasil, o instituto da junta médica consolidou-se a partir da necessidade de conferir colegialidade e imparcialidade às avaliações clínicas que produzem efeitos jurídicos — como concessão de licenças, aposentadorias por invalidez e solução de divergências técnico-assistenciais entre médicos assistentes e operadoras de planos de saúde.
Na deontologia médica, a junta é tradicionalmente definida como a atuação coordenada de dois ou mais médicos (geralmente três) para examinar um mesmo caso, especialmente quando há discordância pericial relevante. Na prática, a junta médica funciona como um órgão pericial, garantindo uma análise criteriosa e imparcial do estado de saúde do paciente.
Os médicos que compõem a junta devem seguir protocolos específicos, baseados em diretrizes médicas e na legislação vigente, para embasar suas decisões de forma objetiva e justa.
No setor de Saúde Suplementar, a formalização regulatória moderna das juntas deu um salto em 26 de junho 2017, quando a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) editou a Resolução Normativa nº 424 para padronizar composição, prazos, hipóteses de cabimento e deveres de informação em situações de divergência técnico-assistencial. O próprio art 2º da citada resolução, traz em seu inciso II a conceituação da junta médica ou odontológica, em textual:
“Junta médica ou odontológica: junta formada por profissionais médicos ou cirurgiões-dentistas para avaliar a adequação da indicação clínica do profissional assistente que foi objeto de divergência técnico-assistencial pelo profissional da operadora, podendo ocorrer na modalidade”.
A agência registrou, à época, a expectativa de maior transparência, celeridade e redução de judicialização com a adoção do rito, na medida em que ao reunir médicos especialistas para avaliar um determinado caso, a junta reduz o risco de decisões equivocadas, assegurando um parecer com respaldo em evidências clínicas e diretrizes médicas/odontológicas
Conceito, bases normativas e éticas
A Constituição consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196) — fundamento que inspira mecanismos administrativos de solução de conflitos técnico-assistenciais, inclusive por meio de juntas.
A Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) organiza o SUS e reforça a diretriz de acesso universal e igualitário à saúde, expressando em seu art. 2º que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”, sobretudo “na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” — o que não exclui o dever de instituições privadas, da família e da sociedade como um todo.
1) Serviço público (servidores) — perícia e junta oficial
No regime estatutário federal, a Lei nº 8.112/1990 e o Decreto nº 7.003/2009, (com redação atualizada dada pelo Decreto nº 11.255/2022) tratam da perícia oficial em saúde e da junta médica oficial, em hipóteses como licenças, acidentes em serviço e reversão de aposentadoria por invalidez.
Colaciona-se o art 230 da citada lei dos servidores, com redação dada pelas Leis nº 9.257/1997 e 11.302/2006:
Art. 230. A assistência à saúde do servidor, ativo ou inativo, e de sua família compreende assistência médica, hospitalar, odontológica, psicológica e farmacêutica, terá como diretriz básica o implemento de ações preventivas voltadas para a promoção da saúde e será prestada pelo Sistema Único de Saúde – SUS, diretamente pelo órgão ou entidade ao qual estiver vinculado o servidor, ou mediante convênio ou contrato, ou ainda na forma de auxílio, mediante ressarcimento parcial do valor despendido pelo servidor, ativo ou inativo, e seus dependentes ou pensionistas com planos ou seguros privados de assistência à saúde, na forma estabelecida em regulamento. (Redação dada pela Lei nº 11.302 de 2006)
§ 1o Nas hipóteses previstas nesta Lei em que seja exigida perícia, avaliação ou inspeção médica, na ausência de médico ou junta médica oficial, para a sua realização o órgão ou entidade celebrará, preferencialmente, convênio com unidades de atendimento do sistema público de saúde, entidades sem fins lucrativos declaradas de utilidade pública, ou com o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)
§ 2o Na impossibilidade, devidamente justificada, da aplicação do disposto no parágrafo anterior, o órgão ou entidade promoverá a contratação da prestação de serviços por pessoa jurídica, que constituirá junta médica especificamente para esses fins, indicando os nomes e especialidades dos seus integrantes, com a comprovação de suas habilitações e de que não estejam respondendo a processo disciplinar junto à entidade fiscalizadora da profissão.
O conceito da junta oficial, por sua vez, é inferido da redação atualizada do art. 2º, II, do citado Decreto 7.003, que regulamenta a licença para tratamento de saúde, e a situa como “perícia oficial realizada por, no mínimo, dois médicos ou dois cirurgiões-dentistas”.
2) Saúde Suplementar — juntas médicas e odontológicas
A Lei nº 9.656/1998 estrutura os planos privados de assistência à saúde de forma complementar ao SUS, e a Lei nº 9.961/2000, por sua vez, cria a Agência Nacional da Saúde Suplementar (ANS), outorgando-lhe competência regulatória e fiscalizatória, esta que se consubstancia na base legal sobre a qual se assentam as resoluções sobre juntas médicas.
