Trabalho Voluntário e Vínculo Empregatício: Análise Normativa e Jurisprudencial à Luz da Primazia da Realidade

03/09/2025 às 20:53

Resumo:


  • O artigo analisa a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício em atividades voluntárias, destacando a importância da onerosidade e da subordinação jurídica.

  • A jurisprudência tem sido essencial para distinguir o voluntariado legítimo do trabalho disfarçado, considerando a realidade efetiva da prestação de serviços.

  • O princípio da primazia da realidade é fundamental no Direito do Trabalho, garantindo a proteção dos direitos trabalhistas e evitando práticas fraudulentas no contexto do trabalho voluntário.

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Trabalho Voluntário e Vínculo Empregatício: Análise Normativa e Jurisprudencial à Luz da Primazia da Realidade

Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Resumo

O presente artigo examina a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício em atividades formalmente qualificadas como trabalho voluntário, à luz da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da Lei nº 9.608/1998. A análise é desenvolvida a partir da transcrição de dispositivos legais e de ementas de julgados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e de Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs), que tratam da caracterização ou não da onerosidade, da subordinação jurídica e da validade do termo de adesão. O estudo evidencia a centralidade do princípio da primazia da realidade como critério para distinguir o voluntariado legítimo do vínculo de emprego mascarado.

Palavras-chave: Trabalho voluntário. Vínculo empregatício. CLT. Lei nº 9.608/1998. Primazia da realidade. Jurisprudência trabalhista.

Abstract

This article examines the possibility of recognizing an employment relationship in activities formally classified as voluntary work, under the Brazilian Consolidation of Labor Laws (CLT) and Law No. 9.608/1998. The analysis is based on the transcription of legal provisions and case law summaries from the Superior Labor Court (TST) and Regional Labor Courts (TRTs), addressing the presence or absence of remuneration, legal subordination, and the validity of the adhesion agreement. The study highlights the centrality of the principle of the primacy of reality as a criterion to distinguish legitimate voluntary work from disguised employment relations.

Keywords: Voluntary work. Employment relationship. CLT. Law No. 9.608/1998. Primacy of reality. Labor case law.

Sumário: 1 Introdução. 2 Marco normativo: CLT e Lei nº 9.608/1998. 2.1 Consolidação das Leis do Trabalho. 2.2 Constituição Federal de 1988. 2.3 Lei nº 9.608/1998 (Lei do Voluntariado). 3 A centralidade da onerosidade e da subordinação jurídica. 4 Jurisprudência sobre trabalho voluntário. 4.1 Precedentes que afastam o vínculo empregatício. 4.2 Precedentes que reconhecem o vínculo empregatício. 4.3 O princípio da primazia da realidade. 5 Considerações finais. Referências

1 Introdução

O trabalho voluntário é instituto de relevo social e jurídico, regulamentado no Brasil pela Lei nº 9.608/1998, que o conceitua como atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos.

Sob a perspectiva social, o voluntariado constitui instrumento de solidariedade, cidadania ativa e fortalecimento do tecido comunitário, especialmente em áreas como educação, saúde, cultura e assistência social. É, portanto, peça fundamental para a atuação de organizações do terceiro setor e para o próprio Estado em políticas públicas de alcance limitado.

No entanto, sob a ótica econômica, o voluntariado também se insere em contexto ambíguo. Ao mesmo tempo em que reduz custos de entidades e fomenta a participação cívica, pode ser instrumentalizado de maneira indevida para substituir empregos formais, gerando precarização, evasão de encargos trabalhistas e previdenciários e até mesmo concorrência desleal com empresas que cumprem a legislação trabalhista.

Essa tensão — entre a relevância social do voluntariado e o risco de sua deturpação — explica o debate jurídico sobre seus limites. O Poder Judiciário trabalhista é frequentemente chamado a resolver controvérsias em que a atividade formalmente apresentada como voluntária revela, na realidade, os requisitos do vínculo de emprego descritos no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A análise jurisprudencial, assim, torna-se essencial para compreender até que ponto se reconhece a natureza gratuita do serviço ou se se afirma a existência de contrato de trabalho, em nome da proteção social.

2 Marco normativo: CLT e Lei nº 9.608/1998

2.1 Consolidação das Leis do Trabalho

Art. 2º, CLT: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.”

Art. 3º, CLT: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

Art. 818, CLT: “O ônus da prova incumbe: I – ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – ao reclamado, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante.”

2.3 Constituição Federal de 1988

Art. 114, I, CF/88: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”

2.4 Lei nº 9.608/1998 (Lei do Voluntariado)

Art. 1º: “Considera-se serviço voluntário, para os fins desta Lei, a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa.”

Art. 2º: “O serviço voluntário será exercido mediante a celebração de termo de adesão entre a entidade, pública ou privada, e o prestador do serviço voluntário, dele devendo constar o objeto e as condições de seu exercício.”

Art. 3º: “O prestador do serviço voluntário poderá ser ressarcido pelas despesas que comprovadamente realizar no desempenho das atividades voluntárias.”

3 A centralidade da onerosidade e da subordinação jurídica

A caracterização do vínculo de emprego exige a presença cumulativa dos elementos descritos no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. A ausência de qualquer um desses requisitos descaracteriza o contrato de trabalho.

No caso do trabalho voluntário, a discussão concentra-se especialmente nos elementos da onerosidade e da subordinação jurídica.

A Lei nº 9.608/1998, em seu art. 1º, conceitua o voluntariado como atividade “não remunerada”. O art. 3º da mesma lei permite apenas o ressarcimento de despesas comprovadamente realizadas no desempenho da atividade. Isso significa que qualquer valor pago ao voluntário deve ter caráter indenizatório, e não contraprestativo.

A jurisprudência revela que a dificuldade prática está em distinguir a ajuda de custo legítima do salário disfarçado.

  • Quando o repasse é destinado a cobrir gastos mínimos de transporte, alimentação ou hospedagem, preserva-se a natureza voluntária da atividade (ex.: TRT-4, RO 0000020-27.2013.5.04.0251).

  • Contudo, quando o valor é pago de forma habitual, vinculado ao desempenho da função, e serve como contraprestação pelo serviço prestado, resta caracterizada a onerosidade própria da relação empregatícia (ex.: TRT-3, RO 0010605-53.2018.5.03.0167).

Assim, a onerosidade funciona como critério decisivo: a linha divisória entre o voluntariado e o emprego está justamente na análise do caráter indenizatório ou remuneratório da verba recebida.

Outro requisito central é a subordinação. A CLT exige que o empregado esteja sob a direção do empregador (art. 2º). No voluntariado, entretanto, a subordinação costuma se manifestar apenas como organização das atividades, necessária ao funcionamento da entidade.

A jurisprudência tem diferenciado a subordinação organizacional da subordinação jurídica:

  • A primeira é própria do voluntariado, refletindo apenas o cumprimento de normas internas, horários de atividades ou regras de conduta.

  • A segunda caracteriza o vínculo de emprego, pois envolve poder diretivo, controle da forma de execução do trabalho, fiscalização contínua e possibilidade de sanção disciplinar.

Exemplo disso pode ser encontrado no julgamento do TRT-2 (ROT 1000526-41.2019.5.02.0603), em que a Corte afastou o vínculo por ausência de subordinação, embora houvesse participação ativa da reclamante em campanha eleitoral.

Já em situações em que se verifica a existência de metas, obrigações funcionais rígidas e fiscalização típica de relação de emprego, a Justiça do Trabalho tem reconhecido o vínculo, ainda que a instituição alegue tratar-se de voluntariado (TST, RR 0000731-32.2014.5.23.0004).

Embora os dois elementos possam ser analisados separadamente, a prática revela que eles se inter-relacionam.

  • Em muitos casos, a mera ajuda de custo não caracteriza vínculo por ausência de subordinação.

  • Da mesma forma, ainda que exista certo controle organizacional, se não houver contraprestação econômica, não se reconhece o emprego.