Assim dispõe o art. 6 da Resolução Normativa 424/2017 da ANS:
Art. 6º As operadoras devem garantir, em situações de divergência técnico-assistencial sobre procedimento ou evento em saúde a ser coberto, a realização de junta médica ou odontológica, com vistas a solucionar referida divergência quanto ao procedimento indicado.
§ 1º A junta médica ou odontológica será formada por três profissionais, quais sejam, o assistente, o da operadora e o desempatador.
§ 2º O profissional assistente e o profissional da operadora poderão, em comum acordo e a qualquer momento, estabelecer a escolha do desempatador.
§ 3º O comum acordo na escolha do desempatador, previsto no § 2º, não desobriga a operadora do cumprimento das demais exigências para a realização da junta médica ou odontológica.
§ 4º O parecer do desempatador será acatado para fins de cobertura.
§ 5º A operadora deverá garantir profissional apto a realizar o procedimento nos termos indicados no parecer técnico conclusivo da junta
Do ponto de vista ético-profissional, a junta médica (ou odontológica) não substitui a responsabilidade do médico assistente, como visto no art. 2º da RN 424/2017; ela serve para, presencialmente ou à distância, dirimir divergência técnica sobre eventual negativa, preferencialmente com um terceiro profissional desempatador escolhido de comum acordo entre o assistente e a operadora.
Entre os requisitos éticos corriqueiros encontram-se a independência técnica dos pareceristas e a prevenção de conflitos de interesse, em ordem a diminuir a judicialização dos litígios.
Cabe ainda uma breve alusão à RN nº 259/2011 da ANS, que fixa prazos máximos para marcação e realização de atendimentos e procedimentos — parâmetro que baliza a tempestividade das juntas previstas na RN nº 424; e à RN nº 623/2024 da agência, que moderniza o relacionamento entre operadoras e beneficiários, exigindo justificativas formais e claras para negativas, rastreabilidade das demandas e canais de atendimento. Interage com a junta ao estruturar o fluxo de informações que antecede (ou substitui) o conflito técnico-assistencial.
2.1) Notificação de Intermediação Preliminar - NIP (RN nº 388/2015 )
Em ordem a diminuir a judicialização dos litígios, é relevante trazer à baila o procedimento administrativo denominado “NIP (Notificação de Intermediação Preliminar)”, mecanismo de mediação entre consumidor e operadora conduzido pela ANS, que pode antecipar ou acompanhar o rito da junta médica/odonotógica no âmbito da Saúde Suplementar, resolvendo o conflito, como dito, sem judicialização.
O mesmo é definido no art. 5º e seguintes da RN 388/2015, que assim dispõe:
Art. 5º O procedimento da Notificação de Intermediação Preliminar - NIP consiste em um instrumento que visa à solução de conflitos entre beneficiários e Operadoras de planos privados de assistência à saúde - operadoras, inclusive as administradoras de benefícios, constituindo-se em uma fase pré-processual.
Assim, como uma solução implementada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para resolver questões como negativas de cobertura, demora no atendimento e outras eventuais falhas nos serviços prestados, a NIP tem como objetivo proporcionar uma solução rápida e eficiente para divergências relacionadas a coberturas, serviços e atendimentos prestados pelas operadoras, antes que a questão seja levada ao Judiciário.
As juntas médicas/odontológicas integram-se à NIP no âmbito da Saúde Suplementar, oferecendo via rápida e eficaz de mediação entre clientes e prestadoras.
Conclusão
Por todo exposto conclui-se que as juntas médicas exercem papel estratégico no Direito da Saúde brasileiro. Ao organizar o contraditório técnico de forma célere e transparente, prestigiam a autonomia médica, reduzem a judicialização (inclusive-se integrando-se às NIP) e promovem eficiência regulatória, aprimorando ainda a informação ao paciente, ao conceber justificativas formais para eventuais negativas.
O arcabouço normativo brasileiro fornece instrumentos concretos para que conflitos técnico-assistenciais sejam solucionados administrativamente, com ganhos de segurança jurídica, qualidade assistencial e eficiência regulatória.
Referências normativas e institucionais
- CRFB/1988, art. 196 (direito à saúde)
- Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde)
- Lei nº 8.112/1990 (Regime jurídico dos servidores públicos civis federais)
- Lei nº 9.656/1998 (Planos de Saúde)
- Lei nº 9.961/2000 (criação da ANS)
- Decreto nº 7.003/2009, atualizado pelo Decreto nº 11.255/2022 (perícia oficial e junta médica oficial de servidores)
- RN ANS nº 259/2011 (prazos máximos de atendimento)
- RN ANS nº 424/2017 (junta médica/odontológica)
- RN ANS nº 623/2024 (atendimento ao beneficiário)
- RN ANS nº 388/2015 (NIP)
- “Entenda a Notificação de Intermediação Preliminar (NIP)”, disponível em https://vlvadvogados.com/notificacao-preliminar-de-intermediacao/. Acesso em 02.09.2025