É justamente quando onerosidade e subordinação coexistem que a Justiça do Trabalho reconhece o vínculo empregatício. Esse duplo critério garante que o voluntariado legítimo seja preservado, mas também evita que ele seja usado como artifício para mascarar relações de trabalho formais.

4. Jurisprudência sobre trabalho voluntário

4.1 Precedentes que afastam o vínculo empregatício

TRT-2 - ROT: 10004148320235020263

Relatora: Thaís Verrastro de Almeida – Julgamento: 21/08/2024

EMENTA: VÍNCULO DE EMPREGO. TRABALHO VOLUNTÁRIO RELIGIOSO. Para a caracterização do vínculo empregatício, a conjugação dos artigos 2º e 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, exige que estejam presentes todos os requisitos relacionados com a continuidade, subordinação jurídica, pessoalidade e salário. Pelo empregador a assunção do risco do empreendimento e a direção dos serviços. Quanto ao trabalho voluntário religioso, tem-se que, via de regra, o vínculo que une o líder religioso à entidade religiosa é de natureza vocacional, relacionado à resposta a uma chamada interior e não ao intuito de percepção de remuneração terrena. Em prestações voluntárias religiosas, a subordinação, quando existente, é de índole eclesiástica, e não empregatícia. Por fim, a retribuição percebida, em regra, diz respeito exclusivamente ao necessário para a manutenção do religioso. Por outro lado, mesmo no trabalho gratuito religioso é plenamente possível o reconhecimento de vínculo empregatício, especialmente quando demonstrado o desvirtuamento da própria instituição religiosa, buscando lucrar com a fé de seus seguidores. Assim, nestes casos de distorção do ensino religioso, pode-se enquadrar a igreja como uma verdadeira empresa e o líder religioso como empregado típico. No caso vertente, não há elemento que possa descaracterizar a atividade religiosa e voluntária da prestação de serviços. Recurso ordinário da reclamada provido para o fim de afastar o vínculo empregatício.

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TRT-2 - ROT: 10005264120195020603

Relatora: Beatriz Helena Miguel Jiacomini – Tribunal Pleno

EMENTA: VÍNCULO EMPREGATÍCIO. TRABALHO VOLUNTÁRIO. Os fatos e provas existentes nos autos não comprovam a prestação de serviços nos moldes do artigo 3º da CLT, mas apenas atuação da reclamante em campanha, na qualidade de colaboradora voluntária, nos termos da Lei 9.504/97. Os requisitos previstos no artigo 3º da CLT devem ser preenchidos integralmente, e não de forma alternativa, sendo que, ausente um deles, não há como se reconhecer o vínculo empregatício. No presente caso, está ausente o requisito da onerosidade.

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TST - E-RR: 76700-37.1998.5.01.0033

Relatora: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi – Julgamento: 27/06/2005

EMENTA: EMBARGOS - VÍNCULO EMPREGATÍCIO - TRABALHO VOLUNTÁRIO. 1. A onerosidade, como elemento do vínculo empregatício, desdobra-se em duas dimensões: a objetiva, dirigida à existência da contraprestação econômica, própria do caráter sinalagmático do contrato de trabalho, e a subjetiva, relativa à expectativa do trabalhador em ser retribuído pelos serviços prestados. 2. Na espécie, restou consignado no acórdão regional que o Reclamante, durante 22 (vinte e dois) anos, prestou serviços à Reclamada como assistente de educação física, em regra, nos fins de semana, sem jamais receber contraprestação pecuniária direta por isso - características próprias do trabalho voluntário. É inviável, pois, concluir pela existência de onerosidade e, via de consequência, pela ocorrência de contrato de trabalho. Embargos conhecidos e providos.

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TRT-4 - RO: 0000020-27.2013.5.04.0251

Relatora: Rosane Serafini Casa Nova – Julgamento: 11/06/2014

EMENTA: AUSÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. TRABALHO VOLUNTÁRIO. A percepção de ajuda de custo não é suficiente para desconfigurar o trabalho voluntário, mormente quando ausente a subordinação jurídica, requisito essencial para caracterização de vínculo empregatício, nos termos dos arts. 2º e 3º da CLT.

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TST - AIRR: 15540-16.2005.5.09.0656

Relator: Luiz Antonio Lazarim – Julgamento: 21/03/2007

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. NULIDADE DO JULGADO POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. 1. A revista não se credencia ao conhecimento, por nulidade de negativa de prestação jurisdicional, se o Regional não se omite acerca dos temas suscitados, mas emite pronunciamento contrário ao esperado pela parte Recorrente. 2. Inviável o processamento da revista, por nulidade do julgado diante de negativa de prestação jurisdicional, sob o fundamento de violação do artigo 535, I e II, do CPC e por dissonância à Súmula 297/TST. Inteligência da Orientação Jurisprudencial nº 115 da SBDI-1/TST. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ENTE PÚBLICO. RELAÇÃO DE EMPREGO. OFENSA AO ARTIGO 114, I DA CF. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. INOCORRÊNCIA. 1. A matéria atinente à competência da Justiça do Trabalho, diante da relação de emprego existente entre autora e ente público, foi solucionada, com vistas ao teor de análise de fatos e provas, insuscetível de reexame, nos termos da Súmula nº 126 do TST. Afastada se faz a arguição de ofensa ao artigo 114, I da CF. 2. A revista não se credencia ao conhecimento, por divergência jurisprudencial, se os arestos colacionados pertencerem a Turma do TST, órgão julgador não elencado dentre aqueles constantes da alínea a do artigo 896 consolidado. MUNICÍPIO. CARACTERIZAÇÃO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. INEXISTÊNCIA DE TRABALHO VOLUNTÁRIO. SERVIÇOS DE LIMPEZA DE VIAS PÚBLICAS. VIOLAÇÃO DA LEI Nº 9608/98 E DOS ARTIGOS 82 E 458 DA CLT. INOCORRÊNCIA. 1. Indene de violação a Lei 9608/98, se o Regional, com base na apreciação do conjunto probatório, verifica não restarem atendidos na hipótese os elementos descritos na mencionada lei, descaracterizando a natureza voluntária do trabalho prestado pela obreira. Incidência da Súmula 126/TST. 2. Não se pode aferir violação dos artigos 82, caput, e 458 da CLT, se o Regional declara que tais arguições são inovatórias em sede de recurso ordinário, de modo que, diante da ausência de prequestionamento, o processamento da revista esbarra no óbice previsto na Súmula 297/TST. JUROS MORATÓRIOS. INCIDÊNCIA. ENTE PÚBLICO. VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 535 I E II DO CPC. Proclamando o acórdão recorrido a ocorrência da preclusão da matéria, resta afastado o seu exame em sede de recurso de revista por ausência de prequestionamento, não se voltando as razões recursais quanto ao óbice proclamado pelo Regional. Agravo de Instrumento conhecido e não-provido.

4.2 Precedentes que reconhecem o vínculo empregatício

TST - RR: 0000731-32.2014.5.23.0004

Relator: Delaide Alves Miranda Arantes – Julgamento: 05/02/2020

EMENTA: RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.015/2014. 1 - TRABALHO VOLUNTÁRIO. IGREJA. COLPORTORES. AUSÊNCIA DE TERMO DE ADESÃO. LEI 9.608/98. RECONHECIMENTO DO VÍNCULO DE EMPREGO. O serviço voluntário, em conformidade com o artigo 1º, da Lei nº 9.608/98, é a "atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou a instituição privada de fins não lucrativos que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa". Tal pacto de prestação de serviços exige, para sua validação, a celebração de termo de adesão, nos termos do artigo 2º, da Lei nº 9.608/98: "O serviço voluntário será exercido mediante a celebração de termo de adesão entre a entidade, pública ou privada, e o prestador do serviço voluntário, dele devendo constar o objeto e as condições de seu exercício". Afora isso, conforme se extrai do citado dispositivo, é imperativo que a prestação de serviços não ostente natureza onerosa. No caso dos autos, conforme se verifica do acórdão do Tribunal Regional, a reclamada não coligiu aos autos o termo de adesão, descumprindo a formalidade do artigo 2º, da Lei nº 9.608/98. Ainda segundo quadro fático registrado pela Corte de origem, os colportores recebiam remuneração equivalente a aproximadamente 50% a 60% do valor dos produtos vendidos, que apenas parte desse valor era destinado a cobrir os custos com alimentação, bem como para fazer frente às despesas pessoais, o que permite concluir que não corresponde à ajuda de custo a que se refere o art. 3º da Lei 9.608/98. Assim, muito embora seja incontroverso o cunho religioso na atividade prestada pela reclamada, as provas produzidas nos autos revelam que, no caso concreto, houve verdadeira relação de emprego e não trabalho voluntário. Com efeito, considerado que é incontroversa a prestação de serviços pelos colportores, e presentes os requisitos da relação de emprego, notadamente a onerosidade, pela contraprestação pecuniária das vendas de produtos - livros e revistas religiosos publicados pela reclamada, bem como a ausência do termo de adesão que deveria ter sido coligido aos autos, não há como reconhecer a validade do serviço voluntário. Recurso de revista conhecido e provido.

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TRT-3 - RO: 0010605-53.2018.5.03.0167

Relator: Emerson José Alves Lage – Julgamento: 05/11/2020

EMENTA: VÍNCULO DE EMPREGO. TRABALHO VOLUNTÁRIO. O trabalho voluntário, nos termos da Lei 9.608/98, é "a atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou a instituição privada de fins não lucrativos que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa". Portanto, tal modalidade de trabalho pressupõe a ausência de remuneração, o trabalho gratuito, não oneroso, sem qualquer contraprestação financeira pelos serviços prestados. Admitida a prestação de serviços pelo suposto empregador, conforme caso dos autos, o ônus de prova passa a ser da parte ré (art. 818 da CLT e 333, II, do CPC), que, na hipótese, não logrou demonstrar que a "ajuda financeira" paga à reclamante era totalmente desvinculada dos serviços prestados. Presentes todos os requisitos da relação de emprego, quais sejam, subordinação jurídica, não-eventualidade, pessoalidade e onerosidade, o vínculo empregatício deve ser reconhecido. Recurso provido.

4.3. O princípio da primazia da realidade

O princípio da primazia da realidade constitui pilar hermenêutico do Direito do Trabalho, segundo o qual, quando há divergência entre a forma pactuada e a realidade efetivamente vivida na prestação de serviços, deve prevalecer esta última. Tal orientação decorre diretamente da função protetiva da legislação trabalhista e da necessidade de coibir práticas fraudulentas que buscam afastar a aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

No campo específico do trabalho voluntário, a aplicação desse princípio mostra-se fundamental. Isso porque a Lei nº 9.608/1998 exige, em seu art. 2º, a celebração de termo de adesão como requisito formal para a validade da prestação de serviços voluntários. Todavia, a jurisprudência tem afirmado de modo consistente que esse instrumento não é suficiente para afastar a configuração de vínculo empregatício, caso a realidade demonstre a presença dos requisitos previstos no art. 3º da CLT.

Foi o que decidiu o Tribunal Superior do Trabalho ao reconhecer vínculo de emprego em favor de colportores vinculados a entidade religiosa, que, embora formalmente atuassem como voluntários, percebiam percentual sobre as vendas de livros e revistas religiosas. O TST entendeu que a ausência do termo de adesão e a existência de contraprestação pecuniária descaracterizavam o trabalho voluntário, afirmando a relação empregatícia (TST, RR 0000731-32.2014.5.23.0004, Rel. Min. Delaide Alves Miranda Arantes, j. 05/02/2020).

Por outro lado, o mesmo Tribunal, em situação distinta, afastou o vínculo empregatício de trabalhador que atuou por mais de duas décadas como assistente de educação física, em finais de semana, sem jamais receber contraprestação econômica. Reconheceu-se, nesse caso, a legitimidade do caráter voluntário, justamente pela ausência de onerosidade objetiva e subjetiva (TST, E-RR 76700-37.1998.5.01.0033, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, j. 27/06/2005).

Além disso, a jurisprudência regional reforça a centralidade do princípio. O TRT da 3ª Região, ao julgar recurso de trabalhador que recebia “ajuda financeira” mensal, concluiu que, não comprovada pela entidade a desvinculação entre tais valores e os serviços prestados, restava configurada a onerosidade e, consequentemente, o vínculo de emprego (TRT-3, RO 0010605-53.2018.5.03.0167, Rel. Emerson José Alves Lage, j. 05/11/2020). Já o TRT da 4ª Região entendeu que a mera percepção de ajuda de custo, quando não acompanhada de subordinação jurídica, não descaracteriza o trabalho voluntário (TRT-4, RO 0000020-27.2013.5.04.0251, Rel. Rosane Serafini Casa Nova, j. 11/06/2014).

Em todos esses exemplos, percebe-se que a questão não se resolve pela forma — existência ou ausência do termo de adesão —, mas pelo exame concreto da realidade vivida na relação. Se a “ajuda de custo” corresponde a mera indenização ou ressarcimento de despesas, preserva-se o caráter voluntário. Se, ao contrário, revela natureza contraprestativa, há fraude e o vínculo empregatício deve ser reconhecido.

Assim, a primazia da realidade funciona como instrumento de filtragem das relações jurídicas, permitindo ao julgador identificar quando o voluntariado é legítimo e quando serve apenas como fachada para a exploração do trabalho subordinado.

5. Considerações finais

A análise da jurisprudência evidencia que a caracterização ou não do vínculo empregatício em atividades formalmente qualificadas como voluntárias depende da aferição da presença dos requisitos do art. 3º da CLT. A onerosidade real e a subordinação jurídica são critérios centrais.

De um lado, os tribunais afastam o vínculo quando o trabalho se mostra vocacional, comunitário ou meramente assistencial, admitindo a ajuda de custo como compatível com o voluntariado. De outro, reconhecem o vínculo quando se constata remuneração disfarçada, ausência de termo de adesão ou exploração econômica da atividade.

Assim, o trabalho voluntário permanece juridicamente protegido, mas não pode ser instrumentalizado como forma de fraudar direitos trabalhistas.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 9 ago. 1943.

BRASIL. Lei nº 9.608, de 18 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o serviço voluntário e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 19 fev. 1998.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 17 jan. 1973. (Revogado pela Lei nº 13.105/2015).

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (Brasil). Recurso de Revista nº 0000731-32.2014.5.23.0004. Relator: Ministra Delaide Arantes. Julgado em 05 fev. 2020. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, 21 fev. 2020.

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (Brasil). Embargos em Recurso de Revista nº 76700-37.1998.5.01.0033. Relatora: Ministra Maria Cristina Peduzzi. Julgado em 27 jun. 2005. Diário da Justiça, Brasília, DF, 05 ago. 2005.

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (Brasil). Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 15540-16.2005.5.09.0656. Relator: Ministro Luiz Antonio Lazarim. Julgado em 21 mar. 2007. Diário da Justiça, Brasília, DF, 20 abr. 2007.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO (Brasil). Recurso Ordinário Trabalhista nº 1000414-83.2023.5.02.0263. Relatora: Desembargadora Thaís Verrastro de Almeida. Julgado em 21 ago. 2024.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO (Brasil). Recurso Ordinário Trabalhista nº 1000526-41.2019.5.02.0603. Relatora: Desembargadora Beatriz Helena Miguel Jiacomini. Julgado pelo Tribunal Pleno.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO (Brasil). Recurso Ordinário nº 0010605-53.2018.5.03.0167. Relator: Desembargador Emerson José Alves Lage. Julgado em 05 nov. 2020. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, 06 nov. 2020.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO (Brasil). Recurso Ordinário nº 0000020-27.2013.5.04.0251. Relatora: Desembargadora Rosane Serafini Casa Nova. Julgado em 11 jun. 2014.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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